domingo, 25 de outubro de 2015

Capítulo Vinte e Sete



Inicialmente a porta não abriu. A maçaneta girou na minha mão e percebi
que não estava trancada, mas a chuva parecia ter inchado a madeira... ou
algo teria sido colocado contra ela. Recuei, curvei-me um pouco e golpeei a
porta com o ombro. Desta vez cedeu ligeiramente.
Era ela. Sara. Em pé do outro lado da porta e tentando mantê-la
fechada contra mim. Como podia fazer isso? Como, em nome de Deus? Ela
era uma merda de um fantasma!
Pensei na picape da CONSTRUÇÃO BAMM... e como se eu a
conjurasse, quase pude vê-la no final da estrada 42, estacionada junto à
rodovia, o sedã das velhotas de calça atrás dele e três ou quatro outros
carros agora atrás delas. Todos com os limpadores de para-brisas
movendo-se para a frente e para trás, os faróis cortando débeis cones de
luz no aguaceiro. Formavam uma fileira no acostamento como num pátio de
venda de carros de segunda mão. Não havia nenhuma venda ali, só a velha
guarda sentada silenciosamente em seus carros. A velha guarda tão na
zona quanto eu. A velha guarda mandando vibrações.
Sara os induzia. Roubava deles. Fez o mesmo com Devore — e
comigo também, claro. Muitas das manifestações que senti desde que
voltei provavelmente foram criadas de minha própria energia psíquica. Era
divertido, quando se pensava a respeito.
Ou talvez “aterrorizante” fosse a palavra que eu procurava.
— Jo, me ajude — eu disse para a chuva caindo. Relâmpagos
faiscaram, transformando as torrentes numa prata brilhante e breve. — Se
algum dia você me amou, me ajude agora.
Recuei e golpeei a porta novamente. Desta vez não houve nenhuma
resistência e entrei aos trancos, dando uma canelada no batente e caindo
de joelhos. Mas segurando a lanterna.
Houve um momento de silêncio. Senti nele forças e presenças se
juntando. Naquele momento, nada pareceu se mover, embora atrás de mim,
no bosque por onde Jo adorava perambular — comigo ou sem mim —, a
chuva continuasse a cair e o vento a uivar, implacável jardineiro podando
seu caminho através das árvores que estavam mortas e quase mortas,
fazendo o trabalho de dez anos mais suaves numa única hora turbulenta.
Então a porta se fechou com uma batida e a coisa começou. Vi tudo à luz
da lanterna, que acendi sem nem perceber, mas no início não sabia
exatamente o que estava vendo, além da destruição dos bem-amados
artesanatos e tesouros de minha esposa pelo poltergeist.
O quadrado da manta de tricô emoldurado foi arrancado da parede e
voou de um lado a outro do estúdio, a moldura preta de carvalho se
espatifando. As cabeças das bonecas das colagens saltaram como rolhas de
champanhe numa festa. A lâmpada pendente se estilhaçou, caindo com uma
ducha de vidro em cima de mim. Um vento gelado começou a soprar, e a
ele juntou-se rapidamente outro, mais tépido, quase quente, girando em um
ciclone. Passaram por mim como se imitassem a tempestade maior lá
fora.
A cabeça de Sara Laughs na estante, a que parecia construída de
palitos e pauzinhos de picolé, explodiu numa nuvem de lascas de madeira.
O remo de caiaque encostado à parede ergueu-se no ar, remou
furiosamente no nada e então se atirou sobre mim como uma lança. Eu me
joguei no tapetinho verde para evitá-lo e senti pedacinhos de vidro quebrado
da lâmpada estilhaçada cortarem a palma de minha mão quando desci.
Senti algo mais — uma saliência por baixo do tapete. O remo atingiu a
parede em frente com força suficiente para partir-se em dois pedaços.
A seguir, o banjo que minha mulher jamais conseguiu dominar se
ergueu no ar, girou duas vezes e tocou um alegre carrilhão de notas fora do
tom mas apesar disso inequívocas — eu gostaria de estar na terra do
algodão, velhos tempos não são esquecidos. O banjo girou em torno de si
uma terceira vez, suas peças de aço brilhante refletindo carreiras de luz
nas paredes do estúdio, e então se jogou para a morte, o corpo do
instrumento se espatifando no chão e as cravelhas de afinação saltando
fora como dentes.
