domingo, 25 de outubro de 2015

Capítulo Vinte e Oito



Ki dormia exatamente como eu a tinha deixado, de lado, com o imundo
cachorrinho de pelúcia sob o rosto. Embora ele lhe tivesse deixado uma
mancha no pescoço, não tive coragem de tirá-lo dela. Além de Ki, à
esquerda, através da porta aberta do banheiro, eu ouvia o contínuo plinkplonk-plink
da água caindo da torneira para a banheira. Um ar frio foi
soprado ao meu redor com um toque sedoso, acariciando meu rosto,
enviando um desagradável calafrio por minhas costas abaixo. Na sala de
estar, o sino de Bunter sacudiu-se levemente.
A água ainda está quente, benzinho, murmurou Sara. Seja seu amigo,
o seu papai. Vá em frente. Faça o que quer fazer. Faça o que nós dois
queremos.
E eu queria fazê-lo, razão pela qual Jo havia tentado inicialmente me
manter longe da TR e de Sara Laughs. Razão pela qual fez segredo de sua
possível gravidez também. Era como se eu descobrisse um vampiro dentro
de mim, uma criatura sem qualquer interesse no que considerava uma
consciência piegas e uma moralidade discutível. Uma parte minha que só
queria levar Ki para o banheiro, mergulhá-la na banheira com água quente e
mantê-la submersa, observando as fitas brancas de borda vermelha
tremularem como o vestido branco e as meias vermelhas de Carla Dean
haviam tremulado enquanto os bosques ardiam em volta dela e do pai. Uma
parte minha que ficaria mais do que contente em pagar a última prestação
daquela velha conta.
— Meu Deus — murmurei, e enxuguei o rosto com a mão trêmula. —
Ela conhece tantos truques. E ela é tão forte, porra.
A porta do banheiro tentou se fechar na minha cara antes que eu
passasse por ela, mas a empurrei, abrindo-a quase sem qualquer
resistência. A porta do armário dos remédios bateu e o vidro se espatifou
na parede. Seu conteúdo voou para mim, mas não foi um ataque muito
perigoso; desta vez, a maioria dos mísseis consistia em tubos de pasta de
dente, escovas de dente, vidros de plástico e alguns velhos inaladores de
Vick. Fraco, muito fraco, eu podia ouvi-la gritando de frustração enquanto
eu puxava o tampão no fundo da banheira e deixava a água escorrer
gorgolejando pelo cano. Meu Deus, tinha havido suficientes afogamentos na
TR por um século. E ainda assim, por um momento, senti um impulso
inacreditavelmente forte de colocar o tampão de volta enquanto ainda havia
bastante água para que o trabalho fosse feito. Em vez disso, arranquei-o da
corrente e atirei-o no corredor. A porta do armário dos remédios se fechou
com força de novo e o resto do vidro caiu.
— Quantos você teve? — perguntei a ela. — Quantos além de Carla
Dean, Kerry Auster e a nossa Kia? Dois? Três? Cinco? De quantos precisa
antes de poder descansar?
Todos eles!, foi disparado em resposta. Também não era só a voz
de Sara; era a minha também. Ela entrara em mim, esgueirara-se para
dentro pelo porão, como um arrombador... e eu já estava pensando que,
mesmo que a banheira estivesse vazia e a bomba d’água temporariamente
desativada, sempre havia o lago.
Todos eles!, a voz gritou de novo. Todos eles, benzinho!
Claro — só todos serviriam. Até isso acontecer, não haveria nenhum
repouso para Sara Laughs.
— Vou ajudá-la a descansar — eu disse. — Prometo.
O final da água girou cano abaixo... mas sempre havia o lago,
sempre havia o lago se eu mudasse de ideia. Saí do banheiro e fui checar Ki
novamente. Ela não tinha se movido, a sensação de que Sara estava ali
comigo tinha desaparecido, o sino de Bunter se aquietou... e mesmo assim
eu me sentia desconfortável, sem querer deixá-la sozinha. Mas tinha que
deixá-la se ia terminar meu trabalho, e não seria bom ficar protelando. Os
tiras do condado e do estado apareceriam sem dúvida, tempestade ou não,
árvores caídas ou não.
É, mas...
Entrei no corredor e olhei em torno, inquieto. Trovões ribombavam,
mas estavam perdendo parte de sua urgência. O vento também. O que não
estava sumindo era a sensação de que algo me observava, algo que não era
Sara. Fiquei onde estava por mais um tempo, tentando dizer a mim mesmo
que era apenas o chiado dos meus nervos fervilhando, e a seguir caminhei
pelo corredor até a entrada.
Abri a porta que dava para o alpendre... e então olhei à volta de novo
atentamente, como se esperasse ver alguém ou algo pairando atrás da
estante. Uma Forma, talvez. Algo que ainda queria o seu pega-poeira. Mas
eu era a única Forma que restava, pelo menos naquela parte do mundo, e o
único movimento que vi foram as sombras ondulantes formadas pela chuva
escorrendo pelas janelas.
Ainda chovia com força suficiente para tornar a me encharcar
quando fui do alpendre à entrada de carros, mas não prestei atenção. Eu
tinha acabado de estar com uma garotinha enquanto ela se afogava, eu
mesmo quase me afoguei há não muito tempo, e a chuva não me impediria
de fazer o que tinha que fazer. Peguei o galho caído que tinha amassado o
teto do carro, atirei-o para um lado e abri a porta traseira do Chevy.
As coisas que comprei no Slips’n Greens ainda estavam no banco de
trás, enfiadas na bolsa de pano que Lila Proulx tinha me dado. A colher de
jardineiro e a faca de podar eram visíveis, mas o terceiro item estava num
saco plástico. Quer isso numa sacola especial?, Lila me perguntou. Sempre
seguro, nunca em apuros. E depois, quando eu estava indo embora, ela tinha
falado do cachorro Mirtilo, de Kenny, perseguindo as gaivotas, e deu uma
risada grande e vigorosa. Mas seus olhos não tinham rido. Talvez seja isso
que diferencie os marcianos dos terráqueos — os marcianos jamais
conseguem rir com os olhos.
