segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Capítulo Vinte e Seis


Depois disso, fiquei a maior parte do tempo na zona. Saía algumas vezes —
quando aquele pedaço rabiscado de genealogia caiu de um de meus velhos
blocos de notas, por exemplo —, mas tais interlúdios eram breves. De certo
modo, eram como meu sonho com Mattie, Jo e Sara; eram como a febre
terrível que tive quando criança, quando quase morri de sarampo; eram,
sobretudo, como coisa nenhuma, exceto eles mesmos. Eram apenas a zona.
Eu a sentia. Como gostaria de não estar fazendo isso.
George se aproximou, pastoreando o homem de máscara azul à sua
frente. George mancava agora, gravemente. Eu sentia o cheiro de óleo
quente, gasolina e pneus queimando.
— Ela morreu? — perguntou George. — Mattie?
— Morreu.
— E John?
— Não sei — respondi, e então John se torceu e gemeu. Estava vivo,
mas continuava perdendo um bocado de sangue.
— Mike, escute — começou George, mas antes que pudesse dizer
algo mais, um terrível grito líquido começou a vir do carro incendiado na
vala. Era o motorista sendo cozinhado lá dentro. O atirador começou a se
virar para aquele lado, mas George levantou a arma.
— Um movimento e eu te mato.
— Não pode deixá-lo morrer assim — disse o atirador por trás da
máscara. — Você não deixaria um cachorro morrer assim.
— Ele já está morto — disse George. — Não se pode chegar nem a 3
metros daquele carro, a não ser com uma roupa de amianto. — Ele vacilou.
Tinha o rosto branco como a mancha de chantili que limpei da ponta do
nariz de Ki. O atirador deu a impressão de que ia se jogar em cima dele,
mas George levantou mais a arma. — Da próxima vez que se mexer, não
pare — disse George —, porque eu não vou parar. Te asseguro. Agora tira
essa máscara.
— Não.
— Estou farto de você, cara. Pode se despedir do mundo. — George
engatilhou o revólver.
O atirador disse:
— Jesus Cristo — e arrancou a máscara. Era George Footman. Não
me surpreendeu muito. Por trás dele, o motorista deu mais um guincho
dentro da bola de fogo do Ford e então silenciou. A fumaça subia em
grandes nuvens. Novos trovões rugiram.
— Mike, vá lá dentro e veja se encontra alguma coisa para amarrá-lo
— disse George Kennedy. — Posso segurá-lo mais um minuto... dois, se for
preciso, mas estou sangrando como um porco. Procure silver tape. Aquela
merda segura até Houdini.
Footman ficou onde estava, olhando de Kennedy para mim e de novo
para Kennedy. Então deu uma espiada para a rodovia 68, sinistramente
deserta. Talvez não fosse tão sinistro na verdade — as tempestades a
caminho haviam sido bem anunciadas. Os turistas e o pessoal de verão
estariam abrigados. Quanto aos habitantes locais...
Os locais estavam... meio que ouvindo. Isso era pelo menos
parecido. O pastor falava sobre Royce Merrill, uma vida longa e frutífera,
um homem que serviu a seu país na paz e na guerra, mas o pessoal da
velha guarda não estava escutando o ministro. Eles nos escutavam, do
mesmo modo como certa vez tinham se reunido à volta do barril de picles
no Armazém Lakeview a fim de escutar o campeonato de pesos-pesados
pelo rádio.
Bill Dean segurava tão apertado o pulso de Yvette que suas unhas
estavam brancas. Ele a machucava... mas ela não se queixava. Queria que
ele se agarrasse a ela. Por quê?
— Mike! — A voz de George se mostrava perceptivelmente mais
fraca. — Por favor, homem, me ajude. Esse cara é perigoso.
— Me solte — disse Footman. — É melhor, não acha?
— Vai se foder, seu escroto — disse George.
Eu me levantei, passei pelo vaso com a chave debaixo dele, subi os
degraus de blocos de concreto. Relâmpagos explodiram no céu, seguidos
pelo berro do trovão.
Lá dentro, Rommie sentava-se numa cadeira à mesa da cozinha, o
rosto ainda mais branco do que o de George.
— A criança está bem — disse ele, forçando as palavras. — Mas
parece que vai acordar... não posso andar mais. Meu tornozelo está
totalmente fodido.
Andei até o telefone.
— Não se dê ao trabalho — disse Rommie numa voz áspera e
trêmula. — Já tentei. Não dá linha. A tempestade já deve ter atingido outras
cidades. Desligou alguns equipamentos. Deus do céu, nunca tive nada que
doesse tanto como isso em toda a minha vida.
Fui até às gavetas da cozinha e comecei a puxá-las uma a uma,
procurando silver tape, corda de náilon, qualquer porcaria. Se Kennedy
desmaiasse pela perda de sangue enquanto eu estivesse ali, o outro George
pegaria sua arma, o mataria, e então mataria John inconsciente na grama
fumegante. Com eles fora do caminho, entraria e dispararia em Rommie e
em mim. Terminaria com Kyra.
— Não vai não — eu disse. — Ele a deixará viva.
E isso podia ser até pior.
Talheres na primeira gaveta. Sacos para sanduíche, sacos de lixo e
pilhas de cupões de armazém impecavelmente presos por elástico na
segunda. Luvas para forno e pegadores de panela na terceira...
— Mike, onde está a minha Mattie?
Eu me virei, tão culpado como um homem flagrado ao misturar
drogas ilegais. Em pé na extremidade do corredor que dava para a sala de
estar, eu vi Kyra, o cabelo caindo à volta do rosto rosado de sono e o
prendedor pendurado num pulso como um bracelete. Seus olhos estavam
abertos e em pânico. Não foram os tiros que a acordaram, provavelmente
nem mesmo o grito da mãe. Eu a acordei. Meus pensamentos a
despertaram.
No instante em que percebi isso tentei de alguma forma velá-los,
mas era tarde. Ela tinha lido em mim a respeito de Devore suficientemente
bem para me dizer que não pensasse em nada triste, e agora lia o que
tinha acontecido com a mãe antes que eu pudesse tirá-lo de minha mente.
Sua boca se abriu, frouxa. Os olhos se arregalaram. Ela deu um grito
agudo, como se tivesse sido presa num torno, e correu para a porta.
— Não, Kyra, não! — Corri pela cozinha, quase tropeçando em
Rommie (ele me olhou com a obscura incompreensão de alguém que não
está mais completamente consciente), e agarrei-a a tempo. Enquanto o
fazia, vi Buddy Jellison deixando a igreja batista por uma porta lateral. Dois
dos homens que haviam fumado com ele também saíram. Então entendi por
que Bill estava segurando Yvette tão apertado, e o amei por isso... amei os
dois. Alguma coisa queria que ele fosse com Buddy e os outros... mas ele
não estava indo.
Kyra lutou em meus braços, dando grandes saltos convulsivos na
direção da porta, arquejando e depois gritando novamente. Me solta, quero
ver mamãe, me solta, quero ver mamãe, me solta.
