de afogamento em que não conseguia recobrar a respiração, e fui recebido
pelos primeiros raios de sol do dia, encolhendo-me ante a dor na parte de
trás da cabeça. Deixei cair os pés para fora da cama. O telefone parou de
tocar antes que eu o pegasse, quase sempre fazem isso em tais situações,
então me deitei de novo e passei dez infrutíferos minutos imaginando quem
teria sido antes de levantar de vez.
Ringgg... ringgg... ringgg...
Foram dez? Doze? Perdi a conta. Alguém era realmente dedicado. Eu
esperava que não fossem problemas, mas em minha experiência as
pessoas não tentam tanto quando a notícia é boa. Toquei cautelosamente a
parte de trás da cabeça. Doeu bastante, mas aquela dor profunda e
enjoativa parecia ter desaparecido. E não havia sangue em meus dedos.
Tateei pelo corredor e atendi o telefone.
— Alô?
— Bem, pelo menos você não tem que se preocupar mais em
testemunhar na audiência sobre a custódia da criança.
— Bill?
— É.
— Como é que você soube... — Eu me encostei no canto e dei uma
espiada no irritante relógio-gato que oscilava. Vinte minutos depois das sete
e já sufocante. Mais quente que um sodomita, como nós, marcianos da TR,
gostamos de dizer. — Como é que você sabe que ele resolveu...
— Não sei nada sobre os negócios dele, de um modo ou de outro. —
Bill parecia suscetível. — Ele nunca me ligou para pedir conselho, e eu
nunca liguei para lhe dar um.
— O que aconteceu? O que está acontecendo?
— Ainda não ligou a televisão?
— Ainda nem tomei café.
Nenhuma desculpa por parte de Bill; era um sujeito que acreditava
que gente que acordava depois de seis da manhã merecia o que recebia.
Mas agora eu estava acordado. E tive uma boa ideia do que estava para vir.
— Devore se matou na noite passada, Mike. Entrou numa banheira de
água morna e enfiou um saco plástico na cabeça. Não deve ter levado
muito tempo, com os pulmões dele.
Não, pensei, provavelmente não muito. Apesar do úmido calor de
verão que já permeava a casa, estremeci.
— Quem o encontrou? A mulher?
— É, claro.
— A que horas?
— Pouco antes da meia-noite — disseram no noticiário do Canal 6.
Mais ou menos na hora em que eu acordei no sofá e fui rigidamente
para a cama, em outras palavras.
— Ela está implicada?
— Você quer dizer se ela bancou o dr. Kevorkian? O noticiário que eu
vi não falava nada sobre isso. O moinho de fofocas lá no Armazém
Lakeview logo vai estar a pleno vapor, mas ainda não fui até lá para a
minha porção de grão. Se ela o ajudou, não acho que vai ter qualquer
problema por isso, você acha? Ele tinha 85 anos e não estava bem.
— Sabe se ele vai ser enterrado na TR?
— Califórnia. Ela disse que haverá funeral em Palm Springs na terçafeira.
Uma sensação de tremenda estranheza me varreu quando percebi
que a fonte dos problemas de Mattie podia estar jazendo numa capela cheia
de flores ao mesmo tempo em que Os Amigos de Kyra Devore estavam
digerindo seus almoços e aprontando-se para começar a atirar o Frisbee de
um lado para o outro. Vai ser uma celebração, pensei abismado. Não sei
como vão lidar com isso na Capelinha dos Microchips em Palm Springs,
mas na estrada Wasp Hill eles estarão dançando, esticando os braços para
o céu e gritando, sim, Senhor.
Jamais fiquei contente ao saber da morte de alguém em toda a
minha vida, mas senti-me contente com a morte de Devore. Lamentava me
sentir assim, mas era verdade. O velho canalha tinha me atirado no lago...
mas antes que a noite terminasse, era ele quem tinha se afogado. Afogado
dentro de um saco plástico, sentado numa banheira de água morna.
— Você tem ideia de como os caras da TV conseguiram a notícia
tão rápido? — Não era super-rápido, com sete horas entre a descoberta do
corpo e o noticiário das sete, mas os jornalistas da TV tendem a ser
preguiçosos.