Vi o presente de Rommie e George no banco da frente: a Stenomask
que eu achei inicialmente que fosse a máscara de oxigênio de Devore. Os
rapazes do porão então falaram — pelo menos murmuraram — e inclineime
sobre o banco para pegar a máscara por sua tira de elástico sem a
mais leve ideia de por que estava fazendo aquilo. Deixei-a cair dentro da
bolsa de compras, bati a porta do carro e então comecei a descer os
degraus de dormentes para o lago. No caminho fiz uma pausa para descer
sob o deck, onde sempre guardávamos algumas ferramentas. Não havia
picareta, mas peguei uma pá que parecia um instrumento para cavar
túmulos. Então, no que eu pensei ser a última vez, segui o curso de meu
sonho até a Rua. Não precisava que Jo me mostrasse o lugar; a Senhora
Verde o vinha apontando o tempo todo. Mesmo que ela não o tivesse
mostrado, e ainda que Sara Tidwell já não fedesse tanto, acho que eu teria
sabido. Acho que teria sido conduzido até lá por meu próprio coração assombrado.


Havia um homem em pé entre o lugar onde eu estava e o ponto em que o
frontão cinzento da rocha guardava o caminho. Enquanto fiz uma pausa no
último dormente, ele me saudou com uma voz irritante que eu conhecia
bem demais.
— Diga lá, devasso, onde está sua puta?
Embora estivesse parado no meio da Rua sob a chuva que caía, seu
traje de lenhador — calça de flanela verde, camisa de lã xadrez — e o
desbotado quepe azul do Exército da União estavam secos, pois a chuva
caía através dele e não sobre ele. Parecia sólido, mas não era mais real do
que a própria Sara. Eu me lembrei disso quando desci até o caminho para
enfrentá-lo, mas meu coração continuava a acelerar, batendo no peito como
um martelo acolchoado.
As roupas dele eram as de Jared Devore, mas aquele não era Jared.
Era seu bisneto Max, que começou a carreira com um ato de roubo de trenó
e a terminou com o suicídio... mas não antes de arquitetar o assassinato da
nora que cometeu a temeridade de recusar-lhe o que ele tanto desejava.
Comecei a andar em sua direção, e ele se moveu para o meio do
caminho para bloquear minha passagem. Eu sentia o frio que ele emitia.
Estou querendo dizer exatamente isso, expressando o que lembro tão
claramente quanto posso: eu sentia o frio emitindo-se dele. Sim, era Max
Devore mesmo, mas vestido como um lenhador numa festa à fantasia e
com a aparência que devia ter quando seu filho Lance tinha nascido. Velho,
mas vigoroso. O tipo de homem que podia ser uma referência para os mais
jovens. E agora, como se o pensamento os convocasse, eu podia ver o resto
tremulando numa tênue existência atrás dele, em pé numa fila
atravessando o caminho. Eram os que haviam estado com Jared na Feira de
Fryeburg, e agora eu sabia quem eram alguns deles. Fred Dean, claro, com
apenas 19 anos em 1901, o afogamento da filha ainda a mais de trinta anos
de distância no futuro. E o que me lembrou de mim mesmo era Harry
Auster, o primogênito da irmã de meu bisavô. Ele estaria com 16 anos,
quase sem idade suficiente para tomar um pilequinho, mas velho o bastante
para trabalhar nos bosques com Jared. Velho o bastante para cagar no
mesmo fosso que Jared. Para considerar equivocadamente o veneno de
Jared como sabedoria. Um dos outros tinha torcido a cabeça e estreitado os
olhos ao mesmo tempo — eu já vi aquele tique antes. Onde? Então me
ocorreu: no Armazém Lakeview. Aquele rapaz era o pai do falecido Royce
Merrill. Os outros eu não conhecia. Nem fazia questão de conhecer.
— Você não vai passar por nós — disse Devore. Levantou as mãos.
— Nem pense em tentar. Não tenho razão, rapazes?
Eles resmungaram algo concordando — como se ouviria de qualquer
gangue de drogados ou desordeiros dos dias atuais, imagino —, mas suas
vozes eram distantes; na verdade mais tristes do que ameaçadoras. Havia
alguma substância no homem com as roupas de Jared Devore, talvez
porque em vida ele tinha sido um homem de enorme vitalidade ou talvez
porque tivesse morrido tão recentemente, mas os outros eram pouco mais
do que imagens projetadas.
Comecei a andar, penetrando no frio congelante, penetrando no cheiro
dele — os mesmos odores doentios que o haviam rodeado quando eu o
encontrara antes.
— Aonde pensa que está indo? — exclamou.
— Fazer uma caminhada terapêutica — falei. — E não há nenhuma
lei contra isso. A Rua é o lugar onde bons cachorrinhos e cães malvados
podem andar lado a lado. Você mesmo disse isso.
— Você não entende — disse Max-Jared. — Nunca vai entender. Não
pertence àquele mundo. Aquele era o nosso mundo.
Parei, olhando-o com curiosidade. O tempo era curto, eu queria
terminar com aquilo... mas tinha que saber, e achei que Devore estava
pronto para contar.
— Me faça entender — eu disse. — Convença-me de que qualquer
mundo era o seu mundo. — Olhei-o, e depois para as bruxuleantes e
translúcidas figuras por trás dele, carne diáfana empilhada em ossos
brilhantes. — Conte-me o que fez.
— Era tudo diferente então — disse Devore. — Quando você desce
até aqui, Noonan, pode andar 5 quilômetros ao norte para Halo Bay e ver
apenas uma dúzia de pessoas na Rua. Depois do Dia do Trabalho pode não
se ver absolutamente ninguém. Deste lado do lago você tem que contornar
os arbustos que estão crescendo desordenadamente, as árvores derrubadas
— haverá até mais delas depois desta tempestade — e até um ou dois
amontoados de mato e árvores caídas, porque hoje em dia o pessoal da
cidade não se junta para mantê-la limpa como antigamente. Mas em nosso
tempo!... Os bosques eram maiores então, Noonan, as distâncias mais
longínquas, e vizinhança significava alguma coisa. A própria vida, com
frequência. Naquela época, isso aqui era realmente uma rua. Não vê?
