me pegado num momento pior, mais fraco e mais aterrorizante. E acho que
tudo, daquela hora em diante, foi quase preordenado. Dali à terrível
tempestade da qual ainda falam nesta parte do mundo, tudo veio abaixo
como um deslizamento de rochas.
Eu me senti bem por todo o resto da tarde de sexta-feira — minha
conversa com Bonnie tinha deixado um monte de perguntas não
respondidas, mas mesmo assim tinha sido tonificante. Preparei rapidamente
uns legumes ao estilo chinês (em reparação ao meu último mergulho no
aparelho de frituras do Village Café) e comi-o enquanto assistia ao
noticiário do princípio da noite. No outro lado do lago, o sol mergulhava nas
montanhas e inundava de ouro a sala de estar. Quando o noticiário
terminou, resolvi dar um passeio na direção norte ao longo da Rua — iria
tão longe quanto pudesse e mesmo assim me certificaria de voltar para
casa quando escurecesse; enquanto caminhasse pensaria nas coisas que
Bill Dean e Bonnie Amudson tinham me contado... Pensaria nelas pelo
caminho em que às vezes andava e nos fios de trama em que vinha
trabalhando.
Desci os degraus de dormentes ainda me sentindo perfeitamente
bem (confuso, mas bem), saí para a Rua e fiz uma pausa para olhar a
Senhora Verde. Mesmo com o sol do entardecer ainda brilhando em cheio
sobre ela, era difícil tomá-la pelo que era realmente — apenas uma bétula
com um pinheiro meio morto por trás, com um galho que parecia um braço
apontando. Era como se a Senhora Verde estivesse dizendo, vá para o norte,
rapaz, vá para o norte. Bem, eu não era exatamente um rapaz, mas podia ir
para o norte, sem dúvida. Por enquanto, pelo menos.
Apesar disso fiquei ali mais um momento, estudando
desconfortavelmente o rosto que eu podia ver nas moitas, não gostando do
modo como o leve sacudir da brisa parecia produzir quase uma boca rindo
sarcasticamente. Acho que talvez tivesse começado a me sentir um pouco
mal então, mas estava preocupado demais para notá-lo. Andei na direção
norte, imaginando o que exatamente Jo podia ter escrito... pois já então eu
começava a acreditar que ela pudesse ter escrito algo, afinal de contas. Por
que outra razão eu teria encontrado minha velha máquina de escrever no
estúdio dela? Eu vasculharia a casa, decidi. Eu a vasculharia
cuidadosamente e...
socorro estou afogando
A voz vinha do bosque, da água, de mim mesmo. Uma onda de
tontura passou por meus pensamentos, levantando-os e espalhando-se
como folhas numa brisa. Parei. De repente, nunca me senti tão mal, tão
azarado na vida. Meu peito estava apertado. O estômago dobrava-se para
dentro como uma flor gelada. Os olhos enchiam-se de uma água fria que
não tinha qualquer semelhança com lágrimas, e eu sabia o que estava
chegando. Não, tentei dizer, mas a palavra não saiu.
Em vez disso, minha boca se encheu com o gosto gelado da água do
lago, todos aqueles minerais escuros, e subitamente as árvores estavam
tremeluzindo diante dos meus olhos como se eu as olhasse através de um
líquido claro, e a pressão em meu peito tinha se tornado horrivelmente
localizada, tomando a forma de mãos. Elas me puxavam para baixo.
— Não vai parar de fazer isso? — alguém perguntou, quase gritou.
Não havia ninguém na Rua a não ser eu, mas ouvi a voz claramente. —
Nunca vai parar de fazer isso?
O que veio a seguir não foi uma voz exterior, mas pensamentos
estranhos em minha cabeça. Eles se debatiam contra as paredes de meu
crânio como mariposas dentro de uma luminária... ou dentro de uma
lanterna japonesa.
socorro estou afogando
socorro estou afogando
o homem do boné azul diz que me pegou
o homem do boné azul diz que não vai me deixar passear
socorro estou afogando
perdi minhas frutinhas no atalho
ele tá me segurando
o rosto dele tremula e parece mau
me solta me solta Ah meu bom Jesus me solta
deixa eu sair, o jogo acabou POR FAVOR
DEIXA EU SAIR você continua e para agora
ela grita meu nome
ela o grita tão ALTO
Curvei-me para a frente num pânico total, abri a boca e da boca
aberta e retorcida saiu um frio jorro de...
Absolutamente nada.
O horror daquilo passou e ao mesmo tempo não passou. Ainda me
sentia tremendamente enjoado, como se tivesse comido algo que havia
ofendido violentamente meu corpo, uma espécie de formicida ou talvez um
cogumelo fatal, do tipo que os guias de cogumelos de Jo mostravam em
destaque rodeados por um traço vermelho. Cambaleei para a frente uma
meia dúzia de passos, tendo engulhos secos vindos de uma garganta que
ainda se achava molhada. Havia outra bétula onde a margem caía para
dentro do lago, arqueando graciosamente o ventre branco sobre a água
como se para ver seu reflexo à luz lisonjeira do entardecer. Agarrei-a como
um bêbado agarra um poste.
A pressão em meu peito começou a diminuir, mas deixou uma dor
tão real quanto a chuva. Agarrei-me à árvore, o coração batendo com força,
e subitamente tive consciência de que algo fedia — um cheiro pior e mais
poluído do que o de um tanque séptico entupido que tivesse fervilhado por
todo o verão sob o sol incandescente. Com ele havia a sensação de uma
presença medonha emitindo aquele odor, algo que devia estar morto e não
estava.