— Whitmore ligou para eles. Deu uma entrevista coletiva bem ali na
sala do Warrington’s às duas da manhã. Recebeu as perguntas naquele
grande sofá de pelúcia marrom-avermelhado, aquele que Jo sempre
costumava dizer que devia estar no quadro a óleo de um saloon, com uma
mulher nua deitada nele. Lembra?
— Sim.
— Vi uns dois adjuntos do condado caminhando por lá, e mais um
sujeito que reconheci da Casa Funerária Jaquard’s, em Motton.
— É esquisito — eu disse.
— É, o corpo provavelmente ainda estava no andar de cima, enquanto
Whitmore dava com a língua nos dentes... Mas ela afirmou que seguia
ordens do patrão. Disse que ele deixou uma fita dizendo que se mataria na
sexta à noite para não afetar o preço das ações da companhia, e queria que
Rogette ligasse logo para a imprensa e assegurasse ao pessoal que a
companhia estava sólida, que entre o filho dele e o Conselho de Diretores
tudo ia ficar nos eixos. Então ela contou sobre o funeral em Palm Springs.
— Ele comete suicídio e depois dá uma entrevista coletiva às duas
da manhã via representante para acalmar os acionistas.
— É. Isso é a cara dele.
Houve um silêncio na linha. Tentei pensar e não consegui. A única
coisa que sabia era que desejava ir para o andar de cima e trabalhar, com a
cabeça doendo ou não. Queria voltar a encontrar Andy Drake, John
Shackleford e o amigo de infância de Shackleford, o horrível Ray Garraty.
Havia loucura na minha história, mas era uma loucura que eu entendia.
— Bill — eu disse finalmente —, ainda somos amigos?
— Jesus, claro — disse ele prontamente. — Mas se há gente por aqui
parecendo um pouco fria com você, você vai saber por que, não é?
Claro que sim. Muitos me culpariam pela morte do velho. Era uma
coisa maluca, dadas as condições físicas dele, e não seria de modo nenhum
a opinião da maioria, mas a ideia ganharia certo crédito, pelo menos a curto
prazo — eu sabia disso tão bem quanto sabia a verdade sobre o amigo de
infância de John Shackleford.
Crianças, era uma vez uma galinha que voou de volta para seu
pequeno distrito bem simples onde tinha vivido como um pintinho. Ela
começou a pôr adoráveis ovos de ouro, e todo o pessoal da cidadezinha se
reuniu para se maravilhar e receber sua parte. Agora, contudo, aquela
galinha foi cozida e alguém tinha que levar a culpa. Eu ficaria com alguma,
mas Mattie receberia a pior parte; ela havia tido a ousadia de lutar por sua
filha em vez de entregar Ki silenciosamente.
— Fique encolhido nas próximas semanas — disse Bill. — É a minha
opinião. Na verdade, se tivesse algum negócio que tirasse você logo da TR
até que tudo se acalme, seria bem melhor.
— Agradeço a sensatez do que está dizendo, mas não posso. Estou
escrevendo um livro. Se eu levantar acampamento e me mudar, a história
vai morrer dentro de mim. Já aconteceu antes e não quero que aconteça
dessa vez.
— Uma boa invencionice, hein?
— Nada mal, mas isso não é o importante. É... bem, digamos que
essa história é importante para mim por outras razões.
— Você não iria nem até Derry?
— Está querendo se livrar de mim, William?
— Estou tentando me manter à tona, só isso. Meu trabalho é de
caseiro, você sabe. E não diga que não foi avisado: a colmeia vai zumbir.
Há duas histórias correndo por aí sobre você, Mike. Uma é que você está
dormindo com Mattie Devore. A outra é que voltou para escrever uma
crítica destrutiva sobre a TR. Puxar para fora todos os esqueletos que
encontrar.
— Em outras palavras, terminar o que Jo começou. Quem está
espalhando essa história, Bill?
Silêncio da parte de Bill. Estávamos novamente de volta a terreno
minado, e desta vez o solo parecia mais perigoso do que nunca.
— O livro em que estou trabalhando é um romance — eu disse. —
Passado na Flórida.
— Ah, é? — Nunca se poderia imaginar que houvesse tanto alívio em
duas pequenas sílabas.
— Acha que poderia espalhar isso?
— Acho que sim — disse ele. — Se você contar isso a Brenda
Meserve, vai se espalhar mais rápido e mais longe.
