domingo, 11 de outubro de 2015

Capítulo Dezoito


Subi as escadas para o deck em vez de contornar a casa e ir até a porta da
frente, ainda me movendo com lentidão e espantado diante do fato de
minhas pernas darem a impressão de ter o dobro do peso normal. Quando
entrei na sala de estar, olhei em volta com os olhos arregalados de alguém
que esteve fora por uma década e volta para encontrar tudo exatamente
como deixou — Bunter, o alce, na parede, o Boston Globe no sofá, uma
compilação da revista de palavras cruzadas Nível difícil na mesinha, o prato
no balcão com os restos de minha comida chinesa ainda ali. Olhar para
aquelas coisas trouxe a percepção do lar com força total — eu tinha saído
para dar um passeio, deixando toda aquela leve e normal desordem atrás de
mim, e quase morri. Quase fui assassinado.
Comecei a tremer. Fui ao banheiro da ala norte, tirei as roupas
molhadas e as joguei na banheira — splat. Então, ainda tremendo, virei-me
e olhei fixamente para mim mesmo no espelho sobre a pia. Eu parecia
alguém que tivesse estado no lado perdedor de uma briga de bar. Um dos
bíceps mostrava um corte comprido e coagulado. Uma equimose negropúrpura
estava surgindo no que pareciam asas sombreadas da minha
clavícula esquerda. Havia um sulco sangrento no pescoço e atrás da orelha,
onde a adorável Rogette me atingiu com a pedra de seu anel.
Peguei o espelho de barbear e usei-o para examinar a parte de trás
da cabeça. “Não pode meter isso em sua cabeça dura?”, minha mãe
costumava gritar para Sid e para mim quando éramos garotos, e agora eu
agradecia a Deus que mamãe aparentemente tivesse razão quanto à dureza
das cabeças, pelo menos no meu caso. O lugar em que Devore me atingiu
com a bengala parecia o cone de um vulcão recentemente extinto. O tiro
certeiro de Whitmore deixou um ferimento vermelho que precisaria de
pontos se eu quisesse evitar uma cicatriz. Sangue, seco e ralo, manchava
minha nuca por toda a linha do cabelo. Só Deus sabia quanto dele havia
escorrido daquela abertura vermelha de aspecto desagradável e sido lavado
pelo lago.
Derramei água oxigenada na mão em concha, reuni as forças e
coloquei-a diretamente no corte de trás como se fosse uma loção após a
barba. A ardência foi monstruosa, e tive que apertar os lábios para não
gritar. Quando a dor começou a diminuir um pouco, molhei bolas de algodão
com mais água oxigenada e limpei os outros ferimentos.
Tomei um banho de chuveiro, vesti uma camiseta e um jeans, e
então fui até o corredor ligar para o xerife do condado. A ajuda da lista
telefônica não era necessária; os números do DP de Castle Rock e do xerife
estavam no cartão EM CASO DE EMERGÊNCIA pregado com tachinhas no
quadro, juntamente com o número dos bombeiros, o serviço de ambulância
e o número 900, onde se podiam obter três respostas para as palavras
cruzadas do Times do dia por US$ 1,50.
Liguei os primeiros três números rapidamente, depois fui me
tornando mais lento. Cheguei até 955-960 antes de parar completamente.
Permaneci no corredor com o telefone apertado à orelha, visualizando outra
manchete, esta não no decoroso Times e sim no arruaceiro New York Post:
ROMANCISTA PARA O IDOSO REI DOS COMPUTADORES : “SEU
VALENTÃO!” Juntamente com retratos, lado a lado, meu, parecendo ter
mais ou menos a minha idade, e de Max Devore, parecendo ter mais ou
menos 100 anos. O Post se divertiria muito contando aos leitores como
Devore (juntamente com sua acompanhante, uma idosa senhora que poderia
pesar 40 quilos quando encharcada) derrubara um romancista com a
metade de sua idade — um camarada que parecia, ao menos pela foto,
razoavelmente em forma.
Com seu cérebro rudimentar, o telefone cansou-se de ter apenas
seis números discados dos sete exigidos, deu dois cliques e desfez a
ligação. Afastei o receptor da orelha, olhei-o fixamente por um momento e
a seguir o coloquei suavemente no gancho.
Não sou fresco quanto às atenções às vezes fantasiosas e às vezes
odiosas da imprensa, mas sou cauteloso, como também o seria ao me
aproximar de um mamífero peludo e mal-humorado. A América transformou
as pessoas públicas em esquisitas putas de alta classe, e a mídia zomba
de qualquer “celebridade” que ousa se queixar sobre o tratamento recebido.