Eu poderia ver. Se olhasse através das formas fantasmas de Fred
Dean, Harry Auster e os outros, poderia ver. Não eram apenas fantasmas;
eram tremeluzentes janelas de vidro dando para outra época. Vi
uma tarde de verão no ano de... 1898? Talvez 1902? 1907? Não
importa. Aquele era um período em que todo tempo parece o mesmo, como
se tivesse parado. Aquele é um tempo que o pessoal da velha guarda
lembra como uma espécie de época dourada. É a Terra que Ficou para Trás,
o Reino do Quando-Eu-Era-um-Garoto. O sol lava tudo com a fina luz de
ouro do final interminável de julho; o lago é tão azul quanto um sonho,
enfeitado com um bilhão de centelhas de reflexos de luz. E a Rua! Tem
uma relva tão macia quanto um gramado e tão larga quanto um boulevard.
Vejo que é um boulevard, um lugar onde a comunidade se realiza
completamente. É o principal canal de comunicação, o cabo-chefe numa
região crivada deles. Senti a existência desses cabos o tempo inteiro —
mesmo quando Jo estava viva eu os sentia sob a superfície, e ali estava
seu ponto de origem. O passeio do pessoal na Rua: para cima e para baixo
do lado leste do lago Dark Score eles passeiam em pequenos grupos, rindo
e conversando sob um céu de verão empilhado de nuvens, e foi ali que
todos os cabos começaram. Olhei e percebi como estava errado em pensar
neles como marcianos, como alienígenas cruéis e calculistas. À leste de
seu passeio ensolarado paira a escuridão dos bosques, clareiras e bolsões,
onde qualquer coisa miserável pode espreitar, de um pé decepado num
acidente de corte de árvore até um parto que deu errado e uma jovem mãe
morta antes de o médico poder chegar de Castle Rock em sua charrete.
São pessoas sem eletricidade, sem telefone, sem Unidade de Resgate do
condado, sem ninguém em quem se apoiar exceto uns aos outros e um
Deus de que alguns já tinham começado a desconfiar. Moram nos bosques e
nas sombras dos bosques, mas nas bonitas tardes de verão eles vêm para
a beira do lago. Vêm para a Rua e olham os rostos uns dos outros e riem
juntos, e então estão verdadeiramente na TR — no que eu passei a pensar
como a zona. Não são marcianos; são pequenos seres vivos habitando à
beira da escuridão, só isso.
Vejo o pessoal de verão do Warrington’s, os homens vestidos de
flanela branca, duas mulheres em vestidos longos de tênis, ainda
carregando as raquetes. Um sujeito dirigindo um triciclo com uma enorme
roda dianteira costura tremulamente entre eles. O grupo do pessoal de
verão parou para falar com um grupo de rapazes locais; os rapazes de
longe querem saber se podem participar do jogo de beisebol do pessoal da
cidade no Warrington’s na terça à noite. Ben Merrill, o futuro pai de Royce,
diz Podem, mas não vamos dar moleza a vocês só porque são de Noova
Yak. Os rapazes riem; as tenistas também.
Um pouco mais longe, dois garotos estão pegando e lançando uma
bola simples de beisebol, feita em casa. Além deles vê-se uma reunião de
jovens mães, falando veementemente de seus bebês, todos bem seguros
dentro de carrinhos e reunidos num grupo próprio. Homens de macacão
discutem o tempo e as safras, a política e as safras, os impostos e as
safras. Uma professora do Consolidated High está sentada na saliente pedra
cinzenta que conheço tão bem, orientando pacientemente um garoto
emburrado que deseja estar em outro lugar, fazendo outra coisa qualquer.
Acho que, quando crescer, esse garoto será o pai de Buddy Jellison. Buzina
quebrada — aguarde pelo dedo, penso.
Ao longo de toda a Rua, o pessoal está pescando, e pegam muitos
peixes; o lago praticamente fervilha de peixes diversos, como percas,
trutas e lúcios. Um artista — outro sujeito de verão, julgando-se pelo
guarda-pó e pela boina — instalou seu cavalete e está pintando as
montanhas, enquanto duas senhoras assistem cheias de respeito. Um grupo
de garotas passa, sussurrando sobre rapazes, roupas e escola. Há beleza
ali, e paz. Devore tem razão de dizer que aquele é um mundo que eu jamais
conheci. Ele é
— Lindo — digo, voltando de lá com esforço. — É, eu vejo isso. Mas
qual é o ponto de vista que está defendendo?
— Qual é? — Devore pareceu quase comicamente surpreso. — Ela
pensou que podia andar ali como qualquer um, é esse o ponto, porra!
Pensou que podia andar ali como se fosse uma garota branca! Ela, seus
grandes dentes, seus grandes peitos e seu ar esnobe. Achou que era algo
especial, mas nós lhe ensinamos. Ela tentou passar por mim, e, quando não
conseguiu, colocou as mãos sujas em mim e me derrubou. Mas, tudo bem,
ensinamos a ela boas maneiras. Não ensinamos, rapazes?
Eles resmungaram concordando, mas achei que alguns deles — o
jovem Harry Auster, por exemplo — pareciam nauseados.
— Nós lhe ensinamos qual era seu lugar — disse Devore. — Nós lhe
ensinamos que ela era apenas uma
crioulo. Essa é a palavra que ele usa repetidamente quando eles
estão nos bosques naquele verão, o verão de 1901, o verão em que Sara e
os Red-Tops se tornaram “o” espetáculo musical nesta parte do mundo. Ela,
seu irmão e toda sua família de crioulos tinham sido convidados pelo
Warrington’s para tocar para o pessoal de verão; eles foram alimentados
com champanhe e ostras... ou assim diz Jared Devore para sua pequena
escola de devotados seguidores enquanto estes almoçam seus alimentos
comuns, pão, carne e pepinos salgados tirados de tinas de toucinho e dados
a eles pelas mães (nenhum dos rapazes é casado, embora Oren Peebles
esteja noivo).
Entretanto, não é a crescente fama dela que aborrece Jared Devore.