O som do ar se movendo começou — como posso dizer? — de certo
modo a se focalizar, até não haver mais o som do ar e sim o de vozes,
ofegantes, fantasmagóricas e cheias de fúria. Elas teriam gritado se
tivessem cordas vocais com que fazê-lo. O ar empoeirado girava no facho
da lanterna, mostrando espirais que dançavam juntas, depois se separavam,
girando de novo. Por um momento, ouvi a voz ríspida e rouca de fumaça de
Sara. Dá o fora, sua vaca! Dá o fora daqui! Isso aqui não é da sua... E então
houve um choque curioso e frágil, como se ar tivesse colidido com ar. Isso
foi seguido por um grito estridente de túnel de vento que eu reconheci: eu o
tinha ouvido no meio da noite. Jo gritava. Sara a machucava, a punia por
interferir, e Jo gritava.
— Não! — berrei, levantando. — Deixe-a em paz! Deixe-a existir! —
Avancei para dentro da sala, balançando a lanterna na frente do rosto como
se pudesse afastar Sara com aquilo. Garrafas arrolhadas passaram por mim
— algumas contendo flores secas, outras cogumelos cuidadosamente
fatiados, outras, ervas do bosque. Elas se espatifaram na parede distante
com um som quebradiço de xilofone. Nenhuma delas me atingiu; foi como
se alguma mão invisível as guiasse para longe.
Então a escrivaninha com tampo de correr de Jo se ergueu no ar.
Devia pesar pelo menos uns 180 quilos, com suas gavetas cheias como
estavam, mas flutuou como uma pena, inclinando-se primeiro para um lado
e depois para o outro em correntes de ar opostas.
Jo gritou de novo, desta vez com mais raiva do que dor, e cambaleei
para trás contra a porta fechada com a sensação de que eu tinha sido
esvaziado. Sara não era a única que podia roubar a energia dos vivos,
parece. Algo branco e viscoso como esperma — ectoplasma, acho eu —
espirrou dos escaninhos da escrivaninha em uma dúzia de pequenos filetes,
e a escrivaninha subitamente se lançou através do aposento. Voou quase
rápido demais para ser seguida com os olhos. Alguém em pé na frente dela
teria sido completamente esmagado. Ouviu-se um grito dilacerantemente
agudo de protesto e agonia — Sara desta vez, eu sabia —, e então a
escrivaninha atingiu a parede, rompendo-a e deixando entrar a chuva e o
vento. O tampo de correr soltou-se de sua fenda e pendeu como uma língua
desarticulada. Todas as gavetas foram lançadas para fora. Carretéis de
linha, meadas de lã, pequenos livros de identificação de fauna e flora, guias
de bosque, dedais, cadernos de notas, agulhas de tricô, canetas marca-texto
secas — os restos matais de Jo, como diria Ki. Voaram por toda parte
como ossos e pedaços de cabelo cruelmente caídos e dispersos de um
caixão desenterrado.
— Parem — resmunguei. — Parem, vocês duas. Chega.
No entanto, não era mais necessário lhes dizer isso. Exceto pelo
furioso estrépito da tempestade, eu estava só entre as ruínas do estúdio de minha esposa. A batalha havia terminado. Pelo menos por enquanto.


Ajoelhei e dobrei em dois o tapetinho verde, pondo cuidadosamente nele o
máximo de vidro quebrado da lâmpada que pude. Abaixo dele havia um
alçapão dando para uma área de guardados criada pelo declive da terra ao
se inclinar na direção do lago. A saliência que notei era uma das dobradiças
do alçapão. Eu conhecia essa área e pretendia examiná-la por causa das
corujas. Então as coisas tinham começado a acontecer e eu havia
esquecido.
Havia um anel embutido no alçapão. Agarrei-o, pronto para mais
resistência, mas ele se abriu facilmente. O cheiro que flutuou até mim me
congelou. Não era de úmida decomposição, pelo menos não no início, mas
Red — o perfume favorito de Jo. Ele pairou em torno de mim por um
momento e então desapareceu. O que o substituiu foi o cheiro de chuva,
raízes e terra molhada. Não era agradável, mas já senti cheiros bem piores
junto ao lago, perto daquela bétula desgraçada.
Fiz minha lanterna brilhar nos três degraus íngremes. Eu podia ver
uma forma agachada que se revelou um velho vaso sanitário — eu
lembrava vagamente de Bill e Kenny Auster colocando-o ali em 1990 ou 91.