“Para de reclamar!”, gritam os jornais e os programas de fofocas da TV (o
tom é uma mistura de triunfo e indignação). “Você acha mesmo que nós
lhe pagamos uma grana preta só para cantar uma canção ou rebater com
um taco de beisebol? Errado, seu idiota! Pagamos para ficarmos surpresos
quando você se sai bem — seja lá o que faça especificamente — e também
porque é gratificante vê-lo meter os pés pelas mãos. A verdade é que você
é um suprimento. Se deixar de ser divertido, sempre poderemos matá-lo e
comê-lo.”
Eles não podem verdadeiramente comê-lo, claro. Mas podem
imprimir fotos suas sem camisa e dizer que você está engordando, podem
falar de quanto você bebe ou quantas pílulas toma, ou fofocar sobre a noite
em que você puxou uma aspirante a celebridade para o seu colo no Spago e
tentou enfiar a língua na orelha dela, mas não podem realmente comê-lo.
Assim, não foi o pensamento sobre o Post me chamando de bebê chorão,
ou sobre fazer parte do monólogo de abertura de um programa de
entrevistas que me fez pôr o telefone no gancho — foi perceber que eu não
tinha nenhuma prova. Ninguém nos vira. E percebi também que achar um
álibi para si mesmo e sua assistente pessoal seria a coisa mais fácil do
mundo para Max Devore.
Havia também outra coisa, que coroava tudo: imaginar que o xerife
do condado mandasse George Footman, também conhecido como machão,
receber minha declaração de como o homem mau tinha empurrado o
pequeno Mikey para dentro do lago. Como os três ririam com aquilo depois!
Em vez disso, liguei para John Storrow, querendo que me dissesse
que eu estava fazendo a coisa certa, a única que tinha sentido. Querendo
que ele me lembrasse de que só homens desesperados chegam a fazer
coisas tão desesperadas (eu ignoraria, pelo menos por enquanto, como
aqueles dois tinham rido, como se nunca tivessem se divertido tanto), e
que nada havia mudado com relação a Ki Devore — o caso da custódia de
seu avô ainda estava empacado.
Fui recebido pela secretária eletrônica de John em casa e deixei um
recado — ligar para Mike Noonan, nenhuma emergência, mas fique à
vontade para ligar tarde. Depois tentei seu escritório, guiando-me pelo
evangelho segundo John Grisham: jovens advogados trabalham até cair.
Ouvi a mensagem da secretária eletrônica da firma, depois segui instruções
e apertei STO no painel do meu telefone, as primeiras três letras do último
nome de John.
Houve um clique e ele veio à linha — outra versão gravada,
infelizmente. “Oi, aqui é John Storrow. Fui à Filadélfia pelo fim de semana
para ver minha mãe e meu pai. Estarei no escritório na segunda; pelo resto
da semana não irei ao escritório. De terça a sexta, você terá mais
probabilidade de me encontrar em...”
O número que dava começava com 207-955, o que queria dizer
Castle Rock. Imaginei que fosse o hotel em que ele tinha ficado antes, o
simpático bem ali na View. “Mike Noonan”, eu disse. “Ligue quando puder.
Deixei também um recado na secretária de seu apartamento.”
Fui à cozinha pegar uma cerveja e então parei à frente da geladeira,
brincando com os ímãs. Ele tinha me chamado de devasso. Diga aqui,
devasso, onde está sua puta? No minuto seguinte, se ofereceu para salvar
minha alma. Bem engraçado, de fato. Como um alcoólatra oferecendo-se
para tomar conta de seu armário de bebidas. Ele falou de você com o que
me pareceu uma afeição verdadeira, disse Mattie. Seu bisavô e o dele
cagaram no mesmo fosso.
Deixei a geladeira com a cerveja ainda em segurança lá dentro, voltei
ao telefone e liguei para Mattie.
— Oi — disse outra voz obviamente gravada. Eu estava num círculo
vicioso. — Sou eu, mas ou saí ou não posso atender nesse exato minuto.
Deixe um recado, tudo bem? — Uma pausa, um raspar do microfone, um
sussurro distante e então Kyra, tão alto que quase estourou o meu
tímpano: — Deixe um recado FELIZ! — O riso das duas acompanhou a
frase, cortada pelo bipe.
— Oi, Mattie, é Mike Noonan — disse. — Eu só queria...
Não sei como terminaria a frase, mas não tive que terminá-la. Ouvi
um clique e a própria Mattie disse: “Alô, Mike.” Havia tal diferença entre
essa voz deprimida e aparentemente derrotada e a voz animada na
gravação que por um momento fiquei em silêncio. Então perguntei o que estava havendo.
— Nada — disse ela, e então começou a chorar. — Tudo. Perdi meu emprego. Lindy me despediu.