Não é o fato de que tenha estado no Warrington’s; ele não dá a mínima
também para o fato de que ela e o irmão tenham realmente sentado e
comido com gente branca, tirado pão da mesma cesta que eles com seus
dedos pretos. Afinal de contas, o pessoal do Warrington’s é gente da
planície, e Devore conta aos rapazes silenciosos e atentos que ouviu dizer
que, em lugares como Nova York e Chicago, as mulheres brancas às vezes
chegam até a foder com pretos.
Não!, diz Harry Auster, olhando nervosamente ao redor, como se
esperasse que algumas mulheres brancas viessem saltitando pelos bosques
ali em Bowie Ridge. Nenhuma mulher branca foderia com um preto! Deixa
disso!
Devore apenas lhe lança um olhar do tipo que diz Quando você
estiver com a minha idade. Além disso, ele não se importa com o que
acontece em Nova York ou Chicago; viu toda a gente da planície que queria
durante a Guerra Civil... e, dirá ele, nunca lutou naquela guerra para libertar
aqueles escravos desgraçados. Eles podem manter os escravos lá na terra
do algodão até o final da eternidade, no que diz respeito a Jared Lancelot
Devore. Não, ele lutou na guerra para ensinar àqueles filhos da puta pirados
ao sul da linha Mason e a Dixon que você não abandona o jogo só porque
não gosta de algumas regras. Foi até lá para arrancar o couro de Johnny
Reb. Imagina só, tinham tentado deixar os Estados Unidos da América!
Santo Deus!
Não, ele não dá a mínima para os escravos e não dá a mínima para
a terra do algodão e não dá a mínima para os crioulos que cantam canções
sujas e então são tratados a champanhe e oostras (Jared sempre diz ostras
daquela forma sarcástica) em pagamento por suas histórias obscenas. Ele
não dá a mínima para coisa alguma desde que se mantenham no seu lugar
e o deixem continuar no dele.
Mas ela não vai fazer isso. A vadia arrogante não vai fazer isso. Já
foi avisada para ficar longe da Rua, mas não vai obedecer. Vai para lá de
qualquer jeito, e passeará de vestido branco exatamente como se houvesse
uma pessoa branca dentro dele, às vezes com o filho, que tem um nome de
negro africano e nenhum pai — o pai provavelmente só passou uma noite
com a mãe num monte de feno em algum lugar lá no Alabama, e agora ela
anda por ali com o fruto daquilo, tão atrevida quanto um macaco insolente.
Anda pela Rua como se tivesse direito de estar lá, ainda que nem uma só
alma fale com ela...
— Mas isso não é verdade, é? — perguntei a Devore. — Foi isso que
realmente não passou pela garganta do velho bisavô, não é? Eles falavam
com ela. Ela tinha um jeito... aquele riso, talvez. Os homens conversavam
com ela sobre as safras e as mulheres lhe mostravam os bebês. Na
verdade, entregavam a ela os bebês para que segurasse. As moças lhe
pediam conselhos sobre os rapazes. Os rapazes... apenas olhavam. Mas
como olhavam, hein? Enchiam os olhos, e acho que a maioria deles pensava
nela quando ia para o banheiro e enchia as mãos.
Devore me olhou com raiva. Estava envelhecendo na minha frente, as
rugas se desenhando cada vez mais fundas em seu rosto; tornava-se o
homem que tinha me empurrado para dentro do lago porque não suportava
que o contrariassem. À medida que ficava mais velho, começava a
desaparecer.
— Foi o que Jared mais detestou, não foi? Que eles não a pusessem
de lado, não se afastassem. Ela andava pela Rua e ninguém a tratava como
crioula. Eles a tratavam como uma vizinha.
Eu estava mais profundamente na zona do que havia estado algum
dia, bem lá no fundo onde o inconsciente da cidade parecia correr como um
rio enterrado. Eu podia beber daquele rio enquanto estava na zona, podia
encher minha boca e garganta e ventre com seu gosto frio e mineral.
Por todo aquele verão, Devore falou com eles. Eram mais do que seu
grupo, eram os seus rapazes: Fred, Harry, Ben, Oren, George Armbruster e
Draper Finney, que quebraria o pescoço e se afogaria no verão seguinte
tentando mergulhar na pedreira Eades quando estava bêbado. Só que foi um
tipo de acidente proposital. Draper Finney tinha bebido muito entre julho de
1901 e agosto de 1902, porque essa era a única maneira de ele poder
dormir. A única maneira de tirar aquela mão de sua mente, aquela mão
esticada para fora d’água, abrindo e fechando até que se quisesse gritar
Pare, pare de fazer isso.
Por todo o verão, Jared Devore encheu os ouvidos deles com vadia
crioula e vadia arrogante. Por todo o verão ele lhes falou de sua
responsabilidade como homens, seu dever de manter a comunidade pura, e
como deviam enxergar o que os outros não enxergavam e fazer o que os
outros não fariam.
Era uma tarde de domingo em agosto, uma hora em que o tráfego ao
longo da Rua diminuía drasticamente. Mais tarde, por volta das cinco, as
coisas começariam a se animar de novo, e das seis ao pôr do sol o largo
caminho ao longo do lago ficaria lotado. Mas às três da tarde a maré
estava baixa. Os metodistas estavam em sessão em Harlow para sua tarde
de culto musical no Warrington’s, o grupo de gente de férias da planície
estava reunido, sentado para uma pesada refeição do sabá no meio da
tarde, composta de presunto e galinha assada; por toda parte, famílias do
distrito sentavam-se ante suas próprias refeições de domingo. Os que já
haviam terminado tiravam uma soneca no calor do dia — numa rede,
sempre que possível. Sara gostava daquela hora quieta. Adorava mesmo.