Havia caixas de metal — gavetas de arquivos, na realidade — embrulhadas
em plástico e empilhadas em estrados. Velhos discos e papéis. Um
gravador de fitas de oito faixas embrulhado num saco plástico. Um velho
videocassete perto dele, em outro saco. E no canto...
Sentei com as pernas penduradas e senti algo tocar no tornozelo que
torci no lago. Dirigi a lanterna para o espaço entre os joelhos e por um
momento vi um garoto negro. Mas não o que tinha se afogado no lago —
este aqui era mais velho e muito maior. Doze, talvez 14 anos. O garoto
afogado não tinha mais que 8 anos.
Aquele ali arreganhou os dentes para mim e silvou como um gato.
Seus olhos não tinham pupilas; como os do garoto no lago, eram
inteiramente brancos, como os de uma estátua. E ele sacudia a cabeça. Não
desça aqui, homem branco. Deixe os mortos descansarem em paz.
— Mas você não está em paz — eu disse, e dirigi a luz da lanterna
totalmente para ele. Tive um vislumbre momentâneo de uma coisa
verdadeiramente medonha. Podia ver através dele, mas podia também ver
dentro dele: os restos apodrecidos de sua língua na boca, os olhos nas
órbitas, os miolos fervilhando como um ovo estragado na caixa craniana.
Então ele desapareceu, e a seguir não havia mais nada além de uma
daquelas hélices giratórias de poeira.
Desci com a lanterna levantada. Abaixo dela, ninhos de sombras oscilavam e pareciam erguer as mãos para cima.


A área de guardados (na verdade, não mais que um impressionante espaço
onde se podia rastejar) recebeu um assoalho de estrado de madeira apenas
para manter as coisas fora do solo. Agora a água corria por baixo dele num
rio contínuo, e a terra já tinha sido bastante erodida para que mesmo
rastejar fosse um trabalho difícil. O cheiro do perfume desapareceu
inteiramente. O que o substituíra era um odor fedorento de fundo de rio e
— improvável, dadas as condições, eu sei, mas estava lá — o cheiro leve e
sombrio de cinzas e fogo.
Vi imediatamente aquilo que fui buscar. As corujas de Jo pedidas
pelo correio, as que ela recebeu em novembro de 1993, estavam no canto
nordeste, onde havia apenas uns 60 centímetros entre o assoalho de
estrado em declive e a parte de baixo do estúdio. Deus do céu, pareciam
verdadeiras, disse Bill, e Deus do céu, ele tinha razão: ante o fulgor
brilhante da lanterna, pareciam pássaros primeiro enfaixados, depois
sufocados em plástico claro. Seus olhos eram brilhantes alianças
contornando largas pupilas negras. Suas penas de plástico estavam pintadas
da cor verde-escuro das agulhas dos pinheiros, e suas barrigas de um tom
de laranja claro e sujo. Rastejei até elas sobre o estrado que rangia,
instável, e com o brilho da lanterna oscilando para frente e para trás entre
as ripas, tentando não pensar se o garoto estava atrás de mim, arrastandose
em minha perseguição. Quando cheguei às corujas, levantei a cabeça
sem pensar e bati com ela no isolamento que percorria o assoalho do
estúdio. Bata um para sim, dois para não, idiota, pensei.
Firmei os dedos no plástico embrulhando as corujas e puxei-as na
minha direção. Queria estar fora dali. A sensação de água correndo logo
abaixo de mim era estranha e desagradável. Assim como o cheiro do fogo,
que parecia mais forte agora apesar da umidade. E se o estúdio estivesse
pegando fogo? E se Sara de algum modo tivesse posto fogo nele? Eu
assaria ali embaixo mesmo, enquanto a correnteza enlameada da
tempestade estivesse encharcando minhas pernas e minha barriga.
Vi que uma das corujas tinha uma base de plástico — era melhor
para colocá-la no deck ou no alpendre para assustar os corvos, meu caro
—, mas a base da outra estava faltando. Recuei até o alçapão, segurando a
lanterna numa das mãos e arrastando o saco de plástico com as corujas na
outra, encolhendo-me cada vez que o trovão rugia lá em cima. Eu só
avancei um pouco quando a fita úmida segurando o plástico cedeu. A coruja
cuja base faltava inclinou-se lentamente para mim, seus olhos cor de
petróleo fixando-se arrebatadoramente nos meus.