Lindy não tinha chamado o ato de demissão, claro. Ela o chamou de
“apertar o cinto”, mas era demissão, sem dúvida nenhuma, e eu sabia que
se examinasse a proveniência dos fundos da Biblioteca Four Lakes
Consolidated descobriria que um dos principais patrocinadores dela pelos
anos afora tinha sido Max Devore. E continuaria a sê-lo... isto é, se Lindy
Briggs fizesse o jogo que ele queria.
— Não deveríamos ter conversado onde ela pudesse nos ver — falei,
sabendo que eu poderia ter ficado totalmente distante da biblioteca e
mesmo assim Mattie seria despedida. — E provavelmente devíamos ter
previsto isso.
— John Storrow previu. — Ela ainda chorava, mas fazia força para se
controlar. — Ele disse que Max Devore provavelmente ia fazer tudo para
que eu ficasse tão encurralada quanto possível quando chegasse a audiência
da custódia. Ele disse que Devore queria ter certeza de que eu ia responder
“Estou desempregada, meritíssimo” quando o juiz perguntasse onde eu
trabalhava. Eu disse a John que a sra. Briggs jamais faria algo tão baixo,
especialmente com uma garota que fez uma palestra tão brilhante sobre o
“Bartleby”, de Melville. Sabe o que ele disse?
— Não.
— “Você é muito jovem.” Achei isso uma coisa muito paternalista,
mas ele tinha razão, não é?
— Mattie...
— O que vou fazer, Mike? O que vou fazer? — O pânico parecia ter
descido a estrada Wasp Hill.
Pensei friamente: Por que não se tornar minha amante? Seu título
seria “assistente de pesquisa”, uma ocupação perfeitamente satisfatória no
que diz respeito à Receita Federal. Eu lhe dou roupas, uns dois cartões de
crédito, uma casa — diga adeus ao grande trailer enferrujado na estrada
Wasp Hill — e umas férias de duas semanas: que tal fevereiro em Mauí?
Mais a educação de Ki, é claro, e um polpudo bônus em dinheiro no final do
ano. Serei atencioso também. Atencioso e discreto. Uma ou duas vezes por
semana e nunca até que sua garotinha esteja dormindo profundamente.
Tudo o que tem a fazer é dizer sim e me dar uma chave. Tudo que tem a
fazer é deslizar para perto quando eu deslizar para dentro. Tudo o que tem
a fazer é me deixar fazer o que eu quiser — durante toda a noite, durante a
escuridão, deixe-me tocar onde quero, deixe-me fazer o que quero, nunca
diga não, nunca diga pare.
Fechei os olhos.
— Mike? Você está aí?
— Claro — respondi. Toquei o corte que latejava na cabeça e
estremeci. — Você vai se sair bem, Mattie. Você...
— O trailer nem está pago! — Ela quase gemeu. — Tenho duas
contas de telefone já vencidas e estão ameaçando cortar o serviço! A
transmissão do jipe está com alguma coisa errada e o eixo traseiro
também! Posso pagar a última semana de Ki na Escola Bíblica de Férias,
acho, a sra. Briggs me deu um pagamento de três semanas de aviso prévio,
mas como vou comprar sapatos para Ki? Tudo fica pequeno nela tão
depressa... todos os shorts dela estão com buracos e a maior parte da
porcaria da sua roupa de baixo...
Começou a chorar de novo.
— Vou tomar conta de você até se recuperar — eu disse.
— Não, não posso deixar...
— Pode, sim. Pode, sim, por causa de Kyra. Mais tarde, se você
ainda quiser, pode me pagar o que deve. Vamos anotar cada dólar e
centavo, se quiser. Mas vou tomar conta de você. — E nunca tirará as
roupas quando eu estiver com você. É uma promessa, e vou cumpri-la.
— Mike, você não tem que fazer isso.
— Talvez sim, talvez não. Mas vou fazer. Tente me impedir. — Eu
liguei pretendendo contar a ela o que havia acontecido comigo, dando-lhe a
versão humorística, mas agora isso parecia a pior ideia do mundo. — Essa
história de custódia vai terminar antes de você se dar conta, e se não
encontrar ninguém corajoso o bastante para lhe dar trabalho aqui quando
tudo terminar, vou arranjar alguém em Derry que fará isso. Além do mais,
diga a verdade, não está começando a sentir que já é hora de uma mudança
de cenário?
Ela conseguiu dar um riso espremido.
— Acho que sim.
— Falou com John hoje?
— Falei sim. Está visitando os pais na Filadélfia, mas me deu o
número de lá. Eu liguei para ele.