Tinha passado boa parte da vida em animadas ruas principais de feiras e
enfumaçadas espeluncas que vendiam gim, berrando suas canções a fim de
ser ouvida acima das vozes de bêbados desordeiros de rostos vermelhos, e,
embora parte dela adorasse a excitação e a imprevisibilidade dessa vida,
parte dela adorava a serenidade daquela ali também. A paz daqueles
caminhos. Afinal de contas, não estava ficando mais jovem; tinha um filho
que agora já tinha deixado boa parte da infância para trás. Naquele domingo
em particular, ela deve ter achado a Rua quase quieta demais. Andou um
quilômetro e meio para o sul do prado sem ver uma viva alma — até Kito
sumira então, tendo parado para pegar frutinhas vermelhas. Era como se
todo o distrito estivesse
abandonado. Ela sabe que há um jantar da Eastern Star em
Kashwakamak, claro, chegou até a contribuir com uma torta de cogumelos
porque tinha ficado amiga de algumas senhoras da Eastern Star. Estarão
todas lá preparando as coisas. O que ela não sabe é que hoje é também o
Dia da Consagração da nova igreja batista da Graça, a primeira igreja
verdadeira a ser construída na TR. Um bando de habitantes locais
compareceu, batistas e pagãos. Ela pode ouvir levemente os metodistas
cantando, do outro lado do lago. O som é doce, tênue e belo; a distância e
o eco afinaram todas as vozes azedas.
Ela não percebeu os homens — na maioria rapazes muito jovens, do
tipo que em circunstâncias comuns só ousam olhá-la com o canto do olho
— até que o mais velho dentre eles fala:
— Vejam só, uma puta preta de vestido branco e cinto vermelho!
Sabe-se lá se isso não é um pouco de cor demais para a beira do lago. O
que há de errado com você, sua puta? Não aceita um aviso?
Ela se vira para ele, com medo, mas sem demonstrá-lo. Viveu 36
anos nesta terra, sabe o que um homem tem e onde ele quer colocá-lo
desde que fez 11 anos, e entende que, quando eles estão reunidos e de cara
cheia (pode sentir o cheiro da bebida), desistem de pensar por si mesmos e
se transformam numa matilha de cães. Se você demonstrar medo, eles
caem sobre você como cães e provavelmente a dilaceram como cães.
Além disso, eles vêm querendo se deitar com ela. Não pode haver
qualquer outra explicação para eles se mostrarem assim.
— Que aviso foi esse, benzinho? — pergunta ela, mantendo terreno.
Onde está todo mundo? Onde podem estar todos? Que droga! Do outro lado
do lago, os metodistas passaram a “Trust and Obey”, a coisa mais
monótona do mundo.
— De que você não tem nada de estar andando onde os brancos
andam — diz Harry Auster. Sua voz adolescente se quebra numa espécie de
chiado de camundongo na última palavra, e Sara ri. Ela sabe que não é
inteligente fazer isso, mas não consegue se controlar... nunca foi capaz de
controlar seu riso, assim como nunca foi capaz de evitar que homens desse
tipo olhem para seus peitos e seu traseiro. Que pusessem a culpa em
Deus.
— Ora, eu ando onde ando — diz ela. — Me disseram que isso aqui
era um espaço público, e ninguém tem o direito de me impedir. Ninguém
tem. Já viu alguém fazendo isso?
— Você vai ver a gente agora — diz George Armbruster, tentando
parecer durão.
Sara o fita com uma espécie de amável desdém que faz George
murchar por dentro. O rosto dele fulgura, vermelho e quente.
— Filho — diz ela —, você está se mostrando agora só porque as
pessoas decentes não estão aqui. Por que deixa que esse sujeito lhe diga o
que fazer? Aja com decência e deixe uma senhora caminhar.
Eu vejo aquilo tudo. Enquanto Devore desaparece cada vez mais,
finalmente se tornando apenas olhos sob um quepe azul na tarde chuvosa
(através dele posso ver os restos espatifados de minha plataforma de
flutuação boiando contra a margem), eu vejo aquilo tudo. Eu a vejo
se mover para a frente, caminhando direto para Devore. Se ela ficar
ali batendo boca com eles, alguma coisa ruim vai acontecer. Ela sente isso,
e jamais discute seus sentimentos. E se andar para qualquer um dos
outros, o Ole massa a empurrará do caminho, levando o resto com ele. O
Ole massa com o quepezinho azul é o chefe da matilha, aquele que ela
precisa enfrentar. Ela pode fazê-lo, sem dúvida. Ele é poderoso, poderoso o
suficiente para fazer desses rapazes uma criatura só, uma criatura dele,
pelo menos por enquanto, mas ele não tem a força, a determinação e a
energia dela. De certo modo, ela dá as boas-vindas a esse confronto. Reg a
avisou para ter cuidado, não andar rápido demais ou tentar fazer
verdadeiros amigos até que os caipiras (só Reggie os chama de “crocodilos
machos”) se mostrem — quantos são e a que ponto são malucos —, mas
ela segue seu próprio curso, confia nos próprios instintos profundos. E ali
estão eles, só sete, e de fato apenas um crocodilo macho.
Sou mais forte que você, Ole massa, pensa ela, andando para ele.
Fixa seus olhos nos dele e não vai abaixá-los; são os dele que se abaixam,
a boca dele que treme incerta num canto, é dele a língua colocada para
fora, tão rápida quanto a de um lagarto para molhar os lábios, e tudo aquilo
é bom... mas é até melhor quando ele recua um passo. Quando ele faz isso,
os outros se amontoam em dois grupos de três, e é isso, lá está a abertura
no caminho dela. Frouxos e doces são os metodistas, música de fé
arrastando-se pela imóvel superfície do lago. Um hino monótono, sim, mas doce a distância.

“When we walk with the Lord
in the light of His world,

what a glory He sheds on our way…”
[Quando andamos com o Senhor / recebendo de Sua palavra o fulgor /que
glória sobre nós se derrama...]
Sou mais forte que você, benzinho, ela envia, sou pior do que você,
você pode ser o crocodilo macho, mas eu sou a abelha-rainha, e, se não
quer que eu lhe dê uma ferroada, é melhor ficar longe de mim pelo resto do
caminho.
— Sua vadia — diz ele, mas sua voz é fraca; ele já está pensando
que esse não é o dia, que há algo nela que ele não viu bem até encará-la
tão de perto, um feitiço de crioula que ele não sentiu até agora, melhor
esperar outro dia, melhor...
Então ele tropeça numa raiz ou rocha (talvez seja a grande pedra
atrás da qual ela finalmente veio a descansar) e cai. Seu quepe também,
mostrando a grande e velha mancha de calvície no alto de sua cabeça. As
calças dele se rasgam por toda a costura. E Sara comete um erro crucial.