Gritei seu nome com a única voz que eu sabia que ela ouviria, a que
só eu podia usar com ela. Pouco a pouco relaxou em meus braços e se
virou para mim. Seus olhos estavam enormes, confusos e brilhantes de
lágrimas. Ela me olhou por um momento mais e então pareceu entender
que não devia ir lá fora. Eu a pus no chão. Ki ficou ali um momento, depois
recuou até que suas costas esbarrassem na lava-louça. Então deslizou pela
macia frente branca da máquina até o chão. A seguir começou a
choramingar — os sons de dor mais terríveis que eu já tinha ouvido. Via-se
que ela compreendeu totalmente. Tive que lhe mostrar o suficiente para
que continuasse dentro de casa, tive mesmo... e porque estávamos na zona
juntos, pude fazê-lo.
Num caminhão picape dirigindo-se para este local, vi Buddy e seus
amigos. CONSTRUÇÃO BAMM, dizia a lateral do veículo.
— Mike! — gritou George, parecendo em pânico. — Depressa!
— Aguenta aí! — gritei em resposta. — Aguenta aí, George!
Mattie e os outros haviam começado a empilhar as coisas do
piquenique ao lado da pia, mas tinha quase certeza de que o balcão de fórmica acima das gavetas estava limpo e vazio quando eu corri para Kyra.
Agora não. O recipiente amarelo do açúcar tinha sido derrubado. Escrito no açúcar derramado vi as palavras:
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— Tá brincando — murmurei, e examinei as gavetas que sobravam.
Nada de silver tape ou de corda. Nem mesmo um nojento par de algemas, e
nas cozinhas mais bem equipadas podem-se encontrar umas três ou quatro.
Então tive uma ideia, e procurei no armário embaixo da pia. Quando voltei
para fora, o nosso George oscilava sob as vistas de Footman, que o olhava
com uma concentração predatória.
— Achou silver tape — perguntou George Kennedy.
— Não, algo melhor — eu disse. — Diga aqui, Footman, quem lhe
pagou? Devore ou Whitmore? Ou você não sabe?
— Vai se foder.
Eu estava com a mão direita escondida nas costas. Então apontei
para a colina com minha mão esquerda e fiz um ar surpreso.
— Que droga Osgood está fazendo? Diga a ele para ir embora!
Footman olhou na direção apontada — foi instintivo — e eu bati na
parte de trás de sua cabeça com o martelo encontrado na caixa de
ferramentas sob a pia de Mattie. O som foi horrível, o borrifo de sangue
que esguichou do cabelo em movimento foi horrível. Pior do que tudo,
porém, foi a sensação do crânio cedendo — um colapso esponjoso que subiu
diretamente do cabo do martelo até meus dedos. Ele caiu como um saco de
areia e eu larguei o martelo, arquejando.
— Certo — disse George. — Um pouco feio, mas provavelmente a
melhor coisa que você podia fazer nas... atuais... circun...
Ele não caiu como Footman — foi mais lento e controlado, quase
gracioso —, mas estava tão apagado quanto o outro. Peguei o revólver, o
fitei e então o atirei no bosque do outro lado da estrada. Não era bom eu
ter uma arma naquele momento; só podia me arranjar mais problemas.
Mais dois homens haviam saído da igreja; assim como um carro
cheio de senhoras de vestidos pretos e véus. Tinha que me apressar ainda
mais. Desafivelei as calças de George e desci-as. A bala que o atingiu na
perna tinha rasgado sua coxa, mas o ferimento parecia estar coagulando. O
braço de John era outra história — ainda bombeava sangue para fora em
quantidades assustadoras. Arranquei seu cinto e apertei-o em torno de seu
braço tão forte quanto pude. Então dei-lhe uns tapas no rosto. Seus olhos se
abriram e se fixaram em mim com uma toldada falta de reconhecimento.
— Abra a boca, John! — Ele apenas me fixava. Debrucei-me para a
frente até que nossos narizes quase se tocavam e gritei ABRA A BOCA!
AGORA! Ele a abriu como uma criança quando a enfermeira lhe diz para
dizer aahh. Enfiei a ponta do cinto entre seus dentes. — Feche! — Ele
fechou a boca. — Agora fique assim. Mesmo que você desmaie, continue
assim.
Não tive tempo para ver se ele estava prestando atenção. Levantei e
olhei para cima enquanto o mundo inteiro ficava de um azul ofuscante. Por
um segundo foi como estar dentro de um letreiro a néon. Lá em cima havia
um suspenso rio negro, rolando e ziguezagueando como uma cesta de
serpentes. Eu jamais tinha visto um céu tão maléfico.
Subi correndo os degraus de cimento e entrei no trailer de novo.
Rommie tinha desmoronado para a frente na mesa, o rosto sobre os braços
dobrados. Ele poderia parecer um professor de jardim de infância
descansando se não fosse a tigela de salada quebrada e os pedaços de
alface em seu cabelo. Kyra ainda estava sentada com as costas na
lavadora de pratos, chorando histericamente.
Levantei-a e percebi que ela tinha se molhado.
— Temos que ir agora, Ki.
— Cadê Mattie? Eu quero mamãe! Eu quero minha Mattie, faz ela
parar de tá machucada! Faz ela parar de morrer!
Cruzei o trailer depressa. A caminho da porta, passei pela mesinha
com o romance de Mary Higgins Clark. Notei o montinho das fitas de cabelo
de novo — fitas talvez experimentadas antes da reunião e depois
descartadas em benefício do prendedor. Eram brancas com bordas
vermelhas brilhantes. Bonitas. Sem parar, peguei-as e enfiei-as no bolso das
calças, depois mudei Ki para meu outro braço.
— Quero Mattie! Quero mamãe! Faz ela voltar! — Ela me batia
tentando me fazer parar, depois começou a se debater e chutar em meu
colo novamente. Batia com os punhos nos lados da minha cabeça. — Me
põe no chão! Me põe no chão!
— Não, Kyra.
— Quero descer! Me põe no chão! Me põe no chão! QUERO DESCER!
Eu estava perdendo o controle dela. Então, quando chegamos ao
degrau de cima, ela parou abruptamente de se debater.
— Me dá o Stricken! Quero o Stricken!
No início, eu não tinha ideia do que ela estava falando, mas, quando
olhei para onde estava apontando, entendi. No caminho, não longe do vaso
que escondia a chave, estava o brinquedo de pelúcia do McLanche Feliz. Pela
aparência, Strickland tinha aguentado muita brincadeira ao ar livre — o pelo
cinza-claro estava agora cinza-escuro de poeira; mas se o brinquedo a
acalmava, eu queria que ficasse com ele. Não era o momento de me
preocupar com sujeira e germes.
— Vou lhe dar Strickland se você prometer fechar os olhos e não
abrir até eu lhe dizer para abrir. Promete?