Ele disse que estava encantado com ela. Talvez ela sentisse a
mesma coisa. Disse a mim mesmo que a pequena ferroada que senti ante
aquela ideia era apenas imaginação minha. Seja como for, tentei me
convencer daquilo.
— O que é que ele disse de você perder o emprego assim?
— As mesmas coisas que você. Mas ele não me fez sentir segura.
Você, sim. Não sei por quê. — Eu sabia. Eu era um homem mais velho, e
essa era nossa principal atração para as mulheres jovens: nós as fazemos
se sentirem seguras.
— Ele vai aparecer de novo na terça de manhã. Eu disse que
almoçava com ele — ela acrescentou.
Suavemente, sem um tremor na voz, falei:
— Talvez eu possa ir também.
A voz de Mattie mostrou-se calorosa ante a sugestão; sua pronta
aceitação me fez sentir paradoxalmente culpado.
— Seria ótimo! Por que não ligo para ele e sugiro que vocês dois
venham para cá? Eu podia fazer um churrasco de novo. Talvez Ki possa
faltar à aula da Escola Bíblica de Férias e seremos quatro no almoço. Ela
está esperando que você leia outra história para ela. Gostou muito daquela.
— A ideia é ótima — eu disse sinceramente. Acrescentando-se o
fato de que Kyra fazia tudo parecer mais natural, menos uma intrusão de
minha parte. E também menos um encontro de namorados da parte deles.
John não podia ser acusado de ter um interesse pouco ético por sua cliente.
No final, ele provavelmente me agradeceria. — Acho que Ki já está pronta
para enfrentar “João e Maria”. E você, Mattie? Está bem?
— Muito melhor do que antes de você ligar.
— Ótimo. As coisas vão se acertar.
— Prometa.
— Acho que acabei de fazer isso.
Houve uma leve pausa.
— E você, Mike? Parece um pouco... não sei... um pouco estranho.
— Estou bem — eu disse, e estava, para alguém que há menos de
uma hora achava que ia se afogar. — Posso lhe fazer uma pergunta antes
de ir embora? Porque isso está me deixando maluco.
— Claro.
— Na noite em que jantamos, você me contou que Devore tinha dito
que o bisavô dele e o meu se conheciam. Muito bem, segundo ele.
— Ele disse que os dois tinham cagado no mesmo fosso. Achei isso
muito elegante.
— Ele disse mais alguma coisa? Pense bem.
Ela pensou, mas sem resultado. Pedi que me ligasse se lhe ocorresse
algo a respeito daquela conversa, se se sentisse solitária ou com medo, ou
se começasse a ficar preocupada com alguma coisa. Eu não gostava de
dizer coisas demais, mas já havia decidido que teria uma conversa franca
com John sobre minha última aventura. Talvez pudesse ser bom que o
detetive particular de Lewiston — George Kennedy, como o ator — pusesse
um ou dois homens na TR para ficar de olho em Mattie e Kyra. Max Devore
era louco, exatamente como disse meu caseiro. Naquele momento, eu não
tinha entendido, mas agora sim. A qualquer momento, que eu começasse a
duvidar do fato, só precisava tocar a parte de trás da cabeça.
Voltei à geladeira e outra vez me esqueci de abri-la. Em vez disso,
minhas mãos foram para os ímãs e mais uma vez começaram a movê-los,
observando as palavras formadas, desfazendo-as, mudando-as. Era uma
espécie peculiar de escrita... mas era escrita. Por falar nisso, notei que
estava começando a entrar em transe.
Cultiva-se esse estado semi-hipnótico enquanto se pode ligá-lo e
desligá-lo à vontade... pelo menos pode-se fazê-lo quando as coisas estão
indo bem. A parte intuitiva da mente se destranca quando se começa a
trabalhar, e ascende a uma altura de 1,80 metro mais ou menos (talvez 3
metros nos bons dias). Uma vez lá, ela simplesmente paira, enviando
mensagens de magia negra e imagens brilhantes. Para o equilíbrio do dia,
essa parte é trancada separadamente do resto da maquinaria,
permanecendo bastante esquecida... a não ser em certas ocasiões, quando
se solta sozinha fazendo-o entrar em transe inesperadamente, com a
mente fazendo associações que nada têm a ver com o pensamento
racional, e fulgurando de imagens inesperadas. De certo modo, essa é a
parte mais estranha do processo criativo. As musas são fantasmas, e às
vezes chegam sem terem sido convidadas.
Minha casa é assombrada.
Sara Laughs sempre foi assombrada... você os agitou.
Agitou, escrevi na geladeira. Mas não parecia certo, portanto, fiz um
círculo de ímãs de frutas e legumes em torno das palavras. Ficou muito
melhor. Permaneci assim por um momento, as mãos cruzadas sobre o
peito da mesma maneira que as cruzava em minha cadeira quando
empacava com uma palavra ou frase. Então retirei o agitou e coloquei
assombrou.