Ah, para, deixa eu sair, o jogo acabou, eu faço qualquer coisa pra
parar, tentei dizer, e mesmo assim nada apareceu. Então sumiu. Não senti
aquele cheiro, só o do lago e do bosque... mas pude ver uma coisa: um
garoto no lago, um garotinho escuro e afogado deitado de costas. Suas
maçãs do rosto estavam intumescidas. A boca pendia frouxamente aberta.
Os olhos se mostravam brancos como os olhos de uma estátua.
Minha boca se encheu novamente com o impiedoso gosto de ferro do
lago. Me ajuda, me solta, socorro estou afogando. Eu me inclinei, gritando
mentalmente, gritando para o rosto morto, e percebi que olhava para mim
mesmo, através da água rosada e trêmula do pôr do sol eu olhava para um
homem branco de calça jeans e camisa polo amarela agarrado a uma bétula
oscilante e tentando gritar, seu rosto líquido em movimento, os olhos
momentaneamente tapados pela passagem de uma pequena perca
perseguindo um saboroso bichinho, eu era ao mesmo tempo o garoto escuro
e o homem branco, afogado na água e afogando no ar, é isso?, é isso que
está acontecendo, bata um para sim e dois para não.
Minha ânsia de vômito produziu apenas um único fio de saliva e,
inacreditavelmente, um peixe pulou para ela. Eles arremeteriam contra
qualquer coisa ao crepúsculo; algo na luz que morria devia deixá-los loucos.
O peixe bateu na água novamente a uns 2 metros da margem, espadanando
numa ondinha circular, e desapareceu — assim como o gosto em minha
boca, o cheiro horrível, o rosto tremeluzente e afogado da criança preta —
um preto, era como ele teria pensado de si mesmo — cujo nome quase
certamente tinha sido Tidwell.
Olhei para a direita e vi a parte dianteira de uma rocha destacandose
da cobertura em torno dela. Ali, bem ali, pensei, e como se para
confirmar isso, o horrível cheiro putrefato chegou a mim num sopro
novamente, aparentemente vindo do solo.
Fechei os olhos, ainda agarrado na bétula em desespero, sentindo-me
fraco, enjoado e doente, e foi então que Max Devore, aquele louco, falou atrás de mim. “Diga aí, seu devasso, onde está a puta?”
Virei-me e lá estava ele, com Rogette Whitmore a seu lado. Foi a
única vez que o encontrei, mas foi suficiente. Acredite, uma vez foi mais do que suficiente.
Sua cadeira de rodas mal parecia uma cadeira de rodas mesmo.
Assemelhava-se mais a uma mescla de motocicleta com assento do lado e
um dispositivo para aterrissar na lua. Meia dúzia de rodas cromadas
percorriam seus dois lados. As rodas maiores — quatro delas, acho eu —
corriam numa fileira pela parte de trás. Nenhuma parecia exatamente no
mesmo nível, e percebi que cada uma ligava-se a seu próprio mecanismo
de suspensão. Devore teria um deslizar suave num terreno bem mais
áspero que a Rua. Acima das rodas traseiras havia um compartimento para
o motor embutido. Uma nacele de fibra de vidro preta com pequenas listras
vermelhas que não teriam ficado deslocadas num carro de corrida escondia
as pernas de Devore. Implantado no centro dela via-se um dispositivo que
parecia com minha antena parabólica... uma espécie de sistema
computadorizado para evitar obstáculos, acho eu. Talvez até um piloto
automático. Os braços da cadeira eram largos e cobertos de controles.
Embutido no lado esquerdo da máquina estava um tanque verde de oxigênio
de pouco mais de um metro de comprimento. Uma mangueira o ligava a
um tubo de plástico claro e sanfonado; o tubo ligava-se a uma máscara que
descansava no colo de Devore. Aquilo me fez pensar no velho com a
Stenomask. Vindo depois do que tinha acabado de acontecer, eu podia
considerar esse veículo ao estilo de Tom Clancy uma alucinação, a não ser
pelo adesivo de para-choque na nacele, abaixo da antena.
Neste entardecer, a mulher que eu tinha visto do lado de fora do
Sunset Bar no Warrington’s estava usando uma blusa branca de mangas
compridas e calças pretas tão afuniladas que faziam suas pernas
parecerem espadas embainhadas. Seu rosto estreito e as faces encovadas a
assemelhavam mais do que nunca com a figura gritando de Edvard Munch.
Seu cabelo branco pendia em torno do rosto como um capuz escorrido. Os
lábios estavam pintados com um batom vermelho tão vivo que a boca
parecia sangrar.
Ela era velha e feia, mas um prêmio se comparada ao sogro de
Mattie. Esquelético, com os lábios azuis, a pele em torno dos olhos e dos
cantos da boca de um roxo-escuro, ele parecia algo que um arqueólogo
tivesse descoberto na sala fúnebre de uma pirâmide, rodeado pelas esposas
e animais de estimação empalhados, coberto com suas joias favoritas.
Alguns fios de cabelos brancos ainda se prendiam ao crânio escamoso;
mais tufos projetavam-se de orelhas enormes que pareciam ter derretido
como esculturas deixadas ao sol. Ele usava calças de algodão branco e uma
camisa azul cheia de ondas encapeladas. Acrescente-se a isso uma pequena
boina preta e ele teria parecido um artista francês do século XIX no final
de uma vida muito longa.