— Prometo — disse, tremendo em meu colo, e grandes lágrimas
redondas, das que se espera ver em contos de fadas e nunca na vida real,
surgiram em seus olhos e transbordaram pelo rosto. Eu podia sentir o
cheiro de grama queimando e bife carbonizado. Por um momento terrível,
pensei que ia vomitar, mas consegui controlar a vontade.
Ki fechou os olhos. Mais duas lágrimas rolaram para o meu braço,
quentes. Ela esticou a mão, tateando. Desci os degraus, peguei o cachorro e
hesitei. Primeiro as fitas, agora o cachorro. Com as fitas tudo bem,
provavelmente, mas havia algo errado em lhe dar o cachorro, e que o
levasse com ela. Errado mas...
É cinzento, irlandês, a voz de OVNI sussurrou. Não precisa se
preocupar com ele porque é cinzento. O brinquedo de pelúcia de seu sonho
era preto.
Eu não sabia exatamente o que a voz queria dizer com aquilo e não
tinha tempo para descobrir. Coloquei o cachorro de pelúcia na mão aberta
de Kyra. Com os olhos ainda fechados, ela o levou ao rosto e beijou-lhe o
pelo empoeirado.
— Quem sabe Stricken pode fazer mamãe melhorar, Mike. Stricken é
um cachorro mágico.
— Continue de olhos fechados. Não abra até que eu diga que pode.
Ela apoiou o rosto no meu pescoço. Carreguei-a daquele modo pelo
pátio até o meu carro e a instalei na frente, no banco de passageiro. Ela se
deitou cobrindo a cabeça com os braços, e uma das mãos gorduchas
agarrava o cachorro de pelúcia sujo. Eu lhe disse para ficar exatamente
assim, deitada no banco. Apesar de não me dar nenhum sinal externo de
que tinha me ouvido, eu sabia que sim.
Tínhamos que correr porque a velha guarda estava chegando. A velha
guarda queria terminar o negócio, queria que aquele rio chegasse ao mar. E
só havia um lugar para onde pudéssemos ir, onde pudéssemos estar
seguros, e esse lugar era Sara Laughs. Mas antes eu tinha algo a fazer.
Eu guardava um cobertor velho mas limpo na mala do carro. Pegueio,
atravessei o pátio e o estendi sobre Mattie Devore. A elevação que
encobriu ao descer sobre ela era dolorosamente diminuta. Olhei em volta e
vi John me fitando. Apesar de seus olhos estarem vidrados pelo choque,
achei que talvez ele estivesse recobrando a consciência. Ainda continuava
com o cinto entre os dentes; parecia um drogado preparando-se para a
injeção.
— Nã pod taa acontcend — disse ele. — Não pode estar acontecendo.
Eu sabia exatamente como se sentia.
— A ajuda vai chegar em alguns minutos. Aguenta aí. Eu tenho que ir
embora.
— Ir oond?
Não respondi. Não tinha tempo. Parei e tomei o pulso de George.
Lento, mas firme. A seu lado, Footman, embora profundamente
inconsciente, murmurava algo ininteligível. De modo nenhum à beira da
morte. É preciso muito para matar um machão. O vento irregular soprou a
fumaça do carro derrubado na minha direção, e pude sentir o cheiro de
carne cozinhando, assim como de churrasco de filé. Meu estômago se
revirou.
Corri para o Chevy, deixei-me cair atrás do volante e dei marcha a
ré na entrada de carros. Dei mais uma olhada no corpo com o cobertor,
para os três homens derrubados, para o trailer com a linha de furos negros
de balas ondulando por sua lateral e a porta escancarada. John estava
apoiado no cotovelo bom, a ponta do cinto ainda nos dentes, olhando para
mim com olhos que não compreendiam. Um relâmpago tão fulgurante
rasgou o céu que tentei proteger os olhos, mas quando minha mão chegou
ao alto o relâmpago já se fora e o dia continuava tão escuro quanto um
crepúsculo no fim.
— Fique abaixada, Ki — eu disse. — Continue assim.
— Não tô ouvindo — respondeu, a voz tão rouca de lágrimas que
quase não consegui distinguir suas palavras. — Ki tá tirando uma soneca
com Stricken.
— Tudo bem — eu disse. — Ótimo.
Passei de carro pelo Ford que ardia e rodei até o início da colina,
onde parei diante da enferrujada placa de PARE perfurada de balas. Olhei
para a direita e vi o caminhão picape estacionado no acostamento;
CONSTRUÇÃO BAMM, era a inscrição na sua lateral. Dentro dele, três
homens me observavam. O que estava à janela do passageiro era Buddy
Jellison, podia identificá-lo pelo chapéu. Muito lenta e deliberadamente, ergui
a mão direita e mostrei-lhes o dedo médio. Nenhum deles respondeu, seus
rostos de pedra não se modificaram, mas a picape começou a rodar
lentamente na minha direção.
Virei à esquerda para a 68, dirigindo-me à Sara Laughs sob um céu negro.

A pouco mais de 3 quilômetros, onde a estrada 42 se bifurca na rodovia e
vira a oeste para o lago, via-se uma velha granja abandonada na qual ainda
se distinguia, em letras desbotadas, o letreiro LATICÍNIOS DONCASTER. À
medida que nos aproximávamos dela, todo o lado leste do céu se iluminou
numa bolha branco-púrpura. Eu gritei e a buzina do Chevy soou — sozinha,
tenho quase certeza. Um zigue-zague de raio surgiu do fundo da bolha de
luz e atingiu a granja. Por um momento, a construção ainda permaneceu
totalmente lá, fulgurando como algo radioativo; então explodiu em todas as
direções. Nunca vi nada sequer remotamente parecido àquilo, a não ser em
filmes. O estrondo de trovão que se seguiu foi como o estouro de uma
bomba. Kyra gritou e escorregou para o chão a meu lado no carro, as mãos
tapando os ouvidos. Numa delas ainda agarrava o cachorrinho de pelúcia.
Um minuto depois cheguei ao alto da crista Sugar Ridge. A estrada
42 se abre à esquerda vindo da rodovia no fundo do declive norte da crista.
Do alto, eu podia ver uma ampla faixa da TR-90 — bosques, campos,
granjas e fazendas, e até mesmo o cintilar sombrio do lago. O céu estava
negro como pó de carvão, iluminado quase constantemente por relâmpagos
internos. O ar tinha um claro fulgor ocre. Cada vez que eu respirava, sentia
o gosto de serragem numa caixa de metal. A topografia além da crista
destacava-se numa claridade surreal que não consigo esquecer. Uma
sensação de mistério tomou meu coração e minha mente, uma sensação do
mundo como uma pele fina esticada sobre ossaturas e abismos
enigmáticos.
Olhei pelo retrovisor e vi que dois outros carros haviam se juntado à
picape, um com uma placa V, o que significava que o veículo tinha sido
registrado por um veterano das Forças Armadas. Quando diminuí a
velocidade, eles diminuíram também. Quando a aumentei, também o
fizeram. Mas eu duvidava que continuassem a me seguir mais longe quando
eu virasse para a 42.