— É assombrado no círculo — eu disse, e ouvi ao longe o tênue
tilintar do sino de Bunter, como se concordasse.
Retirei as letras, e enquanto o fazia me vi pensando em como era
estranho ter um advogado chamado Romeo —
(romeo entrou no círculo)
— e um detetive chamado George Kennedy.
(george subiu na geladeira)
Imaginei se Kennedy podia me ajudar com Andy Drake —
(drake na geladeira)
— talvez me dar alguns insights. Eu nunca escrevi sobre um detetive
particular antes e são as pequenas coisas —
(tirar rake, deixar o d, acrescentar etalhes)
— que fazem a diferença. Deitei um 3 e coloquei um I por baixo
dele, transformando-o num forcado. A droga está nos detalhes.
Dali eu fui para outro lugar. Não sei exatamente para onde, porque
estava em transe, aquela parte intuitiva de minha mente num ponto tão
alto que um grupo de busca não poderia tê-la encontrado. Fiquei em frente
à geladeira e brinquei com as letras, soletrando pedacinhos de pensamento
sem sequer pensar neles. Você pode não acreditar que isso seja possível,
mas todo escritor sabe que é.
O que me trouxe de volta foi a luz entrando pelas janelas do
vestíbulo. Olhei para cima e vi a forma de um carro parando atrás de meu
Chevrolet. Uma cãibra de terror me apertou a barriga. Naquele momento, eu
teria dado tudo que possuía por uma arma carregada. Porque era Footman.
Tinha que ser. Devore tinha ligado para ele quando voltou com Whitmore ao
Warrington’s, lhe contado que Noonan tinha se recusado a ser um bom
marciano, portanto vá lá e dê um jeito nele.
Quando a porta do motorista se abriu e a luz do teto do carro foi
acesa, dei um condicional suspiro de alívio. Eu não sabia quem era, mas
tinha certeza de que não era o “machão”. O sujeito ali não dava a
impressão de poder dar um jeito numa mosca doméstica com um jornal
enrolado... embora haja muita gente que cometeu o mesmo erro com
Jeffrey Dahmer.
Em cima da geladeira havia um monte de latas de aerossol, todas
velhas e provavelmente nada amigas da camada de ozônio. Eu não sabia
como a sra. M. as deixara escapar, mas fiquei contente com isso. Peguei a
primeira em que toquei — tarja preta, excelente escolha —, tirei a tampa e
enfiei a lata no bolso esquerdo da frente do jeans. Então me virei para as
gavetas à direita da pia. A de cima continha os talheres. A segunda
guardava o que Jo chamava de “merdinhas da cozinha” — tudo, de
termômetros para assar aves aos garfinhos que se enfiam nas espigas de
milho para que não queimem nossos dedos. A terceira guardava uma
generosa seleção de facas de carne descombinadas. Peguei uma, coloquei-a
no bolso direito do jeans e fui até a porta.

O homem na varanda deu um pulo quando liguei a luz do lado de fora,
depois pestanejou através da porta como um coelho míope. Tinha pouco
mais de 1,60 metro de altura, magro, pálido. Seu cabelo era cortado no
estilo conhecido como escovinha nos meus dias de garoto, e seus olhos
eram castanhos. Protegendo-os viam-se uns óculos de aro de tartaruga com
lentes de aparência engordurada. Suas mãozinhas pendiam nas laterais do
corpo. Uma delas segurava a alça de uma maleta de couro achatada, a
outra um pequeno cartão branco. Não achei que fosse meu destino ser
morto por um homem com um cartão de visita em uma das mãos,
portanto abri a porta.
O sujeito sorriu, o sorriso do tipo ansioso que as pessoas parecem
emitir nos filmes de Woody Allen. Ele usava um traje tipo Woody Allen
também — uma camisa xadrez desbotada um pouco curta demais nos
punhos, calças cáqui um tanto largas no gancho. Alguém deve ter lhe falado
da semelhança, pensei. Tem que ser isso.
— Sr. Noonan?
— Sim?
Ele me entregou o cartão. IMOBILIÁRIA PRÓXIMO SÉCULO, diziam
as letras douradas em relevo. Abaixo delas, num preto mais modesto,
estava o nome de meu visitante.
— Sou Richard Osgood — disse, como se eu não soubesse ler, e
estendeu a mão. A necessidade do homem americano de responder
amavelmente àquele gesto está profundamente enraizada, mas naquela
noite resisti a ele. O homem manteve sua pequena pata cor-de-rosa
esticada por mais um momento, depois a abaixou e enxugou nervosamente
a palma da mão na calça. — Tenho um recado para o senhor. Do sr.