Atravessada em seu colo estava uma bengala de madeira preta.
Aconchegado na extremidade se via um guidom de bicicleta vermelho vivo.
Os dedos que o agarravam pareciam poderosos, mas estavam ficando tão
pretos quanto a própria bengala. Sua circulação ia falhando, e eu não podia
imaginar qual seria a aparência de seus pés e pernas.
— A puta fugiu e abandonou você, é?
Tentei dizer algo. De minha boca saiu um grasnido, nada mais. Ainda
me agarrava à bétula. Soltei-a e tentei me endireitar, mas minhas pernas
ainda estavam fracas e tive que agarrar a árvore novamente.
Ele acionou uma alavanca de prata e a cadeira deslizou uns 3 metros
mais para perto de mim, encurtando pela metade a distância entre nós. O
som que fazia era de um sedoso sussurro; observá-la era como ver um
tapete mágico do mal. Suas muitas rodas erguiam-se e desciam
independentes umas das outras e lampejavam ante o sol declinante, que
tinha começado a assumir um brilho avermelhado. E quando ele se
aproximou, senti a impressão causada pelo homem. Seu corpo apodrecia
debaixo dele, mas a força que emanava era inegável e intimidadora, como
uma tempestade elétrica. A mulher deu uns passos a seu lado, olhando-me
numa diversão silenciosa. Seus olhos eram rosados. Imaginei que fossem
cinzentos e que o sol poente estava refletido neles, mas acho agora que ela
era uma albina.
— Sempre gostei de uma puta — disse ele. Arrancou a palavra de si,
fazendo o uuuuu soar com força. — Não é, Rogette?
— É, sim — disse ela. — No lugar delas.
— Às vezes, o lugar delas era em cima da minha cara! — exclamou
ele com uma espécie de atrevimento insano, como se ela o estivesse
contradizendo. — Onde está ela, rapaz? Em que cara ela está sentando
agora? Fico imaginando qual. Naquele advogado esperto que você descobriu?
Ah, sei tudo sobre ele, a partir da Conduta Insatisfatória que ele teve na
terceira série. Meu negócio é saber de coisas. É o segredo do meu sucesso.
Com um esforço enorme, eu me endireitei.
— O que está fazendo aqui?
— Uma caminhada terapêutica, como você. Não há nenhuma lei
contra isso, há? A Rua pertence a qualquer um que quiser usá-la. Você não
está por aqui há muito tempo, jovem devasso, mas certamente está há
tempo suficiente para saber disso. É a nossa versão do parque da cidade,
onde bons cachorrinhos e cães maus podem andar lado a lado.
Mais uma vez usando a mão que não agarrava o guidom de bicicleta
vermelho, pegou a máscara de oxigênio, sugou profundamente e a deixou
cair no colo. Sorriu — um sorriso inominável de cumplicidade que revelou
gengivas cor de iodo.
— Ela é boa? Aquela sua puuuta? Ela deve ser boa para ter mantido
meu filho prisioneiro naquele trailerzinho nojento onde ela mora. E então
vem você mesmo antes de os vermes terem acabado de comer os olhos de
meu filho. A boceta dela suga?
— Cale a boca.
Rogette Whitmore jogou a cabeça para trás e riu. O som era como o
grito de um coelho preso nas garras de uma coruja, e senti um calafrio.
Tive uma ideia de como a mulher era louca. Graças a Deus, eles eram
velhos.
— Você acertou num nervo, Max — disse ela.
— O que é que você quer? — Respirei com mais força... e senti
novamente a putrefação. Tive uma ânsia de vômito. Não queria, mas não
consegui evitá-lo.
Devore endireitou-se na cadeira e respirou profundamente, como se
debochasse de mim. Naquele momento, ele parecia Robert Duvall em
Apocalypse Now, andando a passos largos pela praia e dizendo ao mundo
como adorava o cheiro de napalm pela manhã. O sorriso de Devore se
ampliou.
— Lugar adorável, não é? Um ponto confortável para se parar e
pensar, você não acha? — Ele olhou em volta. — Foi aqui que aconteceu,
mesmo. Sim.
— Onde o garoto se afogou.
Diante daquilo, achei que o sorriso de Whitmore tivesse ficado
momentaneamente pouco à vontade. O de Devore não. Ele agarrou sua
translúcida máscara de oxigênio com um movimento excessivamente amplo
de velho, dedos que mais tateavam que pegavam. Pude ver pequenas bolhas
de muco presas no lado de dentro dela. Ele sugou profundamente de novo, e
colocou a máscara de lado mais uma vez.
— Uns trinta sujeitos ou mais se afogaram neste lago, é só o que
eles sabem — disse. — O que é um garoto, mais ou menos?
— Não entendi. Foram dois garotos Tidwell que morreram aqui? O
que morreu de toxemia e um...
— O senhor se importa com sua alma, sr. Noonan? Sua alma
imortal? A borboleta de Deus presa num casulo de carne que logo irá feder
como a minha?
Eu não disse nada. A estranheza do que havia acontecido antes de
ele ter chegado estava passando. O que a substituía era seu incrível
magnetismo pessoal. Nunca em minha vida eu senti tanta força crua.
Também não havia nada sobrenatural nela, e crua é exatamente a palavra
certa. Eu poderia ter corrido. Em outras circunstâncias, tenho certeza de
que o teria feito. Certamente não foi a coragem que me manteve onde eu
estava; minhas pernas ainda pareciam de borracha, e tive medo de cair.