— Ki? Tudo bem?
— Mimindo — disse ela do chão do carro.
— Tá — falei, e comecei a descer a colina.
Quase não enxerguei os faróis da bicicleta vermelha ao fazer a curva
para a 42 quando o granizo começou — grandes pedaços de gelo branco que
caíam do céu, tamborilavam no teto do carro como dedos pesados e
quicavam para fora da capota. Começaram a se amontoar na parte de
baixo, onde ficam os limpadores de para-brisa.
— O que que tá acontecendo? — gritou Kyra.
— É só granizo — eu disse. — Não vai nos machucar. — Tinha
acabado de pronunciar a frase quando uma pedra de granizo do tamanho de
um limão pequeno atingiu meu lado do para-brisa e depois quicou alto para
o ar de novo, deixando uma marca branca de onde se irradiavam inúmeras
rachaduras curtas. John e George Kennedy estariam deitados lá fora debaixo
disso? Virei a mente naquela direção, mas não consegui apreender nada.
Quando entrei à esquerda para a 42, a chuva de granizo era tanta
que quase não havia visibilidade. Os sulcos das rodas estavam cheios de
gelo. Contudo, o branco diminuía sob as árvores. Dirigi-me para aquela
cobertura, ligando e apagando os faróis ao fazê-lo. Eles jogavam brilhantes
cones de luz no granizo caído.
Quando entramos sob as árvores, a bolha branco-púrpura fulgurou
novamente, tornando meu espelho retrovisor brilhante demais para que eu
pudesse olhar por ele. Ouviu-se um choque e um estalo lacerante. Kyra
gritou de novo. Olhei em volta e vi um enorme e velho abeto caindo
lentamente através da pista, seu toco denteado em fogo, arrastando os fios
elétricos consigo.
Estamos bloqueados, pensei. Nesta ponta, e provavelmente na outra
também. Estamos aqui. Para o bem e para o mal, estamos aqui.
As árvores cresciam sobre a estrada 42 num dossel, exceto na
estrada que passava ao lado do prado de Tidwell. O barulho do granizo no
bosque produzia um tinido estilhaçante. Claro que as árvores estavam se
estilhaçando; era a chuva de granizo mais danosa a cair naquela parte do
mundo e, apesar de passar em 15 minutos, foi suficiente para estragar toda
a temporada de safras.
O relâmpago cortou o ar acima de nós. Levantei os olhos e vi uma
grande bola cor de laranja perseguida por uma menor. Elas correram pelas
árvores à nossa esquerda, ateando fogo em alguns ramos altos. Chegamos
rapidamente ao abrigo no prado de Tidwell, e enquanto o fazíamos, o
granizo se transformou numa chuva torrencial. Eu não poderia ter
continuado a dirigir se não tivéssemos corrido de volta ao bosque
imediatamente; mesmo assim, o dossel forneceu cobertura suficiente
apenas para que eu pudesse me arrastar sob ele, curvado ao volante e
vendo a cortina de chuva cair através do vidro dos faróis. Os trovões
estouravam constantemente; então o vento começou a soprar forte,
passando pelas árvores como uma voz barulhenta. Um galho pesado de
folhas caiu na estrada à minha frente. Passei por cima dele e o escutei
estalar, arranhar e rolar contra a parte de baixo do Chevy.
Por favor, nada maior do que isso, pensei... ou talvez estivesse
rezando. Por favor, me deixe chegar em casa. Por favor, nos deixe chegar
em casa.
Quando alcancei a entrada de carros, o vento tinha se transformado
num furacão uivante. As árvores que se torciam e a chuva matraqueando
faziam o mundo inteiro parecer prestes a desfazer-se num mingau ralo. O
declive da entrada de carros se transformou num rio, mas enfiei a dianteira
do carro por ela sem qualquer hesitação — não podíamos ficar aqui fora; se
uma árvore grande caísse em cima do carro, seríamos esmagados como
insetos sob uma chinelada.
Sabia muito bem que não podia usar o freio — o carro teria
derrapado e talvez fosse varrido pelo declive abaixo na direção do lago,
rolando repetidamente até lá. Em vez disso, passei a mudança para a
marcha lenta, acionei levemente o freio de mão e deixei o motor nos
empurrar para baixo, com a chuva batendo como uma cortina no para-brisa
e transformando o vulto da casa de troncos num fantasma.
Inacreditavelmente, algumas luzes permaneciam acesas, brilhando como
escotilhas de uma batisfera sob 3 metros d’água. Então, o gerador estava
funcionando... pelo menos por enquanto.
Os relâmpagos lançaram-se sobre o lago, fogo azul-esverdeado
iluminando um poço escuro de água com a superfície cortada em ondas
espumosas. Um dos pinheiros centenários à esquerda dos degraus de
dormentes de estrada de ferro jazia agora com metade de seu
comprimento dentro d’água. Em algum ponto atrás de nós, outra árvore caiu
com grande estrondo. Kyra cobriu as orelhas.
— Tudo bem, querida — eu disse. — Estamos aqui, conseguimos
chegar.
Desliguei o motor e apaguei os faróis. Sem eles, pouco podia ver;
quase toda a luz tinha desaparecido do dia. Tentei abrir a porta do carro e
no início não consegui. Empurrei com mais força e ela não só abriu como
foi arrancada da minha mão. Saí e, num brilhante fulgor de relâmpago, vi
Kyra se arrastando no assento na minha direção, o rosto branco de pânico,
os olhos arregalados e cheios de terror. Minha porta bateu de volta e me
golpeou o traseiro com força suficiente para machucar. Ignorei a dor,
peguei Kyra no colo e me virei com ela. A chuva gelada nos ensopou num
instante. Na realidade não era absolutamente como estar debaixo da chuva;
era como entrar sob uma cachoeira.
— Meu cachorrinho! — berrou Kyra. Apesar do grito, quase não
consegui ouvi-la. Mas podia ver seu rosto, e suas mãos vazias. — Stricken!
Deixei Stricken cair!
Olhei em volta e lá estava ele, flutuando pelo macadame da entrada
de carro, depois do alpendre. Um pouco mais adiante, a água escorrendo era
cuspida do pavimento e descia o declive; se Strickland fosse com a
enxurrada, provavelmente acabaria em algum ponto do bosque. Ou desceria
todo o caminho até o lago.
— Stricken! — soluçou Kyra. — Meu CACHORRINHO!
De repente nada passou a ter importância para nós senão o estúpido
brinquedo de pelúcia. Palmilhei a entrada de carros atrás dele com Ki nos
braços, esquecido da chuva, do vento e dos clarões brilhantes dos
relâmpagos. E mesmo assim eu ia ser derrotado no declive — a água que
tinha capturado o brinquedo corria rápido demais para que eu o alcançasse.