Devore.
Esperei.
— Posso entrar?
— Não.
Ele deu um passo para trás, limpou novamente a mão na calça e
pareceu reunir as forças.
— Não vejo nenhuma necessidade de ser rude, sr. Noonan.
Eu não estava sendo rude. Se quisesse sê-lo, teria despachado uma
dose de repelente de barata na cara dele.
— Max Devore e sua acompanhante tentaram me afogar no lago esta
tarde. Se minhas maneiras parecem um pouco frias para você,
provavelmente é por isso.
A expressão de choque de Osgood foi real, acho eu.
— O senhor deve estar trabalhando demais em seu projeto, sr.
Noonan. Max Devore vai fazer 86 anos no próximo aniversário... se chegar
lá, o que agora parece um pouco incerto. O pobre velho mal consegue andar
de sua cadeira para a cama, no momento. Quanto a Rogette...
— Sei aonde quer chegar — eu disse. — Na verdade, já sei disso há
vinte minutos, sem qualquer ajuda do senhor. Eu mesmo quase nem
acredito, e olhe que eu estava lá. Pode me dar seja lá o que for que quer
me dar.
— Ótimo — disse ele, numa voz afetadamente correta que queria
dizer: “Muito bem, que seja desse modo.” Abriu o zíper de um
compartimento de sua pasta de couro e retirou um envelope branco
tamanho oficial, fechado. Eu o peguei, esperando que Osgood não pudesse
sentir como meu coração batia. Devore movia-se bastante rápido para um
homem que viajava com um tanque de oxigênio. A questão era: que espécie
de movimento era aquele?
— Obrigado — eu disse, começando a fechar a porta. — Eu lhe daria
uma cerveja, mas deixei minha carteira na cômoda.
— Espere! O senhor deve ler a carta e me dar uma resposta.
Levantei as sobrancelhas.
— Não sei de onde Devore tirou a ideia de que pode me dar ordens,
mas não tenho a menor intenção de permitir que ele influencie meu
comportamento. Cai fora.
Seus lábios viraram para baixo, criando profundas covinhas nos
cantos da boca, e de repente ele não parecia mais Woody Allen de todo.
Parecia um corretor de imóveis de 50 anos que tinha vendido a alma ao
diabo e agora não suportava ver ninguém puxando a cauda bifurcada do
patrão.
— Um aviso de amigo, sr. Noonan, o senhor vai querer segui-lo. Max
Devore não é um homem com quem se brinque.
— Sorte a minha, porque eu não estou brincando.
Fechei a porta e permaneci no vestíbulo, segurando o envelope e
observando o sr. Imobiliária Próximo Século. Ele parecia irritado e confuso
— ninguém o tinha colocado para fora ultimamente, imaginei. Talvez isso
lhe fizesse bem. Emprestasse um pouco de perspectiva à sua vida.
Lembrasse a ele que, com Max Devore ou não, ainda assim Richie Osgood
continuaria tendo só pouco mais de 1,60 metro de altura. Mesmo com botas
de caubói.
— Sr. Devore quer uma resposta! — gritou ele através da porta
fechada.
— Eu telefono — gritei em resposta, então lentamente dei o dedo,
como tinha esperado dar a Max e Rogette. Fiquei olhando até que ele
voltasse à estrada e eu tivesse a certeza de que se fora. Então entrei na
sala e abri o envelope. Dentro dele havia uma única folha de papel,
tenuemente cheirosa com o perfume que minha mãe usava quando eu era
garoto. White Shoulders, acho que se chamava. No alto — em letras impressas em relevo, nítidas, elegantes — lia-se:

                                                   ROGETTE D. WHITMORE
Abaixo disso estava o seguinte recado, escrito numa caligrafia feminina ligeiramente trêmula:
20h30
Caro sr. Noonan,

Max quer que eu lhe transmita como ficou contente por
encontrá-lo! Faço eco a seus sentimentos. O senhor é um
homem muito divertido e engraçado! Apreciamos muito suas travessuras.
Agora, aos negócios. M. lhe oferece uma proposta muito
simples: se o senhor prometer deixar de fazer perguntas
sobre ele, e se prometer parar todas as manobras legais — se
o senhor prometer deixá-lo descansar em paz, digamos —,
então o sr. Devore promete cessar todos os esforços para
ganhar a custódia de sua neta. Se o senhor concordar com
isso, só precisa dizer ao sr. Osgood “Eu concordo”. Ele levará
o recado! Max espera voltar à Califórnia de avião particular
muito em breve — ele tem negócios que não podem mais ser
adiados, embora tenha apreciado sua temporada aqui e achado
o senhor especialmente interessante. Quer também que eu lhe
lembre de que a custódia tem suas responsabilidades e insiste
para que o senhor não esqueça que ele lhe disse isso.