— Vou lhe dar uma chance de salvar sua alma — disse Devore.
Ergueu um dedo para ilustrar a ideia de uma. — Vá embora, meu bom
devasso. Agora mesmo, com as roupas do corpo. Não se preocupe em fazer
a mala, não pare nem mesmo para ter certeza de que o fogão está
apagado. Vá. Deixe a puta e a putinha.
— Deixá-las para você.
— É, para mim. Eu farei as coisas que precisam ser feitas. Almas
são para estudantes de artes liberais, Noonan. Eu era engenheiro.
— Vá se foder.
Rogette Whitmore deu novamente o grito de coelho.
O velho ficou ali na cadeira, de cabeça baixa, rindo lividamente e
parecendo alguém saído dentre os mortos.
— Tem certeza que quer ser o cara, Noonan? Para ela pouco
importa, você sabe, tanto faz você ou eu, é tudo o mesmo para ela.
— Não sei do que está falando. — Respirei profundamente de novo e
desta ver o ar pareceu normal. Afastei-me um passo da bétula, e minhas
pernas também estavam bem. — E pouco me importa. Você nunca vai ficar
com Kyra. Nunca, no que sobra de sua vida sórdida. Eu jamais verei isso
acontecer.
— Amigo, você vai ver um bocado de coisas — disse Devore,
mostrando os dentes num sorriso, assim como as gengivas cor de iodo. —
Antes de julho terminar, você provavelmente terá visto tanto que vai querer
ter arrancado os olhos das órbitas em junho.
— Vou para casa. Deixe-me passar.
— Pois então vá, como é que eu poderia impedir? — perguntou. — A
Rua pertence a todos. — Içou a máscara de oxigênio do colo de novo e
tomou outra saudável inalação. Deixou-a cair no colo e instalou a mão
esquerda no braço de sua cadeira de rodas Buck Rogers.
Dei um passo na direção dele, mas quase antes que eu soubesse o
que estava acontecendo, ele investiu com a cadeira de rodas contra mim.
Poderia ter me atingido e machucado bastante — quebrado uma das minhas
pernas ou as duas, não duvido —, mas parou pouco antes disso. Dei um
pulo para trás, mas só porque ele deixou. Notei que Whitmore estava rindo
novamente.
— O que foi, Noonan?
— Saia do meu caminho. Estou avisando.
— A puta deixou você nervoso, é?
Comecei a me mover para a esquerda, querendo passar por ele
daquele lado, mas, numa fração de segundo, ele virou a cadeira, deslizou
para a frente e cortou meu caminho.
— Saia da TR, Noonan, estou lhe dando um bom av...
Virei para a direita, desta vez para o lado do lago, e teria me
esgueirado por ele com facilidade se não fosse o punho, muito pequeno e
duro, que se abateu sobre o lado esquerdo de meu rosto. A vaca de cabelos
brancos estava usando um anel e a pedra tinha me cortado atrás da orelha.
Senti o ardor e o jorro quente de sangue. Girei, estiquei as duas mãos e a
empurrei. Ela caiu no atalho atapetado de agulhas de pinheiro com um
guincho de ultraje surpreso. No momento seguinte, algo me atingiu a nuca.
Um momentâneo fulgor laranja iluminou minha visão. Cambaleei para trás
no que me pareceu um movimento em câmara lenta, bracejando, e Devore
entrou novamente no meu ângulo de visão. Ele havia se torcido na cadeira
de roda, a cabeça escamosa projetada para a frente, a bengala com que me
atingira ainda levantada. Se fosse dez anos mais moço, acredito que teria
fraturado meu crânio em vez de apenas produzir a momentânea luz cor de
laranja.
Corri para minha velha amiga, a bétula. Levei a mão à orelha e olhei
incrédulo o sangue na ponta dos meus dedos. A cabeça doía do golpe que
Devore tinha me desferido.
Whitmore estava lutando para se levantar, sacudindo as agulhas de
pinheiro de sua calça comprida e me olhando com um sorriso furioso. Suas
maçãs do rosto tinham sido tomadas por um tênue enrubescimento cor-derosa.
Os lábios vermelhos demais se arreganhavam mostrando dentes
pequenos. À luz do sol que se punha, seus olhos pareciam incandescentes.
— Saia do meu caminho — eu disse, mas minha voz soou pequena e
fraca.
— Não — disse Devore, e depositou o cano preto da bengala na
nacele curvando-se por cima da frente da cadeira de rodas. Então pude ver
o garotinho que tinha se decidido a ter o trenó por mais que cortasse as
mãos ao fazê-lo. Podia vê-lo nitidamente. — Não, seu viadinho comedor de
puta. Não saio.
Acionou a alavanca de prata de novo e a cadeira de rodas disparou
silenciosamente na minha direção. Se eu tivesse ficado onde estava, ele
teria me atravessado com a bengala tão certamente como qualquer duque
mau numa história de Alexandre Dumas. Provavelmente teria esmagado os
ossos frágeis de sua mão direita e arrancado o braço direito de sua
articulação no choque, mas aquele homem jamais havia se preocupado com
essas coisas; deixava a contagem dos prejuízos para a gentinha. Se eu
tivesse hesitado por choque ou incredulidade, ele teria me matado, tenho
certeza. Em vez disso, rolei para a esquerda. Meus tênis deslizaram na
margem de escorregadias agulhas de pinheiro por um momento. Então perdi contato com o solo e estava caindo.