O que o impediu de ir além da beira do pavimento foi um trio de
girassóis oscilando selvagemente ao vento. Pareciam membros de uma
seita religiosa tomados pelo êxtase por Deus: Obrigado, Jesus! Aleluia,
Senhor! Pareciam também familiares. Era impossível serem os mesmos
três girassóis que haviam crescido por entre as tábuas do alpendre no meu
sonho (e na foto que Bill Dean tirara antes de minha volta), claro, e ainda
assim eram eles; sem dúvida nenhuma eram eles. Três girassóis como as
três irmãs esquisitas em Macbeth, três girassóis com faces como faróis.
Eu tinha voltado a Sara Laughs; estava na zona; voltei a meu sonho, e
desta vez ele me possuía.
— Stricken! — Ki se dobrava e se agitava no meu colo, ela e eu
escorregadios demais para nossa segurança. — Por favor, Mike, por favor!
Um trovão explodiu lá em cima como uma cesta de nitroglicerina.
Nós dois gritamos. Deixei-me cair num joelho e peguei o pequeno cachorro
de pelúcia. Kyra o agarrou, cobrindo-o de beijos frenéticos. Cambaleei para
cima e fiquei em pé enquanto outro trovão estourava, este parecendo
percorrer o ar como um louco chicote líquido. Fitei os girassóis e tive a
impressão de que me olhavam também — Alô, irlandês, há quanto tempo, o
que é que me diz? Então, reacomodando Ki nos braços tão bem quanto
podia, virei-me e chapinhei em direção à casa. Não era fácil; a água na
entrada de carros estava agora à altura do tornozelo e cheia de granizo que
derretia. Um galho passou voando por nós e aterrissou bem perto de onde
eu tinha me ajoelhado para pegar Strickland. Houve um ruído de colisão e
uma série de baques quando um galho maior caiu sobre o telhado, rolando
dali para baixo.
Entrei correndo no alpendre de trás, um tanto na expectativa de ver
a Forma se atirando velozmente para fora para nos receber, erguendo os
flácidos não braços em medonhas boas-vindas. Mas não havia Forma
nenhuma. Havia apenas a tempestade, e já era suficiente.
Ki agarrava o cachorro bem apertado, e vi sem nenhuma surpresa
que a umidade unida à sujeira de todas aquelas horas de brinquedo ao ar
livre tinham feito Strickland ficar preto. No final das contas, era o que eu
tinha visto no sonho.
Tarde demais agora. Não havia mais nenhum outro lugar para se ir,
nenhum outro abrigo contra a tempestade. Abri a porta e levei Kyra Devore para dentro de Sara Laughs.

A parte central de Sara — o coração da casa — aguentou por quase cem
anos e já teve sua cota de tempestades. A que caía na região dos lagos
naquela tarde de julho pode ter sido a pior de todas, mas vi, assim que
entramos, arquejando como alguém que escapou por pouco de se afogar,
que a casa suportaria também aquela. Suas paredes de tronco eram tão
espessas que entrar ali era quase como entrar numa espécie de cripta. Os
estrondos e pancadas da tempestade transformaram-se num zumbido
ruidoso pontuado pelas trovoadas e o ocasional e forte baque surdo de um
galho caindo sobre o telhado. Em algum lugar — no porão, acho eu — uma
porta se abriu e ficou batendo. Parecia a pistola de um juiz dando a largada.
A janela da cozinha tinha sido quebrada pelo desabamento de uma pequena
árvore. Sua ponta perfurante se erguia sobre o fogão, fazendo sombras nos
queimadores e no balcão ao oscilar. Pensei em quebrá-la, mas decidi não
fazê-lo. Pelo menos estava tapando o buraco.
Levei Ki para a sala de estar e olhamos para o lago lá fora, água
negra decorada com pontos surrealistas sob um céu negro. Os raios
lampejavam quase constantemente, revelando um anel de bosques que
dançavam e balançavam num frenesi em torno do lago. Por mais sólida que
fosse a casa, ela gemia profundamente por dentro enquanto o vento a
agredia com os punhos fechados e tentava empurrá-la colina abaixo.
Ouvi um tilintar suave e contínuo. Kyra ergueu a cabeça de meu
ombro e olhou em volta.
— Você tem um alce — disse ela.
— Tenho, é o Bunter.
— Ele morde?
— Não, meu amor, não morde, não. É como uma... como uma
boneca, acho.
— Por que o sino dele está tocando?
— Ele ficou contente por estarmos aqui. Ficou contente de a gente
ter vindo.
Vi que ela queria se sentir feliz, e então vi sua percepção de que
Mattie não estava ali para sentir-se feliz com ela. Vi a ideia de que Mattie
nunca mais estaria ali para ser feliz com ela lhe atravessar a mente... e
senti que a afastava. Sobre nossas cabeças, alguma coisa imensa caiu
sobre o telhado, as luzes tremeluziram e Ki começou a chorar de novo.
— Não, meu bem — eu disse, começando a andar com ela. — Não,
meu bem, não Ki, não. Não, meu bem, não.
— Quero minha mãe! Quero minha Mattie!
Andei com ela no colo como se anda com os bebês com cólica. Ela
compreendia demais para uma menina de 3 anos, e consequentemente seu
sofrimento era mais terrível do que o de qualquer outra criança dessa
idade. Assim, eu a carregava e andava de um lado para outro com ela, seu
short úmido de urina e chuva sob as minhas mãos, seus braços febris em
torno de meu pescoço, as bochechas manchadas de meleca e lágrimas, o
cabelo uma massa ensopada por nossa breve corrida sob o aguaceiro, a
respiração ácida, o brinquedo de pelúcia uma maçaroca preta e estrangulada
que deixava sair uma água suja por entre os dedos de Ki. Andei com ela
para a frente e para trás na sala de estar de Sara Laughs, para a frente e
para trás à luz fraca fornecida pela única lâmpada que brilhava do teto. A
luz de gerador nunca é muito firme, nunca muito estável — parece respirar
e suspirar. Para a frente e para trás ao som baixo e incessante do sino de
Bunter, como música daquele mundo que às vezes tocamos, mas que nunca
vemos na realidade. Para a frente e para trás ao som da tempestade. Acho
que cantei para ela, e sei que a toquei com minha mente e entramos cada
vez mais profundamente naquela zona juntos. Acima de nós, as nuvens
corriam e a chuva tamborilava, molhando os incêndios que os relâmpagos
haviam iniciado no bosque. A casa gemeu, o ar se movia como redemoinho,
em lufadas, penetrando pela janela quebrada da cozinha; através de tudo
aquilo, porém, havia uma sensação de triste segurança. Uma sensação de
voltar para casa.
Finalmente as lágrimas começaram a arrefecer. Ki ficou deitada com
o rosto e o peso de sua cabeça em meu ombro, e, quando passávamos
pelas janelas dando para o lago, eu reparava em seus olhos fitando a
tempestade negro-prateada lá fora, arregalados e sem piscar. Quem a
carregava era um homem alto começando a perder cabelo. Notei que eu
podia ver a mesa da sala de jantar bem através de nós. Nossos reflexos já
são fantasmas, pensei.