Um redemoinho do ar. Uma tênue e reconfortante lufada do perfume
Red. Puxei a coruja para fora pelos tufos que cresciam como chifres em
sua testa e virei-a de cabeça para baixo. No local onde tinha sido ligada à
base de plástico só havia agora duas cavilhas com um espaço oco entre
elas. Dentro do buraco estava uma pequena caixa de metal que reconheci
antes mesmo de estender a mão para a barriga da coruja e puxar a caixa
para fora. Dirigi a luz da lanterna para ela, sabendo o que veria: IDEIAS DE
JO em letras douradas e manuscritas em estilo antigo. Ela encontrara a
caixa num celeiro de antiguidades.
Fitei-a, o coração batendo com força. Trovões sacudiam o céu. O
alçapão continuava aberto, mas eu esqueci de subir. Esqueci de tudo, exceto
da caixa de metal que segurava, mais ou menos do tamanho de uma caixa
de charutos, mas não muito profunda. Coloquei a mão sobre a tampa e
puxei-a para fora.
Havia papéis dobrados espalhados em cima de dois cadernos de
taquigrafia, os de espiral que eu mantinha por perto para anotações e listas
de personagens. Esses estavam presos juntos com um elástico. Em cima
de tudo, havia um brilhante quadrado preto. Enquanto não o peguei e o
segurei junto à lanterna, não percebi que era o negativo de uma foto.
Fantasmagoricamente, invertido e numa tênue cor laranja, vi Jo com
seu maiô cinzento de duas peças. Estava em pé na plataforma de flutuação,
as mãos por trás da cabeça.
— Jo — eu disse, e então não pude dizer mais nada. Minha garganta
se fechou com lágrimas. Segurei o negativo por um momento, sem querer
perder contato com ele, e então o coloquei de volta na caixa com os papéis
e os cadernos de taquigrafia. Foi devido a eles que ela veio para Sara em
julho de 1994; para pegá-los e escondê-los tão bem quanto podia. Tirou as
corujas do deck (Frank tinha ouvido a porta lá de fora bater) e as trouxe
para cá. Eu praticamente podia vê-la retirando a base de uma coruja e
enfiando a caixa de metal em seu tubo de plástico, embrulhando ambas em
plástico e depois as arrastando para cá, enquanto o irmão fumava
Marlboros e sentia as vibrações. As más vibrações. Eu tinha dúvidas de
algum dia conhecer todos os motivos pelos quais ela tinha feito aquilo, ou
qual teria sido seu estado de espírito... mas ela quase certamente acreditou
que eu acabaria encontrando meu caminho até aqui embaixo. Por que outro
motivo teria deixado o negativo?
Os papéis soltos eram principalmente recortes xerocados do Castle
Rock Call e do Weekly News, o jornal que aparentemente precedeu ao Call.
As datas estavam escritas na caligrafia nítida e firme de minha esposa. O
recorte mais antigo era de 1865, e seu título era OUTRO LAR A SALVO .
Quem voltava das cinzas era um tal de Jared Devore, de 32 anos de idade.
Subitamente entendi uma das coisas que haviam me intrigado: as gerações
pareciam não combinar. Uma canção de Sara Tidwell me veio à mente
enquanto eu estava encolhido ali no estrado, com minha lanterna iluminando
aquelas letras numa tipologia antiga. Era a cançoneta que dizia Os velhos
fazem a coisa, e os jovens também/E os velhos mostram aos jovens como
fazê-la bem...
Quando Sara e os Red-Tops apareceram no condado de Castle e se
instalaram no que ficou conhecido como prado de Tidwell, Jared Devore
teria 67 ou 68 anos. Velho, mas ainda vigoroso. Um veterano da Guerra
Civil. O tipo de velho para quem os mais jovens podiam olhar como
exemplo. E a canção de Sara estava certa — os velhos mostram aos jovens
como fazê-la bem.
O que exatamente eles haviam feito?