— Tudo bem, vou contar. Quanto a Mattie...
— Mike, você não tem que...
— Não estou dormindo com ela. O trato nunca foi esse. O trato foi
tipo andar pela rua, virar uma esquina e ver um sujeito grande batendo num
sujeito pequeno. — Fiz uma pausa. — Ela e seu advogado estão planejando
fazer um churrasco na casa dela na terça ao meio-dia. Eu estou
pretendendo ir também. As pessoas da cidade vão pensar que estamos
dançando sobre o túmulo de Devore?
— Algumas vão. Royce Merrill vai. Dickie Brooks também. Velhotas
de calças, como Yvette os chama.
— Bem, que se fodam — falei. — Até o último.
— Compreendo como se sente, mas diga a ela para não jogar isso na
cara do pessoal — ele quase implorou. — Faça pelo menos isso, Mike. Ela
não vai morrer se arrastar a churrasqueira para a parte de trás do trailer,
vai? Pelo menos assim as pessoas olhando do armazém ou da oficina não
vão ver nada, só a fumaça.
— Vou passar o recado adiante. E se eu participar da reunião, eu
mesmo coloco a churrasqueira na parte de trás.
— Seria bom que você ficasse longe daquela moça e da criança —
disse Bill. — Pode dizer que não é da minha conta, mas estou falando com
você como um tio severo, dizendo isso para o seu próprio bem.
Então tive uma visão rápida de meu sonho. A sensação de estreiteza
macia e delicada quando deslizei para dentro dela. Os pequenos seios com
seus mamilos duros. Sua voz na escuridão, me dizendo para fazer o que eu
queria. Meu corpo respondeu quase instantaneamente.
— Eu sei que está.
— Muito bem. — Ele pareceu aliviado que eu não o censurasse, lhe
passasse um sermão, como teria dito. — Vou deixar você tomar seu café.
— Eu lhe agradeço por ter ligado.
— Eu quase não liguei. Foi Yvette que me convenceu. Ela disse:
“Você sempre gostou mais de Mike e Jo do que dos outros para quem
trabalhou. Não fique mal com ele agora que voltou para casa.”
— Diga a ela que eu agradeço — falei.
Coloquei o telefone no gancho e olhei pensativamente o aparelho. Bill
e eu parecíamos estar em bons termos de novo... mas não achava que
éramos amigos, exatamente. Certamente não do modo como já havíamos
sido. Isso tinha mudado quando percebi que Bill estava mentindo para mim
sobre algumas coisas e omitindo outras; tinha mudado também quando
percebi do que ele quase chamou Sara e os Red-Tops.
Você não pode condenar um homem pelo que pode ser apenas um
produto de sua própria imaginação.
Sem dúvida, e eu tentaria não fazer isso... mas bem sabia qual era a
verdade.
Entrei na sala, liguei a TV e a seguir a desliguei. Minha antena
pegava cinquenta ou sessenta canais diferentes, e nem um deles local. Mas
havia uma TV portátil na cozinha, e se eu inclinasse a antena na direção do
lago poderia pegar a WMTW, associada da ABC no Maine ocidental.
Peguei o bilhete de Rogette, entrei na cozinha e liguei a pequena Sony
enfiada nos armários de baixo com a cafeteira elétrica. Bom dia, América
estava no ar, mas entrariam nas notícias locais em breve. Enquanto isso,
esquadrinhei o bilhete, dessa vez me concentrando mais no modo de
expressão do que na mensagem, que tinha merecido toda a minha atenção
na noite anterior.
Espera voltar para a Califórnia de avião particular muito em breve.
Tem negócios que não podem mais ser adiados, ela escreveu.
Se você prometer deixá-lo descansar em paz.
Era a droga de um bilhete de suicida.
— Você sabia — eu disse, esfregando o polegar nas letras em relevo
do nome dela. — Você sabia quando escreveu isso, e provavelmente quando
estava atirando pedras em mim. Mas por quê?
A custódia tem suas responsabilidades, ela escreveu. Não esqueça
que ele lhe disse isso.
Mas o caso de custódia estava terminado, certo? Nem mesmo um
juiz que fosse comprado e pago poderia conceder a custódia a um morto.