Rogette
P.S. Ele lembra que o senhor não respondeu à pergunta dele —
a boceta dela suga? Max está muito curioso sobre este ponto.
R.

Li o bilhete uma segunda vez, depois uma terceira. Coloquei-o sobre
a mesa e o li pela quarta vez. Era como se eu não conseguisse apreender
seu sentido. Tive que reprimir um ímpeto de voar para o telefone e ligar
para Mattie imediatamente. Terminou, Mattie, eu diria. Tomar seu emprego
e me empurrar no lago foram os últimos tiros da guerra. Ele está
desistindo.
Não. Não até que eu tivesse certeza absoluta.
Em vez disso liguei para o Warrington’s, onde recebi minha quarta
mensagem gravada da noite. Devore e Whitmore também não tinham se
dado ao trabalho de deixar nela nada caloroso ou vago; uma voz tão gelada
como a máquina de fazer gelo de um motel apenas me disse para deixar o
recado depois do bipe.
— É Noonan — eu disse. Antes que pudesse prosseguir, ouvi um
clique e alguém pegou o telefone.
— Gostou de nadar? — perguntou Rogette Whitmore numa voz rouca
e zombeteira. Se eu não a tivesse visto em carne e osso, poderia ter
imaginado alguém tipo Barbara Stanwyck em seu aspecto mais friamente
atraente, vestindo uma camisola de seda cor de pêssego e enrolada sobre
um sofá de veludo vermelho, o telefone numa das mãos e a piteira de
marfim na outra.
— Se eu tivesse alcançado a senhora, srta. Whitmore, teria feito
com que entendesse perfeitamente o que sinto.
— Oooh — disse ela. — Minhas coxas estão comichando.
— Por favor, poupe-me a imagem de suas coxas.
— Pode me jogar pedras, sr. Noonan, eu aguento a pancada — disse.
— A que devemos o prazer de seu telefonema?
— Mandei Osgood embora sem resposta.
— Max achou que o senhor faria isso. Ele disse: “Nosso jovem
devasso acredita no valor da resposta pessoal. Pode-se dizer isso só de
olhar para ele.”
— Ele fica de mau humor quando perde, não é?
— Sr. Devore não perde. — A voz dela caiu pelo menos vinte graus e
todo o falso bom humor desceu pelo ralo da pia. — Ele pode mudar seus
objetivos, mas não perde. O senhor é que parecia um perdedor esta noite,
sr. Noonan, chapinhando e berrando no lago. Ficou assustado, não ficou?
— Fiquei. Bastante.
— E tinha motivos. Será que sabe a sorte que teve?
— Posso lhe dizer uma coisa?
— Claro, Mike, posso chamá-lo de Mike?
— Por que não se atém apenas a sr. Noonan? Agora, está ouvindo?
— Com a respiração suspensa.
— Seu patrão é velho, maluco e acho que ele já passou do ponto de
poder lidar eficazmente com uma ação de custódia. Ele foi derrotado uma
semana atrás.
— O senhor conseguiu uma vantagem?
— Consegui, sim, portanto entenda bem: se um de vocês tentar de
novo, ainda que remotamente, algo parecido com o que fizeram, vou atrás
desse velho filho da puta e enfio a máscara de oxigênio suja de catarro pelo
rabo dele de um modo que ele vai poder arejar os pulmões pelo rabo. E se
eu a encontrar na Rua, srta. Whitmore, a usarei para fazer arremesso de
peso. Está entendendo?
Parei, respirei fundo, surpreso e também chateado comigo mesmo.
Se alguém tivesse me dito que eu pronunciaria tais palavras, eu teria
debochado da afirmação.
Depois de um longo silêncio, perguntei:
— Srta. Whitmore? Ainda está aí?
— Estou — disse ela. Queria que ficasse furiosa, mas ela na
realidade pareceu se divertir. — Quem está de mau humor agora, sr.
Noonan?
— Eu — falei —, e não se esqueça disso, sua vaca atiradora de
pedras.
— Qual é sua resposta para o sr. Devore?
— Temos um trato. Eu fecho a boca, os advogados fecham a boca,
ele sai da vida de Mattie e Kyra. Por outro lado, se ele continuar a...
— Já sei, já sei, o senhor pega ele e bate nele. Estou me perguntando
como se sentirá sobre isso daqui a uma semana, sua criatura arrogante e
estúpida!
Antes que eu pudesse responder — esteve na ponta da minha língua
dizer a ela que, mesmo nos melhores arremessos, ela ainda lançava como
uma garota —, Rogette desligou.