Talvez subestime a própria força considerável de Jared Devore, ou talvez
simplesmente não possa evitar — o som de suas calças rasgando é como
um peido alto. De qualquer modo ela ri — aquele riso estridente, um sorriso
amarelado que é sua marca registrada. E aquele sorriso se torna a sua
condenação.
Devore não pensa. Ele simplesmente a golpeia dali onde está deitado,
grandes pés em botas com chapinhas de ferro impelidas para a frente
como pistões. Ele a atinge onde ela é mais fina e mais vulnerável, nos
tornozelos. Ela berra com o choque da dor quando o esquerdo quebra;
começa a cair cambaleando, a mão soltando a sombrinha fechada. Ela
respira e grita de novo, e Jared diz de onde está deitado:
— Não a deixem gritar! Não a deixem gritar!
Ben Merrill cai em cima dela de corpo inteiro, todos os seus 86
quilos. O fôlego que ela tinha tomado para gritar sai em pequenas ondas,
em vez do grito tempestuoso, quase um suspiro silencioso. Ben, que jamais
tinha dançado com uma mulher, muito menos ficado em cima de uma
assim, sente-se instantaneamente excitado pela sensação dela lutando
debaixo de seu corpo. Ele se contorce contra ela, rindo, e quando ela
arranha seu rosto ele quase não o sente. Sente-se só um pau de um metro
de comprimento. Quando ela tenta rolar e sair debaixo dele, ele rola com
ela, deixa que ela fique no alto, e fica totalmente surpreso quando ela lhe
dá uma cabeçada. Ele vê estrelas, mas tem 18 anos, é forte como jamais
seria algum dia, e não perde a consciência nem a ereção.
Oren Peebles rasga a parte de trás do vestido dela, rindo.
— Coladinho! — grita ele num murmúrio ofegante, e cai por cima
dela. Agora ele está se esfregando a seco de lá de cima e Ben está se
esfregando a seco tão entusiasticamente quanto ele embaixo, se esfregando
como um bode mesmo com o sangue escorrendo pelas laterais da cabeça
da fenda no centro da testa, e ela sabe que se não puder gritar está
perdida. Se puder gritar e Kito ouvir, ele fugirá e trará Reg...
Mas antes que possa tentar de novo, o Ole massa está agachado ao
lado dela mostrando-lhe uma faca de lâmina comprida.
— Se der um pio eu corto seu nariz — diz ele, e é então que ela
desiste. Eles a derrotaram, afinal de contas, em parte porque ela riu no
momento errado, principalmente por pura e simples falta de sorte. Agora
eles não pararão, e é melhor que Kito continue longe — por favor, Deus,
mantenha-o onde está, era uma grande quantidade de frutinhas, e que deve
mantê-lo ocupado uma hora ou mais. Ele adora colher as frutinhas e esses
homens não vão levar uma hora nisso. Harry Auster puxa o cabelo dela para
trás, rasga seu vestido num ombro e começa a chupar seu pescoço.
O Ole massa é o único que não a toca. O Ole massa está em pé e
recuado, olhando para os dois lados da Rua, os olhos apertados e
cautelosos; o Ole massa parece um repulsivo lobo cinzento que acabou de
comer uma geração inteira de galinhas de quintal evitando ao mesmo
tempo cada armadilha e tocaia.
— Ei, irlandês, solte-a um minuto — ele diz a Harry, então dirige seu
olhar sagaz para os outros. — Acertem ela no buraco, seus idiotas.
Acertem ela lá no fundo.
Eles não o fazem. Não conseguem. Estão ávidos demais para possuí-
la. Puxam-na pelo braço para trás do frontão da pedra cinzenta e acham
que está bom. Ela não reza facilmente, mas está rezando agora. Reza para
que a deixem viva. Reza para que Kito fique distante, para que continue a
encher seu balde lentamente enquanto come um terço do que colhe. Reza
para que, se ele a alcançar, veja o que está acontecendo e corra para o
outro lado tão rápido quanto puder, corra silenciosamente e chame Reg.
— Meta isso na boca — ofega George Armbruster. — E não me
morda, sua vadia.
Eles a tomam por cima e por baixo, pela frente e por trás, dois ou
três ao mesmo tempo. Eles a tomam onde alguém aparecendo não pode
deixar de vê-los, e o Ole massa fica um pouco afastado, olhando primeiro
para os ofegantes rapazes agrupados em torno dela, ajoelhando-se com as
calças abaixadas e as coxas arranhadas das moitas onde estão ajoelhando,
depois ele examina o caminho de cima a baixo com seus olhos alucinados e
cautelosos. Inacreditavelmente, um deles — é Fred Dean — diz:
— Desculpe, dona — depois de soltar sua carga e de se sentir pra lá
de Marrakech. É como se tivesse acidentalmente chutado a canela dela ao
cruzar as pernas.
E a coisa não termina. Desce pela garganta dela, desce pela fenda de
seu rabo, o jovem tirou sangue ao morder seu seio esquerdo, e a coisa não
termina. Eles são jovens, e quando o último terminou, o primeiro, ah, Deus,
o primeiro está pronto de novo. Do outro lado do rio os metodistas estão
agora cantando “Blessed Assurance, Jesus is mine”, e quando o Ole massa
se aproxima dela ela pensa. Está quase terminado, mulher, ele é o último,
aguente, aguente firme que vai terminar. Ele olha para o ruivo magricela e
para o que continua estreitando os olhos e agitando a cabeça e lhes diz
para vigiarem o caminho, é a sua vez agora, agora que ela está mansa.
Ele desafivela o cinto, desabotoa a braguilha, desce as ceroulas —
com sujeira preta nos joelhos e amarela no gancho — e enquanto cai de
joelhos sobre ela, ela vê que o Ole massa do Ole massa está tão mole
quanto uma cobra de pescoço quebrado e, antes que ela possa impedir, o
riso estridente explode inesperadamente de novo — mesmo deitada ali,
coberta com a geleia quente dos estupradores, ela não consegue se
controlar ao ver o lado engraçado.