O BDA finalmente passou às notícias locais, em que o suicídio de
Max era a mais importante. A imagem da TV era cheia de chuviscos, mas
podia ver o sofá marrom-avermelhado mencionado por Bill, e Rogette
Whitmore sentada nele com as mãos educadamente cruzadas no colo.
Achei que um dos adjuntos ao fundo era George Footman, embora o
chuvisco fosse forte demais para que eu tivesse total certeza.
Devore tinha falado frequentemente nos últimos oito meses em
acabar com sua vida, disse Whitmore. Vinha passando mal. Pediu a ela para
sair com ele na noite anterior, e ela percebia agora que ele desejava
assistir a um último pôr do sol. E tinha sido glorioso, por sinal, acrescentou
ela. Eu poderia ter concordado com aquilo; lembrava muito bem do pôr do
sol, tendo quase me afogado sob sua luz.
Rogette estava lendo uma declaração de Devore quando o telefone
tocou de novo. Era Mattie, e ela estava chorando em acessos fortes.
— A notícia — disse ela —, Mike, você viu... você sabe...
No início, só conseguiu dizer aquilo de coerente. Respondi que já
sabia, Bill Dean havia me ligado e então peguei outras informações nas
notícias locais. Ela tentou responder, mas não conseguiu falar. Culpa, alívio,
horror, até alegria — eu ouvia todas essas coisas em seu choro. Perguntei
onde estava Ki. Eu podia me solidarizar com as emoções de Mattie — até
ligar a TV naquela manhã ela acreditava que o velho Max era o seu pior
inimigo —, mas não gostava da ideia de uma garota de 3 anos ver a mãe
desmoronar.
— Está lá fora, nos fundos — conseguiu dizer. — Já tomou café e
agora está fazendo um p-p-piquenique de bo-bone...
— Piquenique de boneca. Sim. Ótimo. Solte tudo, então. Tudo. Deixe
sair.
Ela chorou por dois minutos pelo menos, talvez mais tempo.
Continuei com o telefone apertado contra a orelha, suando ao calor de julho,
tentando ser paciente.
Vou lhe dar uma chance de salvar sua alma, Devore tinha me dito,
mas naquela manhã ele estava morto e sua alma se encontrava onde quer
que fosse. Ele morreu, Mattie estava livre e eu escrevendo. A vida deveria
estar sendo maravilhosa, mas não era.
Finalmente ela começou a recuperar o controle.
— Desculpe. Eu não tenho chorado assim, chorado mesmo, desde que
Lance morreu.
— É compreensível, trate de chorar.
— Venha almoçar — disse ela. — Venha almoçar aqui, por favor,
Mike. Ki vai passar a tarde com uma amiga que ela conheceu na Escola
Bíblica de Férias, e vamos poder conversar. Preciso conversar com
alguém... Meu Deus, estou com a cabeça rodando. Por favor, diga que vem.
— Eu adoraria, mas não é uma boa ideia. Especialmente se Ki não
estiver aí.
Contei-lhe uma versão editada de minha conversa com Bill Dean. Ela
ouviu atentamente. Achei que poderia ver uma explosão zangada quando eu
terminasse, mas esqueci de um fato muito simples: Mattie Stanchfield
Devore tinha morado por ali toda a sua vida. Ela sabia como as coisas
funcionavam.
— Pelo que entendi, as coisas vão cicatrizar muito mais rápido se eu
ficar de olhos baixos, boca calada e joelhos fechados — disse ela —, e vou
fazer o máximo para que tudo saia bem, mas a diplomacia vai até certo
ponto. Aquele velho estava tentando tirar minha filha, eles não entendem
isso naquele maldito armazém?
— Eu entendo.
— Eu sei. É por isso que eu queria conversar com você.
— E se jantarmos cedo no parque de Castle Rock? No mesmo lugar
de sexta-feira? Digamos lá pelas cinco?
— Eu teria que levar Ki...
— Ótimo — falei. — Leve-a. Diga a ela que eu sei “João e Maria” de
cor e quero que ela saiba também. Você vai ligar para John na Filadélfia?
Vai dar os detalhes a ele?
— Vou. Mas vou esperar mais uma hora ou coisa assim. Nossa,
estou tão feliz. Sei que é errado, mas estou tão feliz que posso até estourar!
— Somos dois. — Houve uma pausa do outro lado. Ouvi um aspirar
longo e aquoso. — Mattie? Tudo bem?