— Ki? Quer comer alguma coisa?
— Não tô com fome.
— Que tal um copo de leite?
— Não, chocolate. Tô com frio.
— Eu sei que está. E tenho chocolate.
Tentei colocá-la no chão, mas ela se agarrou em mim com o aperto
do pânico, aferrando-se a meu corpo com as perninhas gorduchas. Icei-a
para o colo novamente, desta vez instalando-a em meu quadril, e ela se
aquietou.
— Quem está aqui? — perguntou. Ela tinha começado a tremer. —
Quem está aqui além da gente?
— Não sei.
— Tem um menino — disse ela. — Vi ele lá. — Apontou com
Strickland para a porta de vidro de correr que dava para o deck (todas as
cadeiras lá fora haviam sido derrubadas e atiradas contra os cantos;
faltava uma delas, aparentemente impelida por cima da balaustrada). — Era
negro como naquele programa engraçado que Mattie e eu assistimos. Tem
outros negros também. Uma mulher de chapéu grande. Um homem de calça
azul. O resto é difícil ver. Mas eles vigiam a gente. Vigiam a gente. Não tá
vendo eles?
— Não podem nos fazer mal.
— Tem certeza? Tem, não tem?
Não respondi.
Encontrei uma caixa de chocolate em pó instantâneo escondida atrás
do pote de farinha de trigo, abri um dos pacotinhos individuais e derramei-o
numa xícara. Um trovão estalou com força lá em cima. Ki deu um pulo no
meu colo e emitiu um longo e infeliz choramingo. Abracei-a e beijei-a na
bochecha.
— Não me põe no chão, Mike, tô com medo.
— Não vou pôr. Você é a minha boa menina.
— Tenho medo do menino, do homem de calça azul e da mulher.
Acho que é a mulher que estava com o vestido de Mattie. Eles são
fantasminhas?
— São.
— São maus, como os homens que perseguiram a gente na feira?
São?
— Não sei bem, Ki, e é verdade.
— Mas vamos descobrir.
— Hã?
— Isso que você pensou. “Mas vamos descobrir.”
— É — eu disse. — Acho que estava pensando isso. Alguma coisa parecida.

Levei-a para o quarto principal enquanto a água esquentava na chaleira,
achando que poderia ter sobrado alguma roupa de Jo com que eu pudesse
vesti-la, mas todas as gavetas da cômoda de Jo estavam vazias. Assim
como a parte dela no armário. Pus Ki em pé na grande cama de casal em
que eu havia tirado apenas um cochilo depois que voltei, despi suas roupas,
levei-a para o banheiro e embrulhei-a numa toalha de banho. Ela se enrolou
na toalha, tremendo, com os lábios roxos. Usei outra para secar o seu
cabelo da melhor forma que pude. Durante tudo isso, ela não soltou nem
uma vez o cachorro de pelúcia, que agora começava a expelir o recheio por
suas costuras.
Abri o armário dos remédios, remexi por ali e encontrei o que
procurava no alto da prateleira: o Benadryl que Jo sempre tinha por perto
para sua alergia a pólen. Pensei em checar a data de validade no fundo da
caixa, mas a seguir quase ri alto. Que diferença faria? Instalei Ki no
assento fechado do vaso e deixei que segurasse meu pescoço enquanto eu
retirava a tampa à prova de criança e pescava quatro cápsulas cor-de-rosa
e branco. Então enxaguei o copo de escovar os dentes e enchi-o de água
fria. Ao fazê-lo notei movimento no espelho do banheiro, espelho que
refletia a entrada e o quarto principal mais adiante. Disse a mim mesmo
que estava vendo apenas as sombras das árvores sopradas pelo vento.
Ofereci as cápsulas a Ki. Ela as pegou e então hesitou.
— Tome — eu disse. — É remédio.
— Que remédio? — Sua mãozinha ainda estava pousada sobre o
punhado de cápsulas.
— Remédio para tristeza — eu disse. — Você sabe engolir
comprimidos, Ki?
— Claro. Aprendi sozinha quando tinha 2 anos.
Ela hesitou mais um momento — olhando para mim e dentro de
mim, acho, certificando-se de que eu estava lhe dizendo algo em que
realmente acreditava. O que viu ou sentiu deve tê-la deixado satisfeita,
porque ela pegou os comprimidos e os colocou na boca, uma depois da
outra. Engoliu-os com pequenos golinhos do copo e então disse:
— Ainda tô triste, Mike.
— Leva um tempo para fazer efeito.
Remexi na minha gaveta de camisas e encontrei uma velha camiseta
Harley-Davidson que tinha encolhido. Ainda era quilômetros grande demais
para ela, mas, quando a amarrei num nó lateral, ficou parecendo um
sarongue que continuava escorregando por um de seus ombros. Era quase
bonitinho.
Levo sempre um pente no bolso de trás. Peguei-o e afastei o cabelo
de Ki de sua testa. Ela começava a parecer mais serena agora, mas algo
ainda faltava. Algo que, em minha mente, se relacionava com Royce Merrill.
Mas isso era uma maluquice... não era?
— Mike? Que bengala? Que bengala é essa que você tá pensando?
Então me ocorreu.
— Uma bengala doce — eu disse. — Aquela com listas. — Peguei do
bolso as duas fitas brancas. Suas bordas vermelhas pareciam quase cruas à
luz instável. — Como essas. — Amarrei seu cabelo para trás em dois
pequenos rabos de cavalo. Agora Ki tinha as fitas; o cachorro preto; e os
girassóis tinham se deslocado quase um metro para o norte, mas estavam
lá. Tudo estava mais ou menos como deveria.
Trovões estouraram com força; em algum lugar, uma árvore
despencou e as luzes se apagaram. Após cinco segundos de sombras cinzaescuro,
voltaram de novo. Levei Ki novamente para a cozinha e, ao
passarmos pela porta do porão, alguma coisa riu por trás dela. Eu ouvi; Ki
também, pude ver que sim pela expressão de seus olhos.
— Toma conta de mim — disse ela. — Toma conta de mim porque
eu sou pequenininha. Você prometeu.
— Vou tomar.
— Eu amo você, Mike.
— Eu também amo você, Ki.
A chaleira estava soprando. Pus água quente na xícara até a metade
e depois a enchi com leite, esfriando-a e fazendo com que a bebida ficasse
mais forte. Levei Kyra para o sofá. Enquanto passávamos pela mesa da
sala de jantar, dei uma olhada na máquina de escrever IBM e no manuscrito
com o livro de palavras cruzadas em cima. Tais coisas pareciam
vagamente tolas e de certo modo tristes, como aparelhos que nunca
trabalharam muito bem e agora não funcionavam.
Um relâmpago iluminou o céu inteiro, lavando a sala de luz púrpura.
Ao clarão, as árvores desatinadas pareciam dedos se torcendo e, quando a
luz atravessou o vidro da porta de correr que dava para o deck, vi uma
mulher em pé atrás de nós, junto ao aquecedor à lenha. Usava um chapéu
de palha com a aba do tamanho de uma roda de carroça.