— Cale a boca! — resmunga ele guturalmente, e senta a palma dura
de sua mão no rosto dela, quebrando-lhe o malar e o nariz. — Pare com
esse uivo!
— Acho que ele ia ficar mais duro se fosse um dos seus garotos
quem estivesse deitado aqui, com o cu cor-de-rosa virado pro ar, não é,
benzinho? — diz ela, e então Sara ri pela última vez.
Devore levanta a mão para bater nela de novo, seus quadris nus
contra os quadris nus dela, seu pênis uma minhoca flácida entre eles. Mas,
antes que possa descer a mão, uma voz de criança grita:
— Mãe! O que é que tão fazendo com você, mãe? Larguem minha
mãe, canalhas!
Ela se senta apesar do peso de Devore, o riso morrendo, os olhos
arregalados procurando Kito e o encontrando, um esbelto garoto de 8 anos
em pé na Rua, de macacão, chapéu de palha e sapatos de lona novos em
folha, carregando um balde de lata. Seus lábios estão azuis do sumo das
frutas. Os olhos surpresos de confusão e medo.
— Foge, Kito! — grita ela. — Foge...
Um fogo vermelho explode em sua cabeça; ela desmaia novamente
entre os arbustos, ouvindo o Ole massa a uma grande distância:
— Peguem ele. Não deixem ele ficar por aí, agora.
Então ela está descendo um grande declive negro, está perdida num
corredor da Casa Fantasma que leva cada vez mais para o fundo de suas
emaranhadas entranhas; daquele lugar profundo por onde vai caindo ela o
escuta, ela escuta o seu querido, ele está
gritando. Eu o ouço gritar enquanto ajoelho junto à rocha cinzenta
com minha bolsa de compras ao lado e não tenho ideia de como cheguei ali
— certamente não tenho nenhuma lembrança de ter andado até lá. Eu
estava chorando de choque, horror e pena. Ela era maluca? Bem, não é de
espantar. Absolutamente nada de espantar, porra. A chuva caía
continuamente, porém não mais de forma apocalíptica. Contemplei
fixamente minhas mãos de um branco mortiço na pedra cinzenta por alguns
segundos, depois olhei em torno. Devore e os outros haviam desaparecido.
O fedor maduro e gasoso de decomposição encheu meu nariz — era
como um ataque físico. Remexi na bolsa de compras, encontrei a
Stenomask que Rommie e George tinham me dado de brincadeira, e
coloquei-a sobre a boca e o nariz com dedos entorpecidos e distantes.
Respirei levemente, com hesitação. Melhor. Não muito, mas o suficiente
para me impedir de fugir, o que indubitavelmente era o que ela queria.
— Não! — gritou ela de algum ponto atrás de mim quando agarrei a
pá e cavei. Arranquei um grande naco do solo com o primeiro golpe, e os
que vieram depois aprofundaram e alargaram o buraco. A terra era macia e
dócil, misturada ao emaranhado de raízes finas que se partiam facilmente
sob a lâmina.
— Não! Não ouse fazer isso!
Eu não ia olhar em volta, não ia lhe dar a chance de me empurrar
para longe. Ali ela era mais forte, talvez porque fosse o local onde a coisa
aconteceu. Seria possível? Eu não sabia e não me importava. Importava-me
apenas fazer o serviço. Onde as raízes eram mais espessas, eu as cortava
com a podadeira.
— Deixe-me existir!
Então olhei ao redor, arrisquei uma rápida olhada por causa dos sons
de estalo pouco naturais que haviam acompanhado a voz dela — e que
agora pareciam formar sua voz. A Senhora Verde tinha desaparecido. A
bétula de algum modo tinha se tornado Sara Tidwell: era o rosto de Sara
que saía de suas folhas brilhantes e galhos entrecruzados. O rosto lustroso
de chuva oscilou, dissolveu-se, juntou-se, dissolveu-se e agregou-se de
novo. Por um momento, todo o mistério que senti naquele lugar tinha sido
revelado. Os olhos dela, úmidos e mutáveis, eram totalmente humanos.
Eles se fixaram em mim com ódio e súplica.
— Eu não acabei! — gritou com uma voz fraca e embargada. — Ele
era o pior de todos, não entende? Ele era o pior, e seu sangue está nela, e
não vou descansar enquanto ele não estiver derramado!
Ouvi um medonho som de algo se rasgando. Ela tinha habitado a
bétula, feito dela de algum modo um corpo físico e pretendia libertá-la do
solo. Teria vindo até mim e me pegado se pudesse; me matado se
pudesse. Teria me estrangulado com os galhos flexíveis, me sufocado com
folhas até que eu parecesse uma decoração de Natal.
— Por mais que ele tenha sido um monstro, Kyra não tem nada a
ver com o que ele fez — eu disse. — E você não vai tê-la.
— Vou, sim! — gritou a Senhora Verde. Os sons rasgados e
dilacerantes eram mais altos agora. A eles se juntou um estalo assobiante
e trêmulo. Não olhei em volta de novo. Não ousei olhar. Em vez disso,
cavava mais depressa. — Vou ter ela, sim! — gritou, e agora a voz estava
mais próxima. Ela estava vindo na minha direção, mas me recusei a ver;
quando se trata de árvores e arbustos que andam, eu fico com Macbeth,
obrigado. — Vou tê-la! Ele tirou o meu e eu pretendo tirar a dele!
— Vá embora — disse outra voz.
A pá se soltou de minhas mãos, quase caiu. Eu me virei e vi Jo em
pé abaixo de mim, à direita. Ela olhava para Sara, que tinha se
materializado num delírio de lunático — uma coisa monstruosa verdemusgo
escorregando a cada passo que tentava dar pela Rua. Deixou a
bétula para trás, mas assumiu de certo modo sua vitalidade — a árvore
real avolumava-se atrás dela, negra, enrugada e morta. A criatura nascida
dela parecia a Noiva de Frankenstein esculpida por Picasso. Nela, o rosto de
Sara aparecia e desaparecia, aparecia e desaparecia.
A Forma, pensei friamente. Sempre tinha sido real... e se era sempre
eu, era sempre ela também.