— Sim, mas como é que se conta a uma criança de 3 anos que o
avô morreu?
Diga a ela que o velho nojento escorregou e caiu de cabeça dentro de
um saco plástico, pensei, apertando a seguir a boca com a mão para sufocar um acesso de riso maluco.
— Não sei, mas você vai ter que fazer isso logo que ela entrar.
— Vou? Por quê?
— Porque ela vai ver você. Vai ver o seu rosto.
Fiquei exatamente duas horas no escritório do andar de cima, e então o
calor me expulsou de lá — o termômetro no alpendre marcava 35 graus às
dez horas. Achei que no segundo andar podia estar dois graus mais quente.
Esperando não estar cometendo um engano, tirei a tomada da IBM e
levei a máquina para o andar de baixo. Estava trabalhando sem camisa, e
quando atravessei a sala, a parte de trás da máquina de escrever
escorregou no meu peito coberto de suor e quase deixei cair a filha da puta
fora de moda nos dedos dos pés. Isso me fez pensar no tornozelo, o que eu
machuquei quando caí no lago, e coloquei a máquina de lado para dar uma
espiada nele. Estava colorido, negro, roxo e avermelhado nas bordas, mas
não tremendamente inchado. Acho que minha imersão na água fria tinha
ajudado a diminuir o inchaço.
Coloquei a máquina na mesa do deck, consegui encontrar uma
extensão, liguei a tomada sob o olho vigilante de Bunter e sentei de frente
para a enevoada superfície azul-cinzenta do lago. Esperei que um de meus
velhos acessos de ansiedade baixasse — o estômago apertado, os olhos
latejando e, pior do que tudo, aquela sensação de fitas invisíveis de aço
apertando-me o peito, tornando a respiração impossível. Nada semelhante
aconteceu. As palavras fluíram tão facilmente ali embaixo como haviam
fluído no andar de cima, e a parte superior do meu corpo, despida, estava
adorando a pequena brisa que soprava vinda do lago de vez em quando.
Esqueci Max Devore, Mattie Devore, Kyra Devore. Esqueci Jo Noonan e Sara
Tidwell. Esqueci de mim mesmo. Por duas horas voltei à Flórida. A
execução de John Shackleford se aproximava. Andy Drake corria contra o
relógio.
Foi o telefone que me trouxe de volta, e pela primeira vez eu não me
ressenti da interrupção. Se não tivesse sido perturbado, poderia ter
continuado a escrever até simplesmente derreter numa poça pegajosa no deck.
Era meu irmão. Conversamos sobre mamãe — na opinião de Siddy,
em vez de estar sem alguns parafusos, ela se mostrava agora inteiramente
desaparafusada — e sua irmã Francine, que tinha quebrado a bacia em
junho. Sid queria saber como eu estava indo, e lhe disse que estava tudo
bem, que tive alguns problemas para iniciar um novo livro, mas agora tudo
parecia nos eixos (em minha família, o único momento permissível de
discutir um problema é quando este já terminou). E como ia o grande Sid?
Detonando, disse ele, o que imaginei que significasse muito bem — Siddy
tem um filho de 12 anos, e consequentemente suas gírias são sempre da
última moda. O novo negócio de contabilidade estava começando a decolar,
embora tivesse ficado assustado por um tempo (era a primeira vez que eu
ouvia isso, claro). Ele jamais poderia me agradecer o suficiente pelo
empréstimo-ponte que eu tinha lhe dado em novembro passado. Respondi
que era o mínimo que eu podia fazer, o que era verdade absoluta,
especialmente quando considerava quanto tempo mais — pessoalmente ou
por telefone — ele passava com nossa mãe.
— Bem, vou te deixar ir — disse Siddy depois de mais algumas
brincadeiras. Ele nunca diz tchau, ou até logo, é sempre Bem, vou te deixar
ir, como se estivesse mantendo um refém. — Você deve estar querendo
um refresco por aí, Mike, a TV disse que a Nova Inglaterra vai ser mais
quente que o inferno pelo fim de semana inteiro.
— Sempre há o lago, se as coisas ficarem realmente pretas. Escute,
Sid...
— Escute o quê? — Da mesma forma que Bem, vou te deixar ir,
Escute o quê remetia à nossa infância. Era reconfortante; e também um
pouco fantasmagórico.