Os recortes sobre Sara e os Red-Tops não diziam. Passei-os em
revista, de qualquer forma, mas o tom geral me abalou mesmo assim. Eu o
descreveria como um afável e persistente desprezo. Os Red-Tops eram
“nossos pássaros pretos sulistas” e “nossos neguinhos rítmicos”. Eram
cheios “do bom temperamento escurinho”. A própria Sara era “uma
maravilhosa figura de mulher preta, com nariz largo, lábios grossos e testa
nobre” que “fascinava homens e mulheres com sua alegria animal, sorriso
branco e riso ruidoso”.
Eram — Deus nos proteja e salve — resenhas. Boas, se você não se
importasse de ser considerado “cheio do bom temperamento escurinho”.
Folheei-os rapidamente, procurando algo sobre as circunstâncias em
que os “nossos pássaros pretos sulistas” haviam partido. Não encontrei
nada. Em vez disso, achei um recorte do Call com a data de 19 de julho (vá
a 19, pensei) de 1933. Seu título dizia VETERANO, CASEIRO E GUIA NÃO
CONSEGUE SALVAR A FILHA. Segundo a reportagem, Fred Dean vinha
combatendo incêndios na parte leste da TR com duzentos outros homens
quando o vento subitamente mudou, ameaçando a extremidade norte do
lago, previamente considerada a salvo. Naquela época, muitos habitantes
locais continuavam pescando e caçando em acampamentos ali localizados
(até aí eu sabia). A comunidade tinha tido um armazém e um nome: Halo
Bay. Hilda, a mulher de Fred Dean, estava lá com os gêmeos William e
Carla, de 3 anos, enquanto o marido se encontrava fora comendo fumaça.
Muitas outras esposas e filhos também estavam em Halo Bay.
Os incêndios tinham chegado rápido quando o vento mudou, dizia o
jornal — “como explosões marchando”. Elas saltaram o único aceiro que os
homens deixaram naquela banda e dirigiram-se à extremidade norte do lago.
Em Halo Bay não havia homens para assumir o combate, e aparentemente
nenhuma mulher capaz de fazê-lo, ou de querer fazê-lo. Em vez disso
entraram em pânico, correndo para encher os carros com filhos e bens do
acampamento, entupindo a única estrada com seus veículos. Posteriormente
um dos velhos carros ou caminhões quebrou e, enquanto os incêndios se
aproximavam, correndo pelos bosques que não viam chuva desde o final de
abril, as mulheres que esperavam encontraram o caminho de fuga
bloqueado.
Os bombeiros voluntários chegaram para o resgate a tempo, mas
quando Fred Dean alcançou a mulher, que estava no grupo tentando
empurrar um Ford cupê empacado para fora da estrada, descobriu uma
coisa terrível. Embora Bill estivesse deitado no chão do banco traseiro do
carro, adormecido, Carla não estava ali. Hilda havia pegado os dois, claro —
que se instalaram no banco de trás, de mãos dadas como sempre faziam.
Mas em algum momento depois que o irmão adormeceu no chão do carro, e
enquanto Hilda colocava o resto da bagagem no porta-malas, Carla deve ter
lembrado de um brinquedo ou de uma boneca e voltado ao chalé para
buscá-lo. Enquanto o fazia, a mãe entrara no velho DeSoto deles e partira,
sem verificar se as crianças ainda continuavam no carro. Carla Dean ainda
estava no chalé em Halo Bay ou andando pela estrada. De um modo ou de
outro, os incêndios a teriam alcançado.
A estrada era estreita demais para que um veículo pudesse fazer a
volta, e bloqueada demais para que um deles apontasse para a direção
certa no espaço lotado. Portanto Fred Dean, herói que era, partiu correndo
na direção do horizonte enegrecido pela fumaça, onde brilhantes fitas
laranja já tinham começado a surgir. Impelido pelo vento, o incêndio
aumentou e correu ao encontro dele como uma amante.
Ajoelhei no estrado, lendo isso à luz da lanterna, e de repente o
cheiro de incêndio e coisas que ardiam se intensificou. Tossi... e a tosse foi
apagada pelo gosto de ferro da água em minha boca e garganta. Mais uma
vez, agora ajoelhando na área dos guardados sob o estúdio de minha
esposa, senti como se estivesse me afogando. Mais uma vez me debrucei
para a frente e tive ânsia de vômito, mas só expeli um pouco de saliva.
Virei-me e vi o lago. Em sua enevoada superfície gritavam os
mergulhões-do-norte, voando em minha direção numa fila, batendo as asas
contra a água enquanto o faziam. O azul do céu havia sido apagado. O ar
cheirava a carvão e pólvora. A cinza tinha começado a peneirar do céu. A
margem leste do Dark Score estava em chamas, e eu tinha ocasionais e
abafadas informações a respeito quando as árvores ocas explodiam.