Permaneci ali com o telefone na mão por alguns segundos e então o
coloquei no gancho. Aquilo seria um truque? Parecia um truque, mas ao
mesmo tempo não parecia. John precisava saber disso. Ele não havia
deixado o número de telefone dos pais na secretária eletrônica, mas Mattie
tinha o número. Contudo, se eu ligasse para ela de novo, eu me sentiria
obrigado a lhe contar o que tinha acabado de acontecer. Podia ser uma boa
ideia deixar de lado qualquer telefonema até o dia seguinte, com uma noite
de sono no meio.
Enfiei a mão no bolso e quase a empalei na faca de carne escondida
ali. Eu a esqueci completamente. Puxei-a para fora, levei-a novamente para
a cozinha e a coloquei de novo na gaveta. A seguir, pesquei a lata de
aerossol, virei-me para colocá-la de novo em cima de geladeira com suas
irmãs mais velhas e então parei. Dentro do círculo de frutas e legumes dos ímãs estava isso:

v
a
a
19

Eu mesmo teria feito aquilo? Teria estado tão mergulhado na zona
de abstração, tão em transe que fiz uma minipalavra cruzada na geladeira
sem lembrar? E se tinha sido isso, o que significava?
Talvez outro tenha posto isso, pensei. Um de meus invisíveis
companheiros de casa.
— Vá a 19 — eu disse, esticando a mão e tocando as letras. Uma
diretriz de bússola? A ordem das letras sugere uma leitura vertical, talvez
da dica 19 de uma palavra cruzada. Às vezes, num problema de palavras
cruzadas, tem-se uma pista que diz simplesmente Ver 19 Horizontais ou
Ver 19 Verticais. Se havia um significado naquilo, que palavras cruzadas eu
devia consultar?
— Bem que eu podia ter uma ajudinha nisso — falei, mas não houve
resposta, não do plano astral, não de dentro de minha mente. Finalmente
peguei uma lata de cerveja prometendo a mim mesmo levá-la até o sofá.
Peguei meu livro de palavras cruzadas Nível difícil e procurei aquela em que
estava trabalhando no momento. Chamava-se “Bebida É Mais Rápido”, e era
cheia daqueles jogos de palavras estúpidos que só os viciados em palavras
cruzadas acham divertido. Ator embriagado? Marlon Brandy. Romance do
sul embriagado? Tequila Mockingbird.[Trocadilho com o título do livro To Kill a Mockingbird (O sol é para
todos), de Harper Lee. E a definição de 19]erticais era
babá oriental, que todos os cruciverbalistas do universo sabem que é amah.
Nada em “Bebida É Mais Rápido” tinha conexão com o que estava ocorrendo
em minha vida, pelo menos que eu pudesse ver.
Passei por alguns dos outros problemas do livro, olhando o 19
Verticais. Ferramenta do marmoreiro (cinzel). Etanol e éter dimetil, e.g.
(isômeros). Joguei o livro para o lado com aversão. De qualquer modo,
quem disse que tinha que ser especificamente essa coletânea de palavras
cruzadas? Havia provavelmente cinquenta outras na casa, quatro ou cinco
na gaveta da própria mesinha em que estava agora minha lata de cerveja.
Inclinei-me para trás no sofá e fechei os olhos.
Sempre gostei de uma puta... às vezes o lugar delas era em cima da
minha cara.
É ali que bons cachorrinhos e cães maus podem andar lado a lado.
Não há nenhum bêbado da cidade aqui, todos nós fazemos turnos.
Foi aqui que aconteceu. É.
Adormeci e acordei três horas mais tarde com o pescoço duro e a
parte de trás da cabeça latejando tremendamente. Trovões rolavam surdos
ao longe nas White Mountains, e a casa estava muito quente. Quando
levantei do sofá, minhas coxas praticamente se descolaram do tecido, de
tão grudadas. Arrastei-me para a ala norte como um homem muito velho,
olhei para minhas roupas molhadas, pensei em levá-las para a sala de
lavandaria e cheguei à conclusão de que se eu me curvasse tanto, a cabeça
poderia explodir.
— Vocês, fantasmas, cuidem disso — murmurei. — Se podem mudar
de lugar as calças e as roupas de baixo no secador, podem pôr minhas
roupas na cesta.
Peguei três comprimidos de Tylenol e fui para a cama. Em
determinado momento, acordei uma segunda vez e ouvi a criança fantasma
soluçando.
— Pare — falei para ela. — Pare com isso, Ki, ninguém vai levar você a lugar nenhum. Você está segura. — Depois voltei a dormir de novo.




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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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