Bati na água desajeitadamente e muito próximo da margem. Meu pé
esquerdo agarrou numa raiz submersa, torcendo-se. A dor foi enorme, algo
que pareceu o som de um trovão. Abri a boca para gritar e a água do lago
entrou nela — aquele sabor escuro, gelado e metálico, dessa vez de
verdade. Eu a tossi para fora, espirrando-a também pelo nariz, e chapinhei
para longe de onde tinha caído, pensando O garoto, o garoto morto está
aqui embaixo, e se ele estender a mão e me agarrar?
Virei de costas, ainda me debatendo e tossindo, bem consciente de
que o jeans grudava-se pegajosamente às pernas e ao gancho, pensando
absurdamente em minha carteira — eu não me importava com os cartões
de crédito ou a carteira de motorista, mas tinha dois bons instantâneos de
Jo nela que se estragariam.
Vi que Devore quase havia se atirado margem abaixo, e por um
momento achei que ele ainda podia cair. A frente de sua cadeira projetavase
por cima do lugar de onde caí (eu via as curtas marcas de meus tênis
exatamente à esquerda das raízes parcialmente expostas da bétula), e
apesar de as rodas da frente ainda estarem no solo, a terra esfarelada se
esvaía sob elas em pequenas avalanches secas que rolavam pelo declive e
batiam rapidamente dentro d’água, criando um padrão de pequenas ondas
entrecruzadas. Whitmore estava agarrada às costas da cadeira, puxando-a
para trás, mas o peso era excessivo para ela; se Devore ia ser salvo, ele
próprio teria que fazê-lo. Em pé e mergulhado no lago até a cintura, torci
para que caísse.
A garra arroxeada de sua mão esquerda tinha recapturado a alavanca
de prata depois de várias tentativas. Um dedo a puxou para trás, e a
cadeira deu marcha a ré da margem com um chuveiro final de pedras e
poeira. Whitmore pulou de modo travesso para um lado para impedir que a
cadeira passasse por cima de seus pés.
Devore manipulou os controles, virou a cadeira para se voltar para
onde eu estava na água, a pouco mais de 2 metros de distância da bétula
pendente, e então cutucou a cadeira para a frente até que ficasse à beira
da Rua, mas num ponto seguro de onde não caísse. Whitmore tinha se
afastado de nós inteiramente; estava abaixada, com o traseiro apontando
na minha direção. Se eu chegasse a pensar nela, e não consigo me lembrar
de tê-lo feito, suponho que a imaginaria tentando recuperar a respiração.
De nós três, Devore era o que parecia estar em melhor forma, sem
nem mesmo precisar de uma dose da máscara de oxigênio em seu colo. A
luz do entardecer refletia-se em cheio em seu rosto, fazendo-o parecer
com uma abóbora de Halloween meio podre e sorridente a que tivessem
ensopado de gasolina e depois incendiado.
— Gostando do seu banho? — perguntou, e riu.
Olhei em volta, esperando ver um casal caminhando ou talvez um
pescador procurando um lugar onde pudesse jogar sua linha mais uma vez
antes de escurecer... e ao mesmo tempo tinha esperanças de não ver
ninguém. Estava zangado, machucado e assustado. Sentia-me, sobretudo,
constrangido. Fui atirado no lago por um homem de 85 anos... um homem
que mostrava todos os sinais de ficar por ali e me fazer um objeto de
escárnio.
Comecei a caminhar na água para a direita — ao sul, de volta à
minha casa. A água estava na minha cintura, fria e quase refrescante agora
que havia me acostumado com ela. Meus tênis pisavam em rochas e galhos
de árvores submersos. O tornozelo que torci ainda doía, mas estava me
aguentando. Se continuaria assim quando eu saísse do lago era outra
questão.
Devore dedilhou seus controles mais uma vez. A cadeira girou e veio
deslizando lentamente ao longo da Rua, mantendo facilmente o mesmo
ritmo que eu.
— Não apresentei você a Rogette adequadamente, apresentei? —
disse ele. — Ela foi uma atleta e tanto na faculdade, sabe? Softbol e hóquei
eram as suas especialidades, e ela manteve pelo menos algumas das
habilidades. Rogette, demonstre suas habilidades para este rapaz.
Whitmore passou pela cadeira de rodas movendo-se lentamente à
esquerda. Por um momento foi encoberta por ela. Quando pude vê-la
novamente, vi também o que estava segurando. Ela não tinha se curvado
para respirar.
Sorrindo, caminhou a passos largos pela margem com o braço
esquerdo dobrado contra o diafragma, aninhando as pedras que pegou da
beira do atalho. Escolheu um pedregulho mais ou menos do tamanho de
uma bola de golfe, recuou a mão para trás da orelha e o atirou. Duro. Ele
assobiou perto de minha têmpora esquerda e mergulhou dentro da água
atrás de mim.
— Ei! — gritei, mais surpreso do que com medo. Mesmo depois de
tudo que aconteceu antes, eu não conseguia acreditar no que estava
acontecendo.
— O que há de errado com você, Rogette? — perguntou Devore
como uma criança. — Você não costumava nunca lançar como uma garota.
Acerte nele!
A segunda pedra passou a 5 centímetros da minha cabeça. A terceira
foi um quebrador de dentes em potencial. Eu a desviei com a mão e com
um grito raivoso e atemorizado, só mais tarde notando que a pedra tinha
machucado minha mão. No momento, eu só tinha consciência do rosto
odioso e sorridente dela — o rosto de uma mulher que pagou dois dólares
numa ardilosa barraquinha de tiro ao alvo e pretendia ganhar o grande
ursinho de pelúcia mesmo que tivesse que ficar atirando a noite inteira.