Soavam como tiros em profundidade.
Olhei para baixo, querendo me libertar dessa visão, sabendo que em
breve não haveria nada distante como uma visão e sim algo tão real quanto
a viagem que Kyra e eu tínhamos feito à Feira de Fryeburg. Em vez de uma
coruja de plástico de olhos debruados de ouro, eu fitava uma criança com
olhos azuis brilhantes sentada a uma mesa de piquenique, e que esticava os
braços gorduchos e chorava. Eu a via tão claramente como a meu próprio
rosto no espelho a cada manhã ao fazer a barba. Notei que tinha mais ou
menos...
A idade de Kyra, mas era muito mais gorducha, de cabelos pretos
em vez de louros. Seus cabelos são do mesmo tom que os que o irmão
terá até finalmente começar a ficar grisalho no verão inacreditavelmente
distante de 1998, um ano que ela nunca verá a não ser que alguém a tire
desse inferno. A garota usa um vestido branco, meias vermelhas até o
joelho e estende os braços para mim, chamando papai, papai.
Começo a andar até ela e então um estouro de calor organizado me
desintegra por um momento — aqui eu sou o fantasma, percebo, e Fred
Dean acaba de correr através de mim. Papai, grita ela, mas para ele, não
para mim. Papai!, e ela o abraça, sem se importar com a fuligem
manchando o seu vestido de seda branca e o rosto rechonchudo quando ele
a beija, e mais fuligem começa a cair, e os mergulhões-do-norte se dirigem
à margem, dando a impressão de chorar num lamento agudo.
Papai, o incêndio está chegando!, grita ela quando ele a recolhe nos
braços.
Eu sei, seja corajosa, diz ele. Tudo vai ficar bem, meu docinho, mas
você tem que ser corajosa.
O incêndio não está chegando; já chegou. Toda a extremidade leste
de Halo Bay está em chamas, chamas que se movem agora para esta
direção, devorando uma a uma as pequenas cabanas onde os homens
gostam de ficar bebendo na estação de caça e de pesca. Por trás da cabana
de Al LeRoux, as roupas lavadas que Marguerite pendurou naquela manhã
estão em chamas, calças e vestidos e roupa de baixo ardendo em fileiras
que são em si cordões de fogo. Folhas e cascas de árvore caem como
chuva; uma brasa ardente toca o pescoço de Carla, que dá um grito agudo
de dor. Com um tapa, Fred afasta a brasa enquanto desce o declive da
terra para a água.
Não faça isso!, eu grito. Sei que não tenho poder para mudar nada,
mas grito para ele mesmo assim, tento mudá-lo mesmo assim. Lute contra
isso! Pelo amor de Deus, lute contra isso!
Papai, quem é esse homem?, Carla pergunta, e aponta para mim,
enquanto o telhado de ripas verdes da casa dos Dean pega fogo.
Fred dá uma olhada para onde ela está apontando, e vejo em seu
rosto um espasmo de culpa. Ele sabe o que está fazendo, isso é que é
terrível — bem no fundo sabe exatamente o que está fazendo aqui em Halo
Bay onde a Rua termina. Ele sabe e está com medo de que alguém
testemunhe o seu trabalho. Mas não vê nada.
Ou vê? Seus olhos arregalam-se em dúvida por um momento, como
se visse algo — uma espiral dançante de ar, talvez. Ou talvez ele me
sinta? É isso? Ele sente uma momentânea corrente de ar em todo esse
calor? Uma corrente que é percebida como mãos que protestam, mãos que
reprimiriam se ao menos tivessem substância? Então ele afasta os olhos; e
segue pela água ao lado do trecho de cais dos Dean.
Fred!, eu grito. Pelo amor de Deus, homem, olhe para ela! Você acha
que sua mulher pôs nela um vestido branco por acaso? É isso que alguém
veste para brincar?
Papai, por que a gente tá entrando na água?, pergunta ela.
Para fugir do fogo, docinho.
Papai, eu não sei nadar!