— Nosso pessoal veio todo de Prout’s Neck, não é? Quero dizer, do
lado de papai. — Mamãe vinha totalmente de outro mundo, um mundo em
que os homens usavam camisas polo Lacoste, as mulheres sempre usavam
combinações inteiras sob os vestidos e todos conheciam o segundo verso
de “Dixie” de cor. Ela conheceu papai em Portland, quando competia num
evento de líderes de torcida da faculdade. A mãe de família vinha de gente
de qualidade de Memphis, meu caro, e não deixavam você esquecer isso.
— Acho que sim — disse ele. — É. Mas não fique aí me perguntando tanto sobre a árvore genealógica da família, Mike, ainda não tenho certeza
de qual é a diferença entre um sobrinho e um primo, e disse a Jo a mesma coisa.
— Disse? — Tudo dentro de mim se imobilizara completamente...
mas não posso dizer que fiquei surpreso. Não naquele momento.
— Ahn, ahn, pode apostar.
— O que é que ela queria saber?
— Tudo que eu sabia. O que não é muito. Eu podia ter lhe contado
tudo sobre o trisavô de mamãe, aquele que foi morto pelos índios, mas Jo
não se interessava pelo pessoal de mamãe.
— Quando é que foi isso?
— Tem importância?
— Pode ter.
— Tudo bem, vamos ver. Acho que foi mais ou menos na época em
que Patrick fez a operação de apêndice. É, tenho certeza. Fevereiro de 1994.
Pode ter sido março, mas tenho quase certeza de que foi em fevereiro.
Seis meses antes do estacionamento no Rite Aid. Jo movendo-se
para as sombras de sua própria morte como uma mulher entrando sob as
sombras de um toldo. Mas não grávida, não ainda. Jo fazendo viagens
diárias à TR, fazendo perguntas, algumas do tipo que fazia o pessoal se
sentir mal, segundo Bill Dean... mas mesmo assim ela continuou
perguntando. É. Porque uma vez que ela se envolvesse com algo, era como
um terrier com um trapo entre as mandíbulas. Teria feito perguntas ao
homem de blazer marrom? Quem era o homem de blazer marrom?
— Pat estava no hospital, certo. O dr. Alpert disse que ele estava se
saindo muito bem, mas quando o telefone tocou eu dei um pulo na direção
dele. Estava meio que esperando que fosse Alpert dizendo que Pat tinha tido
uma recaída ou coisa assim.
— Pelo amor de Deus, onde é que você arranjou essa sensação de
desgraça iminente, Sid?
— Não sei, companheiro, mas está aí. Seja como for, não era Alpert
e sim Johanna. Ela queria saber se eu tinha algum ancestral, três, talvez
quatro gerações atrás, que tivesse morado lá onde você mora, ou numa das
cidadezinhas em torno. Eu disse a ela que não sabia, mas que você poderia.
Saber, quero dizer. Ela disse que não queria perguntar a você porque era
uma surpresa. Foi uma surpresa?
— E grande — eu disse. — Papai era um lagosteiro...
— Morda a língua, ele era um artista, um “primitivo do litoral”.
Mamãe ainda o chama assim. — Siddy não estava exatamente rindo.
— Droga, ele vendia panelas para cozinhar lagostas, mesinhas de
centro e estatuetas de aves aos turistas quando ficava reumático demais
para ir à baía levantar armadilhas.
— Eu sei disso, mas mamãe editou o casamento dela como um
filme para a televisão.
Como era verdade. Nossa própria versão de Blanche Du Bois.
— Papai era lagosteiro em Prout’s Neck. Ele...
Siddy interrompeu, cantando o primeiro verso de “Papa Was a Rollin’
Stone” numa horrível voz de tenor fora do tom.
— Vamos, isso é sério. Ele ganhou o primeiro barco do pai, certo?
— Essa é a história — concordou Sid. — O Lazy Betty de Jack
Noonan, proprietário original Paul Noonan. Também de Prout’s. O barco
tomou uma verdadeira sova do furacão Donna, em 1960. Acho que era
Donna.
Dois anos depois que eu nasci.
— E papai o pôs à venda em 1963.