E ela atirava rápido. As pedras choviam em torno de mim, algumas
lançando borrifos de água avermelhada à minha esquerda e direita, criando
pequenos gêiseres. Comecei a recuar. Com medo de me virar e nadar para
longe, com medo de que ela atirasse uma pedra realmente grande no
minuto que eu o fizesse. Mesmo assim, tinha que sair do seu alcance.
Enquanto isso, Devore estava dando um riso chiado de velho, seu rosto
miserável encolhido em si mesmo como o rosto de uma boneca malvada.
Uma das pedras me atingiu com força, batendo dolorosamente na
clavícula e quicando alto para o ar. Eu gritei e Whitmore também: “Hai”,
como um lutador de caratê que desfechou um bom chute.
Paciência para a retirada com ordem. Virei-me, nadei em direção à
água profunda e a vaca me arrebentou os meus miolos. As primeiras duas
pedras que jogou depois que comecei a nadar pareciam ter sido lançadas
para sondar a distância. Houve uma pausa quando tive tempo de pensar
Estou conseguindo, estou saindo de sua área de... e então algo atingiu a
parte de trás de minha cabeça. Eu o senti e ouvi ao mesmo tempo — foi
como o CLONK!, como algo que se lê numa história em quadrinhos de
Batman.
A superfície do lago ia do laranja brilhante ao vermelho brilhante e
dele ao escarlate-escuro. Eu podia ouvir ligeiramente Devore gritando de
aprovação e Whitmore deixando escapar seu estranho grito agudo. Tomei
outro bocado de água com gosto de ferro e fiquei tão tonto que tive que
lembrar a mim mesmo de cuspi-la, não engoli-la. Sentia agora meus pés
pesados demais para nadarem e a droga dos tênis pesavam uma tonelada.
Abaixei-os para ficar em pé, mas não consegui encontrar o fundo — tinha
me deslocado para onde não dava pé. Olhei em direção à praia. Estava
espetacular, fulgurando ao pôr do sol como um cenário de teatro iluminado
com gelatina brilhante vermelha e laranja. Eu estava provavelmente a uns 6
metros da praia agora. Devore e Whitmore permaneciam à beira da Rua,
observando. Pareciam Mamãe e Papai numa pintura de Grant Wood. Devore
estava usando a máscara novamente, mas eu podia ver que sorria dentro
dela. Whitmore também sorria.
Entrou mais água em minha boca. Cuspi a maior parte dela, mas
uma porção desceu, fazendo-me tossir e ter certa ânsia de vômito.
Comecei a afundar abaixo da superfície e lutei para voltar à tona, não
nadando, mas simplesmente espadanando alucinadamente, gastando nove
vezes mais energia do que precisava para permanecer flutuando. O pânico
fez sua primeira aparição, mordiscando através de minha perturbação
entontecida com agudos dentinhos de rato. Percebi que podia ouvir um
zumbido alto e doce. Quantos golpes minha pobre cabeça recebera? Um do
punho de Whitmore... um da bengala de Devore... uma pedra... ou tinham
sido duas? Jesus, não conseguia me lembrar.
Controle-se, pelo amor de Deus — você não vai deixar que ele o
derrote assim, vai? Afogá-lo como o garotinho foi afogado?
Não, não se eu pudesse evitá-lo.
Movimentei as pernas na água e passei a mão esquerda na parte de
trás da cabeça. Não muito acima da nuca encontrei um galo que ainda
estava crescendo. Quando o apertei, a dor me deu vontade de vomitar e
desmaiar ao mesmo tempo. Lágrimas subiram aos meus olhos e rolaram
pelo rosto abaixo. Havia apenas traços de sangue nas pontas de meus
dedos quando olhei para eles, mas é difícil avaliar cortes quando se está na
água.
— Você parece uma marmota presa na chuva, Noonan! — Agora a
voz dele parecia rolar até onde eu estava, como se cruzasse uma grande
distância.
— Foda-se! — gritei. — Vou ver você na cadeia por isso!
Ele olhou para Whitmore. Ela o olhou com uma expressão idêntica e
ambos riram. Se alguém tivesse colocado uma Uzi em minhas mãos
naquele momento, eu teria matado os dois sem qualquer hesitação e depois
pedido um segundo pente de balas para poder metralhar os corpos.
Sem qualquer arma nas mãos, comecei a nadar tipo cachorrinho em
direção ao sul, à minha casa. Eles se deslocaram ao longo da Rua comigo,
ele deslizando na cadeira de rodas quieta como um sussurro e ela andando
ao lado dele, tão solene como uma freira, fazendo uma pausa de vez em
quando para pegar o que parecia ser uma pedra.
Eu não havia nadado o suficiente para estar cansado, mas estava.
Era principalmente o choque, acho eu. Finalmente tentei respirar no
momento errado, engoli mais água e entrei totalmente em pânico. Comecei
a nadar em direção à praia, querendo chegar onde pudesse dar pé. Rogette
Whitmore começou a atirar pedras em mim imediatamente, primeiro
usando as que mantinha entre o braço esquerdo e o diafragma, depois as
que empilhou no colo de Devore. Ela estava aquecida, não lançava mais
como uma garota, e sua pontaria era mortal. As pedras levantavam a água
em torno de mim. Desviei de outra — uma grande que provavelmente teria
aberto a minha testa se tivesse me acertado —, mas a que veio a seguir
atingiu meu bíceps e fez nele um grande arranhão. Era suficiente. Rolei e
nadei para trás, para além de seu alcance, ofegando para respirar, tentando
manter a cabeça para cima apesar da dor crescente na nuca.