— O que que é “o rio tá quase no mar” que você tá dizendo? —
perguntou Ki.
Sentei e lhe entreguei a xícara.
— Beba.
— Por que os homens machucaram mamãe? Não queriam que ela se
divertisse?
— Acho que não — respondi. Comecei a chorar. Eu segurava Ki em
meu colo e enxugava as lágrimas com as costas da mão.
— Cê também devia ter tomado remédio pra tristeza — disse.
Estendeu o chocolate. As fitas com que tinha amarrado seu cabelo em
grandes laços malfeitos sacudiram-se.
— Toma. Bebe um pouquinho.
Bebi um pouquinho. Da extremidade norte da casa chegou outro
estrondo dilacerante. O ruído baixo do gerador falhou e a casa mergulhou na
penumbra cinzenta de novo. Sombras correram pelo rostinho de Ki.
— Aguente aí — falei. — Tente não ficar assustada. Talvez as luzes
voltem. — No momento seguinte, voltaram, embora eu pudesse ouvir agora
uma nota desigual no ruído do gerador e o bruxulear das luzes fosse muito
mais nítido.
— Conta uma história — disse Ki. — Conta a Cinerela.
— Cinderela.
— É, essa.
— Está bem, mas os contadores de história são pagos. — Franzi os
lábios e fiz um som de beber.
Ela estendeu a xícara. O chocolate estava doce e gostoso. A
sensação de ser observado era forte e nada doce, mas que observassem.
Que observassem enquanto podiam.
— Havia uma moça bonita chamada Cinderela...
— Era uma vez! É assim que começa! É assim que todas começam!
— Tem razão, eu esqueci. Era uma vez uma moça bonita chamada
Cinderela, que tinha duas meias-irmãs malvadas. Os nomes delas eram...
você lembra?
— Tammy Faye e Vanna.
— É, as Rainhas do Spray de Cabelo. E elas obrigavam Cinderela a
fazer tudo que era desagradável, como varrer a lareira e limpar o cocô do
cachorro no quintal. Então um dia a conhecida banda de rock Oasis ia se
apresentar no palácio, e apesar de todas as moças terem sido convidadas...
Cheguei até a parte em que a fada madrinha pega o camundongo e o
transforma numa limusine Mercedes antes de o Benadryl fazer efeito. Era
mesmo um remédio para a tristeza; quando olhei de novo para Ki, ela
dormia profundamente na dobra do meu braço, a xícara de chocolate
inclinada radicalmente para o lado. Peguei a xícara e coloquei-a na mesinha
de centro; depois afastei o cabelo quase seco da testa de Ki.
— Ki?
Nada. Partira para a Terra do Cochilo. Provavelmente ajudada pelo
fato de que sua soneca da tarde tivesse terminado quase antes de
começar.
Levantei-a e a carreguei para o quarto norte, seus pés balançando
frouxamente no ar, a bainha da camiseta sacudindo nos joelhos. Coloquei-a
na cama e puxei a coberta até seu queixo. Trovões estouravam como fogo
de artilharia, mas Ki sequer se mexeu. Exaustão, dor e Benadryl a tinham
levado para bem longe, bem além de fantasmas e tristeza, e isso era bom.
Debrucei-me e lhe beijei o rosto, que finalmente tinha começado a
esfriar.
— Vou tomar conta de você — falei. — Prometi e vou tomar.
Como se me ouvisse, Ki se virou de lado, pôs a mão segurando
Strickland sob o maxilar e emitiu um suave suspiro. Suas pestanas eram
fuligem escura contra as faces, num surpreendente contraste com os
cabelos claros. Olhando-a, eu me senti tomado de amor, abalado por ele
como se é abalado por uma doença.
Tome conta de mim, eu sou pequenininha.
— Vou tomar, bichinho — falei.
Entrei no banheiro e comecei a encher a banheira do mesmo modo
que no meu sonho. Ela dormiria durante toda a coisa se eu conseguisse
água quente suficiente antes que o gerador pifasse completamente.
Gostaria de ter um brinquedo de borracha para lhe dar caso acordasse, algo
como Wilhelm, a Baleia Esguichante; mas Ki tinha seu cachorro e, de
qualquer modo, provavelmente não acordaria. Nada de batismo congelante
debaixo de uma bomba de mão para Kyra. Eu não era cruel, e não era louco.
Só tinha navalhas descartáveis no armário de remédios, nada bom
para o outro trabalho à minha frente. Não eram bastante eficientes. Mas
uma das facas de carne da cozinha serviria. Se enchesse a banheira com
água quente de verdade, eu nem mesmo sentiria o que fizesse. Uma letra T
em cada braço, a barra de cima riscada atravessando os pulsos...
Por um momento saí da zona. Uma voz — a minha própria, falando
como uma combinação de Jo e Mattie — gritou: Em que está pensando? Ah,
Mike, pelo amor de Deus, em que está pensando?
Então os trovões chocaram-se com estrondo, as luzes vacilaram e a
chuva começou a desabar de novo, impelida pelo vento. Voltei ao lugar onde
tudo era claro, e meu rumo indiscutível. Que tudo terminasse — a tristeza,
a mágoa, o medo. Eu não queria pensar mais em como Mattie tinha
dançado na ponta dos pés sobre o disco de plástico, como se ele fosse um
holofote. Não queria estar lá quando Kyra acordasse, não queria ver a
infelicidade encher seus olhos. Não queria atravessar a noite adiante, o dia
que chegaria depois dela ou o que viria depois daquele. Eram todos vagões
no mesmo velho trem de mistério. A vida era uma doença. Eu ia dar um
bom banho quente em Ki e curá-la daquilo. Levantei os braços. No espelho
do armário de remédios, uma figura obscura — uma Forma — ergueu os
braços numa espécie de saudação de brincadeira. Era eu; tinha sido eu o tempo todo. Tudo bem. Tudo simplesmente ótimo.

Dobrei um joelho e chequei a água. Estava saindo gostosa e quente. Ótimo.
Mesmo que o gerador pifasse agora, tudo bem. A banheira era antiga e
profunda. Enquanto ia até a cozinha pegar a faca, pensei em entrar com
Kyra na água depois de ter terminado de cortar meus pulsos na água mais
quente da banheira. Não, decidi. Isso podia ser mal-interpretado pelas
pessoas que chegassem depois, gente de mente suja e suposições mais
sujas ainda. As que viriam quando a tempestade cessasse e as árvores
caídas na estrada já tivessem sido removidas. Não, depois de seu banho eu
a enxugaria e a colocaria de volta na cama com Strickland na mão. Sentaria
na outra extremidade do quarto onde ela se encontrava, na cadeira de
balanço junto às janelas. Estenderia algumas toalhas no colo para manter o
máximo de sangue possível longe de minhas calças, e então dormiria
também.