— É. Não sei o que aconteceu com ele, mas foi vovô Paul que
começou com tudo, não há dúvida. Lembra de todo o guisado de lagosta que
comemos quando criança, Mikey?
— Bolo de carne do litoral — falei, quase sem pensar. Como a
maioria das crianças criadas na costa do Maine, não posso imaginar pedir
lagosta num restaurante, isso é para gente da planície. Estava pensando em
vovô Paul, que nasceu na década de 1890. Paul Noonan gerou Jack Noonan,
Jack Noonan gerou Mike e Sid Noonan, e aquilo era realmente tudo que eu
sabia, a não ser que os Noonan tinham todos crescido muito longe de onde
eu agora estava me derretendo em suor.
Eles cagaram no mesmo fosso.
Devore tinha cometido um equívoco, era tudo — quando nós, os
Noonan, não estávamos usando camisas polo e sendo gente de qualidade de
Memphis, éramos gente de Prout’s Neck. Era improvável que o bisavô de
Devore e o meu tivessem tido algo a ver um com o outro de qualquer
modo; o velho patife tinha tido o dobro da minha idade, e aquilo significava
que as gerações não combinavam.
Mas se ele estivesse totalmente errado, em que é que Jo esteve metida?
— Mike? — perguntou Sid. — Você está aí?
— Estou.
— Tudo bem? Você não parece muito bem, tenho que dizer.
— É o calor. Sem mencionar sua sensação de desgraça iminente.
Obrigado por ligar, Siddy.
— Obrigado por estar aí, irmão.
— Valeu — eu disse.
Entrei na cozinha para pegar um copo de água gelada. Enquanto o enchia,
ouvi os ímãs na geladeira começarem a deslizar. Rodopiei, fazendo espirrar
um pouco de água em meus pés descalços e quase sem notar. Eu estava
excitado como uma criança que acha que pode ter um vislumbre de Papai
Noel antes que ele desapareça chaminé acima.
Olhei exatamente a tempo de ver nove letras de plástico entrarem
no círculo vindas de todos os lados. CARLADEAN, soletraram... mas
somente por um segundo. Uma presença tremenda mas invisível passou
velozmente por mim. Nem um só cabelo de minha cabeça se mexeu, mas
senti um forte golpe de ar, como quando somos esbofeteados pelo ar de
um trem expresso, se estamos junto à linha amarela da plataforma quando
o trem passa rapidamente pela estação. Gritei de surpresa e depositei com
força o copo d’água no balcão, fazendo-o lançar borrifos. Eu não sentia mais
necessidade de água fria, pois a temperatura da cozinha de Sara Laughs
caíra vertiginosamente.
Minha respiração deixou uma nuvem de vapor no ar, como acontece
num dia gelado de janeiro. Uma baforada, talvez duas, e depois desapareceu
— mas havia estado lá, sem dúvida, e por talvez cinco segundos a camada
fina de suor em meu corpo tornou-se o que parecia um limo de gelo.
CARLADEAN explodiu para fora em todas as direções — era como
observar um átomo sendo amassado num desenho animado. Os ímãs de
letras, frutas e legumes voaram da geladeira e se espalharam pela cozinha.
Por um momento, a fúria que aquela movimentação causou era algo cujo
gosto eu quase podia sentir, como pólvora.
E algo cedeu ante ela, com um suspiro, um sussurro triste que eu já
ouvira antes: “Ah, Mike. Ah, Mike.” Era a voz que capturei na fita do
gravador, e embora no passado eu não tivesse tido certeza, agora tinha —
era a voz de Jo.
Mas quem era o outro? Por que espalhou as letras?
Carla Dean. Não a mulher de Bill; aquela era Yvette. A mãe dele? A
avó?
Andei lentamente pela cozinha, recolhendo os ímãs como se
cumprisse as tarefas de uma gincana e colocando-os novamente na
geladeira aos punhados. Nada pulou de minhas mãos; nada congelou o suor
em minha nuca; o sino de Bunter não tocou. Mesmo assim eu não estava sozinho, e sabia disso.
CARLADEAN: Jo queria que eu soubesse.
Mas algo não queria. Algo que passou por mim como uma bala de
canhão tentando espalhar as letras antes que eu pudesse lê-las.
Jo estava ali; um garoto que chorava à noite também.
E o que mais?
O que mais estava dividindo a casa comigo?
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