Quando estava longe, mexi as pernas e olhei para eles. Whitmore
tinha andado todo o caminho até a borda da margem, querendo reduzir cada
metro de distância que podia. Droga, cada centímetro. Devore estacionou
atrás dela na cadeira de rodas. Ambos estavam ainda sorrindo, e agora
seus rostos se mostravam tão vermelhos quanto o do diabo no inferno. Céu
vermelho noturno, alegria de marujo. Outros vinte minutos e ficaria escuro.
Poderia eu manter a cabeça acima d’água por mais vinte minutos? Achava
que sim, se não entrasse em pânico de novo, mas não por muito mais
tempo. Pensei em me afogar no escuro, olhando para cima e vendo Vênus
pouco antes de afundar pela última vez, e o pânico me cortou novamente
com seus dentes. O pânico era pior do que Rogette e suas pedras, muito
pior.
Talvez não pior do que Devore.
Olhei para os dois lados da parte costeira do lago, checando a Rua
sempre que ela se livrava das árvores por quatro ou dez metros. Não me
importava mais de ficar constrangido, mas não vi ninguém. Santo Deus,
onde está todo mundo? Foram para Mountain View em Fryeburg para uma
pizza ou até o Village Café para milk-shakes?
— O que é que você quer? — gritei para Devore. — Quer que eu diga
a você que dou o fora de seu negócio? Certo, eu dou!
Ele riu.
Bem, eu não esperei que funcionasse. Mesmo que tivesse sido
sincero, ele não teria acreditado em mim.
— Só queremos ver quanto tempo você consegue nadar — disse
Whitmore, e jogou outra pedra, um lançamento comprido e preguiçoso que
caiu a um metro e meio de mim.
Eles pretendem me matar, pensei. Pretendem mesmo.
Sim. E, o que era pior, podiam levar a cabo a intenção. Uma ideia
maluca, ao mesmo tempo plausível e implausível, surgiu em minha mente.
Eu podia ver Rogette Whitmore pregando com tachinhas um anúncio no
QUADRO DOS EVENTOS COMUNITÁRIOS do lado de fora do Armazém
Lakeview:
AOS MARCIANOS DA TR-90, SAUDAÇÕES!
O sr. MAXWELL DEVORE, o marciano favorito de todos, dará
a cada residente da TR CEM DÓLARES se ninguém usar a
Rua no ENTARDECER DE SEXTA-FEIRA, 17 DE JULHO,
entre 19 e 21 HORAS. Mantenham também nossos “AMIGOS
DE VERÃO” longe! E lembrem-se: BONS MARCIANOS são
como BONS MACACOS: não VEEM nada de mal, não
OUVEM nada de mal e não FALAM nada de mal!
Eu não podia realmente acreditar naquilo, nem mesmo em minha
situação presente... mas mesmo assim quase acreditei. No mínimo tinha
que creditar a ele uma sorte demoníaca.
Cansado. Meus tênis mais pesados do que nunca. Tentei tirar um
deles e só consegui beber outra porção da água do lago. Eles continuavam
me observando, Devore pegando ocasionalmente a máscara do colo e
tomando uma dose revitalizante.
Eu não podia esperar até o escurecer. O sol desaparece rapidamente
aqui no Maine ocidental — da mesma forma que acontece, penso eu, em
toda região montanhosa por toda parte —, mas o crepúsculo é longo e se
esvai lentamente. Quando ficasse suficientemente escuro para que eu
pudesse me mover sem ser visto, a lua já teria surgido no leste.
Peguei-me imaginando meu obituário no New York Times , o
cabeçalho com a frase POPULAR ROMANCISTA DE SUSPENSE SE AFOGA NO
MAINE. Debra Weinstock forneceria a eles a foto do autor de A Promessa
de Helen prestes a sair. Harold Oblowski diria todas as coisas certas e
também se lembraria de colocar um modesto (mas não minúsculo) aviso
de falecimento na Publishers Weekly. Ele dividiria meio a meio com a
Putnam, e...
Afundei, engoli mais água e a cuspi. Comecei a bater na água com o
punho fechado e me forcei a parar. Da praia, eu podia ouvir o riso tilintante
de Rogette Whitmore. Sua vaca, pensei. Sua vaca esque...
Mike, disse Jo.
Sua voz estava na minha cabeça, mas não era a que eu faço quando
imagino suas respostas a um diálogo mental ou quando simplesmente tenho
saudade dela e preciso assobiar para chamá-la por algum tempo. Como se
para sublinhar isso, algo levantou a água à minha direita, levantou com
força. Quando olhei naquela direção, não vi nenhum peixe, nem mesmo uma
pequena onda. O que vi em vez disso foi nossa plataforma de flutuação
ancorada a uns 90 metros na água colorida pelo pôr do sol.
— Não consigo nadar até tão longe, meu bem — falei com voz
gutural.
— Disse alguma coisa, Noonan? — gritou Devore da praia. Uma
debochada mão em concha envolveu uma de suas enormes orelhas cheias
de cera. — Não consegui entender! Você parece sem fôlego! — Mais
risadas tilintantes de Whitmore. Ele era Johnny Carson; ela, Ed McMahon,
seu ajudante.