O sino de Bunter ainda tocava. Muito mais alto agora. Estava
irritando meus nervos e, se continuasse daquele jeito, poderia até acordar a
criança. Resolvi arrancá-lo e silenciá-lo de uma vez. Atravessei o quarto e
enquanto o fazia era golpeado por fortes rajadas de ar. Não era uma brisa
entrando pela janela quebrada da cozinha; era outra vez a golfada de ar
quente do metrô. Varreu o Nível difícil para ao chão, mas o peso de papel
em cima do manuscrito impediu que as páginas soltas voassem. Quando
olhei naquela direção, o sino de Bunter silenciou.
Uma voz suspirou na obscuridade do quarto palavras que não
consegui entender. E qual a importância? Que importância teria mais uma manifestação — mais uma explosão de ar quente do Grande Além?
Trovões estouraram e o suspiro se manifestou novamente. Desta
vez, quando o gerador pifou e as luzes se apagaram mergulhando o quarto na penumbra cinzenta, consegui entender claramente uma palavra:
Dezenove.


Girei, fazendo um círculo completo. Acabei olhando através do quarto
sombrio para o manuscrito de Meu amigo de infância. Subitamente a luz se
fez. A compreensão chegou.
Não era o livro de palavras cruzadas. Nem a lista telefônica.
Era o meu livro. Meu manuscrito.
Fui até ele, vagamente consciente de que a água tinha parado de
correr na banheira da ala norte. Quando o gerador pifou, a bomba parou.
Tudo bem, já teria bastante água. E quente. Ia dar o banho em Kyra, mas
antes eu tinha que fazer uma coisa. Tinha que ir a 19 e depois devia ir a
92. E podia fazê-lo. Já tinha escrito 120 páginas do manuscrito, portanto,
podia fazê-lo. Peguei a lanterna de pilha de cima do armário onde ainda
guardava centenas de discos de vinil, liguei-a e coloquei-a na mesa. A luz
jogou um círculo branco e radiante sobre o manuscrito — na tarde sombria,
era tão brilhante quanto um holofote.
Na página 19 de Meu amigo de infância, Tiffi Taylor — a call-girl que
tinha se reinventado como Regina Whiting — estava em seu estúdio com
Andy Drake, relembrando o dia em que John Sanborn (o pseudônimo de John
Shackleford) salvou sua filha de 3 anos, Karen. Este foi o trecho que li
enquanto os trovões ribombavam e a chuva chicoteava novamente a porta de correr que dava para o deck:

AMIGO, de Noonan/Pág. 19
“Com certeza era daquele lado”, ela disse,
“o problema é que não consegui vê-la em lugar
nenhum. Então fui
rapidamente até a hidromassagem.” Ela acendeu
um cigarro. “O que eu vi me deu vontade de gritar,
Andy. A Karen
jazia debaixo d’água. De fora vi apenas a mão
dela...
As unhas ficando roxas. Depois... Acho que
mergulhei, mas não lembro. Estava
simplesmente fora do ar. A partir dali tudo é como
um
sonho onde as coisas se atropelam na minha mente.
O jardineiro — Sanborn — me empurrou para o lado e
mergulhou na
banheira. O pé dele me atingiu na garganta e por
uma semana não pude
engolir. Ele deu um puxão no braço da Karen
sem controlar a força. Quando vi o movimento,
tive certeza de que deslocaria o braço dela, mas
ele a pegou. Com um
único e brusco puxão, ele conseguiu pegá-la.”
Drake, em meio à penumbra, viu que ela chorava
incontrolavelmente. Apenas repetia as palavras:
“Oh, meu Deus, pensei que ela estava morta. Achei
mesmo que estava.”

Entendi imediatamente, mas coloquei meu bloco de notas ao longo da 
margem esquerda do manuscrito para que pudesse vê-lo melhor. Lendo de
cima para baixo, como se lê uma solução de palavras cruzadas verticais, a 
primeira letra de cada linha emitia a mensagem que esteve lá quase desde
que comecei o livro.
                                         CorujAs sOb estú iO

Então, levando-se em conta a inserção na antepenúltima linha de baixo para cima:

                               CorujAs sOb estúDiO

Bill Dean, meu caseiro, está sentado ao volante de seu caminhão.
Cumpriu dois objetivos ao vir aqui — dar-me as boas-vindas e avisar-me
para não me meter com Mattie Devore. Agora está pronto para ir embora.
Sorri para mim, exibindo aquela grande dentadura postiça. “Quando você
puder, devia procurar aquelas corujas”, diz ele. Pergunto-lhe o que Jo teria
querido com duas corujas de plástico e ele responde que elas impedem os
corvos de fazerem cocô no madeirame. Aceito isso, tenho outras coisas
para pensar, mas mesmo assim... “Foi como se ela viesse para fazer
especialmente isso”, diz ele. Nunca me passou pela cabeça — não naquele
momento, pelo menos — que no folclore indígena as corujas têm outra
função: dizem que mantêm os espíritos maus a distância. Se Jo sabia que
as corujas de plástico espantam os corvos, saberia daquilo também. Era
exatamente o tipo de informação que ela pegava e armazenava. Minha
esposa curiosa. Minha desmiolada brilhante.
Trovões rugiram no céu. Os relâmpagos devoravam as nuvens como
borrifos de ácido brilhante. Fiquei em pé junto à mesa da sala de jantar
com o manuscrito nas mãos trêmulas.
— Meu Deus, Jo — murmurei. — O que é que você descobriu?
E por que não me contou?
Mas achei que já sabia a resposta. Ela não me contou porque de
certo modo eu era como Max Devore; seu bisavô e o meu tinham cagado
no mesmo fosso. Isso não fazia sentido, mas era assim. E ela também não
contou ao próprio irmão. Tirei um conforto esquisito desse fato.
Comecei a folhear o manuscrito, arrepiado.
Andy Drake raramente fechava a cara em Meu amigo de infância, de
Michael Noonan. Em vez disso ele arregalava os olhos como uma coruja.
Sempre há uma coruja em suas expressões. Antes de ir para a Flórida, John
Shackleford morara em Studio City, Califórnia. O primeiro encontro de
Drake com Regina Whiting tinha ocorrido no estúdio dela. O último endereço
conhecido de Ray Garraty era o Studio Apartments, em Key Largo. A melhor
amiga de Regina Whiting era Steffie Sobone, casada com Towle Sobone —
isso era bom, dois pelo preço de um.
Corujas sob estúdio.
Estava por toda parte, em cada página, exatamente como os nomes
começados por K na lista telefônica. Uma espécie de monumento, este aqui
construído — eu tinha certeza — não por Sara Tidwell e sim por Johanna
Arlen Noonan. Minha mulher passando mensagens por trás das costas do
guarda, rezando com todo seu considerável coração para que eu as visse e
entendesse.
Na página 92, Shackleford conversava com Drake na sala de visitas
da prisão — sentado, os punhos entre os joelhos, olhando para a corrente que ligava seus tornozelos, recusando-se a fazer contato visual com Drake.

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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