Você não vai ter que nadar, responde ele, e que calafrio eu sinto ante
aquilo! Porque não é mentira — ela não vai ter mesmo que nadar, nem
agora nem nunca. E pelo menos o método de Fred será mais misericordioso
do que o de Normal Auster quando a vez de Normal chegar — mais
misericordioso do que a guinchante bomba manual, do que os galões de
água gelada.
O vestido branco flutua em torno dela como um lírio. Suas meias
vermelhas tremulam na água. Ela abraça o pescoço do pai bem apertado e
agora eles estão entre os mergulhões que fogem; os mergulhões espancam
a água com suas asas poderosas, formando pedaços de espuma e olhando
fixamente para o homem e a garota com seus distraídos olhos vermelhos.
O ar está pesado de fumaça e o céu desapareceu. Cambaleio atrás deles,
avançando pela água — posso sentir que está gelada, embora eu não a agite
nem deixe traço. As orlas leste e norte do lago estão em fogo agora — há
um crescente ardendo em torno de nós enquanto Fred Dean penetra mais
na água com a filha, carregando-a como para algum rito de batismo. E
mesmo assim ele diz a si mesmo que está tentando salvá-la, apenas salvá-
la, exatamente como Hilda se dirá a vida inteira que a criança
simplesmente voltou ao chalé para procurar um brinquedo, que não tinha
sido deixada para trás de propósito, deixada com vestido branco e meias
vermelhas para ser encontrada pelo pai, que certa vez cometeu algo
inominável. Isso é o passado, essa é a Terra que Ficou para Trás, e aqui os
pecados dos pais são visitados nos filhos, mesmo na sétima geração, que
ainda não chegou.
Ele a leva cada vez mais para dentro e ela começa a gritar. Seus
gritos se misturam aos gritos dos mergulhões até que ele faz os sons
cessarem com um beijo na boca aterrorizada da criança. Eu te amo, papai
ama seu docinho, diz ele, e então a mergulha. É uma imersão completa tipo
batismo, só que não há coro nenhum na margem cantando “Shall We Gather
at the River”, ninguém está gritando Aleluia!, e ele não a está deixando vir
à tona. Ela luta furiosamente na floração branca de seu vestido de sacrifício
e, por um momento, ele não suporta vê-la; em vez disso olha para o lago,
para o oeste, onde o fogo ainda não chegou (e nunca chegará); para o
oeste, onde o céu ainda está azul. A cinza cai em torno dele como chuva
negra, as lágrimas escorrem de seus olhos e, enquanto ela luta
furiosamente sob suas mãos, tentando libertar-se da garra que a afoga, ele
diz a si mesmo Foi um acidente, apenas um terrível acidente, levei-a para o
lago porque era o único lugar para onde podia ir, o único lugar que sobrara,
e ela então entrou em pânico, começou a lutar, estava toda molhada e
escorregadia e não consegui segurá-la direito e então perdi totalmente
qualquer controle sobre ela e aí...
Esqueço que sou um fantasma. Grito “Kia! Aguenta aí, Ki!”, e
mergulho. Alcanço-a, vejo seu rosto aterrorizado, seus olhos azuis saltados,
sua boca de botão que traça uma linha prateada de borbulhas em direção à
superfície onde Fred continua na água até o pescoço, segurando-a ali
embaixo enquanto diz a si mesmo repetidamente que está tentando salvá-
la, esse é o único modo, está tentando salvá-la, esse é o único modo.
Estendo a mão para ela repetidamente, repetidamente, minha criança,
minha filha, minha Kia (todos são Kia, tanto os meninos quanto as meninas,
todos minha filha), e todas as vezes meus braços a atravessam. Pior — ah,
muito pior — é que agora é ela que está estendendo os braços para mim,
os braços sardentos flutuando, implorando um resgate. Suas mãos
tateantes se dissolvem nas minhas. Não podemos nos tocar porque agora
eu sou o fantasma. Eu sou o fantasma, e enquanto a luta dela arrefece
percebo que não posso não posso ah eu
não podia respirar — estava me afogando.
Eu me curvei, abri a boca e desta vez um vômito de água do lago
saiu de mim, ensopando a coruja de plástico no estrado junto a meus
joelhos. Agarrei a caixa IDEIAS DE JO junto ao peito, não querendo que seu
conteúdo se molhasse, e o movimento disparou outra ânsia de vômito.
Desta vez jorrou água gelada de meu nariz, assim como da boca. Respirei
profundamente e então tossi, expelindo-a.