Você vai conseguir. Eu vou ajudá-lo.
Percebi que a plataforma podia ser minha única chance — não havia
outra deste lado da praia, e ficava a pelo menos 10 metros a mais do
alcance das pedras de Whitmore. Cada vez que eu sentia minha cabeça
prestes a submergir, fazia uma pausa, mexia as pernas, dizia a mim
mesmo para ir com calma e que eu estava em muito boa forma e me
saindo bem, e que se não entrasse em pânico tudo acabaria da melhor
forma. A vaca velha e o nojento ainda mais velho continuaram a me
acompanhar, mas viram para onde eu me dirigia e o riso parou. Os
deboches também.
Por muito tempo, a tábua de flutuação não parecia se aproximar um
milímetro. Disse a mim mesmo que era só porque a luz estava
esmaecendo, a cor da água indo de vermelho ao roxo e deste ao quase
negro, a cor das gengivas de Devore, mas minha convicção a respeito disso
era cada vez menor à medida que a respiração encurtava e meus braços ficavam mais pesados.
Quando eu me encontrava ainda a uns 30 metros de distância, tive
cãibra na perna esquerda. Rolei de lado como um barco à vela afundando,
tentando alcançar o músculo que tinha dado um nó. Mais água entrou por
minha boca adentro. Tentei tossi-la para fora, mas tive uma ânsia de
vômito e submergi com o estômago ainda tentando funcionar e meus dedos ainda procurando o lugar do nó acima do joelho.
Estou mesmo me afogando, pensei, estranhamente calmo agora que
estava acontecendo. É assim que acontece, é isso aí.
Então senti uma mão me pegar pela nuca. A dor de ter o cabelo
puxado me trouxe à realidade num clarão — foi melhor do que uma injeção
de adrenalina. Senti outra mão fechar-se à volta de minha perna esquerda;
ouve uma rápida mas fantástica sensação de calor. A cãibra desfez-se e eu
irrompi na superfície nadando — nadando realmente desta vez, não apenas
cachorrinho, e no que pareceu segundos eu estava me agarrando à escada
na lateral da plataforma, respirando em grandes arquejos vivificantes,
esperando para ver se eu ficaria bem ou se o coração ia detonar no peito
como uma granada de mão. Finalmente meu pulmão começou a superar o
débito de oxigênio e tudo começou a se acalmar. Dei a ele outro minuto,
depois saí da água e entrei no que eram agora as cinzas do crepúsculo.
Fiquei ali voltado para oeste por um tempo, curvado, as mãos nos joelhos,
pingando água nas tábuas. Depois me virei, pretendendo dar o dedo a eles.
Não havia ninguém a quem eu pudesse dar o dedo. A Rua estava vazia.
Devore e Rogette Whitmore tinham sumido.
Talvez tivessem sumido. Era bom que eu me lembrasse de que a Rua era
enorme. Eu poderia não vê-los.
Sentei-me de pernas cruzadas na plataforma de flutuação até que a
lua surgisse, esperando e observando qualquer movimento. Meia hora, acho.
Talvez 45 minutos. Consultei o relógio, mas não tive sua ajuda; tinha
entrado água e ele parou às 19h30. Agora eu podia juntar também às outras
satisfações que Devore me devia o preço de um Timex Indiglo — são 29,95
dólares, idiota, cospe o dinheiro.
Finalmente desci novamente a escada, deslizei para dentro d’água e
nadei para a praia tão silenciosamente quanto pude. Estava descansado,
minha cabeça tinha parado de doer (embora o galo pouco acima da nuca
ainda latejasse sem parar), e não me sentia mais sem equilíbrio e perplexo.
De certa maneira, aquilo tinha sido o pior de tudo — tentar lidar não apenas
com a aparição do menino afogado, as pedras que voavam e o lago, mas
com a sensação difusa de que nada daquilo podia estar acontecendo, que
velhos e ricos magnatas de software não tentavam afogar romancistas que
entravam no ângulo de visão deles.
No entanto, a aventura daquela noite tinha sido apenas um simples
caso de penetrar no ângulo de visão de Devore? A coincidência de um
encontro, não mais que isso? Não era provável que ele estivesse me
observando desde o 4 de Julho... talvez do outro lado do lago, por intermédio
de gente com equipamentos ópticos altamente poderosos? Besteira
paranoica, eu teria dito... pelo menos teria dito isso antes de os dois terem
quase me afogado no lago Dark Score, como um barquinho de papel de
criança numa poça de lama.
Resolvi não me importar que pudessem estar me observando do
outro lado do lago. Também não me importava se os dois ainda estivessem
espreitando numa das partes da Rua escondida pelas árvores. Nadei até
sentir fiapos de ervas aquáticas fazendo cócegas em meus tornozelos e ver
a enseada de minha praia. Então me ergui, tremendo ante o ar, agora frio
contra minha pele. Manquei para a praia com uma das mãos levantadas
para desviar uma pedra, mas não veio nenhuma. Fiquei por um momento na
Rua, o jeans e a camisa polo pingando, olhando primeiro numa direção,
depois na outra. Eu parecia ter aquela parte do mundo só para mim. Por
último, olhei novamente a água, onde o luar fraco traçava uma trilha da
curva da praia até a plataforma de flutuação.
— Obrigado, Jo — eu disse, e comecei a subir os degraus para a
casa. Cheguei até a metade deles e tive que parar e sentar. Nunca tinha me sentido tão exausto em toda a minha vida.
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