— Isso tem que terminar — eu disse, mas claro que aquilo ali era o
fim, de um modo ou de outro. Porque Kyra era a última.
Subi os degraus para o estúdio e sentei no chão cheio de lixo para
recuperar o fôlego. Do lado de fora o trovão estalava e a chuva caía, mas
achei que a tempestade já tinha superado o auge de sua fúria. Ou talvez
isso fosse apenas o que eu esperava.
Descansei com as pernas penduradas através do alçapão — não
havia mais fantasmas ali para tocar meus tornozelos, não sei como sabia
disso, mas sabia — e tirei o elástico que unia os cadernos de taquigrafia.
Abri o primeiro, folheei-o e vi que estava quase totalmente preenchido com
a letra de Jo e um número de folhas datilografadas e dobradas (tipo
Courier, claro), espaço um: o fruto de todas aquelas viagens clandestinas à
TR durante 1993 e 1994. Notas fragmentadas, em sua maioria, e
transcrições de fitas que podiam ainda estar embaixo de mim em algum
lugar na área de guardados. Num local afastado, junto com o videocassete
ou o gravador de oito faixas talvez. Mas eu não precisava delas... Quando
chegasse o momento — se o momento chegasse — tinha certeza de que
descobriria a maior parte da história ali. O que aconteceu, quem o fez,
como foi encoberto. Naquele momento, eu não me importava. Naquele
momento, só queria ter certeza de que Kyra estava a salvo e continuaria a
salvo. Só havia um modo de concretizar isso.
Na oh.
Tentei passar o elástico em volta dos cadernos de taquigrafia de
novo, e o que eu não tinha examinado escorregou da minha mão úmida, caindo no chão. Um pedaço de papel verde saiu de dentro dele. Peguei-o e vi o seguinte:Link permanente da imagem incorporada
Por um momento, saí daquela estranha e aguda consciência na qual
estava vivendo. O mundo assumiu suas dimensões costumeiras. As cores,
porém, de certo modo estavam fortes demais, os objetos presentes de
maneira excessivamente enfática. Senti-me como um soldado num campo
de batalha subitamente iluminado por um medonho clarão branco revelador
de tudo.
O pessoal de meu pai tinha vindo de Prout’s Neck, disso eu tinha
certeza; portanto meu bisavô era James Noonan, e ele jamais cagou no
mesmo fosso que Jared Devore. Max Devore mentiu quando disse aquilo a
Mattie... ou estava mal-informado... ou simplesmente confuso, como as
pessoas geralmente ficam quando chegam aos 80 anos. Mesmo um sujeito
como Devore, que de modo geral tinha continuado astuto, não teria
escapado muito daquilo. Porque, segundo aquele pequeno pedaço de
diagrama, meu bisavô teve uma irmã mais velha, Bridget. E Bridget tinha
se casado com... Benton Auster.
Meu dedo escorregou para a linha de baixo, para Harry Auster.
Nascido de Benton e Bridget Noonan Auster no ano de 1885.
— Jesus Cristo — murmurei. — O avô de Kenny Auster era meu tioavô.
E era um deles. Seja lá o que fizeram, Harry Auster era um deles. Está
aí a conexão.
Pensei em Kyra com um terror súbito e agudo. Ela tinha ficado
sozinha na casa por quase uma hora. Como é que eu fui tão burro? Alguém
podia ter entrado enquanto eu estava ali embaixo no estúdio. Sara podia ter
usado alguém para...
Percebi que não era verdade. Os assassinos e as vítimas crianças
tinham sido todos ligados pelo sangue, e agora que o sangue escasseava, o
rio quase alcançou o mar. Havia Bill Dean, mas este permanecia bem longe
de Sara Laughs. E Kenny Auster, mas Kenny tinha ido com a família para
Taxachusetts. E os parentes de sangue mais próximos de Ki — mãe, pai,
avô — estavam todos mortos.
Só eu tinha sobrado. Só eu tinha o mesmo sangue. Só eu podia fazê-
lo. A menos...
Disparei de volta a casa tão rápido quanto pude, tropeçando e
escorregando pelo caminho encharcado, desesperado para me certificar de
que ela estava bem. Não achava que Sara pudesse machucar a própria Kyra,
não importa o quanto daquela vibração da velha guarda ela absorvesse... mas e se eu estivesse errado?
E se eu estivesse errado?

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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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