Jo usava a mesma camisa branca e a calça amarela do dia em que
morreu. Através dela, eu não podia ver o lago, como conseguia ver através
de Devore e de seus jovens amigos; ela se materializou completamente.
Senti uma curiosa sensação de drenagem na parte de trás do crânio, e
achei que sabia o que era.
— Dá o fora, sua vaca! — rosnou a coisa-Sara. Ergueu os braços na
direção de Jo como o fez para mim em meus piores pesadelos.
— De modo nenhum. — A voz de Jo continuava calma. Ela se virou
para mim. — Depressa, Mike. Você tem que ser rápido. Já não é mais ela,
exatamente. Ela deixou que um dos Forasteiros entrasse, e eles são muito
perigosos.
— Jo, eu te amo.
— Eu te amo t...
Sara deu um guincho agudo e começou a girar. Folhas e ramos
formaram uma mancha e perderam consistência; era como observar algo
se desfazer num liquidificador. A entidade que, no início, só se parecia um
pouco com uma mulher agora foi inteiramente desmascarada. Algo
elementar e grotescamente inumano começou a se formar do redemoinho.
A coisa saltou para minha mulher. Quando a atingiu, a cor e a solidez
abandonaram Jo como se ela tivesse sido esbofeteada por uma mão
gigantesca. Ela se tornou um fantasma lutando com a coisa que rugia,
guinchava e lhe cravava as garras.
— Depressa, Mike! — gritou Jo. — Depressa!
Voltei-me para a tarefa.
A pá atingiu algo que não era lixo, não era pedra, não era madeira.
Raspei-o, revelando uma amostra de lona imunda e incrustada de mofo.
Agora eu cavava como um louco, querendo limpar o objeto o máximo
possível, querendo aumentar ao máximo possível minhas chances de êxito.
Por trás de mim, a Forma berrou em fúria, e minha esposa gritou de dor.
Sara tinha desistido de parte de si mesma desincorporada a fim de obter
vingança, e deixou entrar nela algo que Jo chamou de Forasteiro. Eu não
tinha ideia do que podia ser isso, e não gostaria de vir a ter. Sara era o
canal dele, disso eu sabia. E se eu pudesse cuidar dela a tempo...
Entrei no buraco gotejante, dando tapas para retirar a terra da velha
lona. Desbotadas letras gravadas em estêncil apareceram quando o fiz:
SERRARIA J. M. MCCURDIE. Eu sabia que a McCurdie tinha sido queimada
nos incêndios de 1933; vi um retrato dela em chamas em algum lugar.
Enquanto pegava a lona, as pontas de meus dedos se enfiaram nela e
deixaram sair um novo vagalhão de fedor verde e gasoso. Ouvi um gemido.
Ouvi
Devore. Ele está em cima dela e grunhindo como um porco. Sara se
encontra semiconsciente, murmurando coisas ininteligíveis atráves dos
lábios machucados e brilhantes de sangue. Devore olha por cima do ombro
para Draper Finney e Fred Dean. Eles haviam corrido atrás do garoto e o
trazido de volta, mas Kito não parou de berrar, está berrando de modo a
estourar qualquer tímpano, berrando de modo a acordar os mortos, e se
eles podem ouvir os metodistas cantando “How I Love to Tell the Story”
dali, então é possível que de lá eles escutem o crioulo uivando. Devore diz:
— Coloquem ele dentro d’água, obriguem ele a calar a boca. — No
minuto em que diz isso, como se as palavras fossem mágicas, seu pau
começa a endurecer.
— O que é que quer dizer isso? — pergunta Ben Merrill.
— Você sabe muito bem, porra — diz Jared. Ele pronuncia as
palavras movimentando com força os quadris enquanto fala. Sua bunda
estreita cintila à luz da tarde. — Ele nos viu! Quer cortar sua garganta e se
sujar todo de sangue? Para mim está ótimo. Aqui. Pegue minha faca, sirvase!
— N-não, Jared! — exclama Ben com horror, na verdade parecendo
se encolher ante a visão da faca.
Jared finalmente está pronto. Demora um pouco mais, só isso, já não
é um garoto como os outros. Mas agora... Pouco importa a boca esperta
dela, seu modo de rir insolente, o distrito inteiro. Que todos eles apareçam
e fiquem olhando, se quiserem. Enfia nela, o que ela vinha querendo o
tempo todo, o que toda a raça dela quer. Desliza nela e enfia bem fundo.
Continua dando ordens mesmo enquanto a estupra. Sua bunda sobe e desce,
tique-toque, exatamente como a cauda de um gato.
— Um de vocês cuide dele! Ou querem passar quarenta anos
apodrecendo em Shawshank por causa da tagarelice de um garoto crioulo?
Ben pega um braço de Kito Tidwell, Oren Peebles pega o outro, mas
quando o arrastam até a margem já perderam a coragem de fazê-lo.
Estuprar uma crioula arrogante que teve o descaramento de rir de Jared
quando ele caiu e rasgou as calças é uma coisa. Afogar um garoto
assustado como um gatinho numa poça de lama é outra completamente
diferente.
Eles afrouxam o aperto com que o seguram, olhando-se fixamente
com olhos assombrados. Então Kito se solta.
— Foge, meu amor! — grita Sara. — Foge e... — Jared fecha as
mãos na garganta dela e começa a sufocá-la.
O garoto tropeça no próprio balde de frutinhas vermelhas e cai de
forma pouco graciosa no chão. Harry e Draper o recapturam facilmente.
— O que vai fazer? — pergunta Draper numa espécie de gemido
desesperado, e Harry responde:
— O que tenho que fazer. — É o que ele respondeu, e agora eu ia
fazer o que tinha que fazer... apesar do fedor, apesar de Sara, apesar dos
guinchos de minha mulher morta. Arrasto o rolo de lona para fora do
buraco. As cordas que o amarram nas duas pontas se mantêm firmes, mas
o próprio rolo abre-se no meio com um medonho som de arroto.
— Depressa! — grita Jo. — Não posso aguentar muito mais tempo!
A coisa rosnou; a coisa latiu como um cachorro. Houve uma pancada
forte de madeira, como uma porta batida com força suficiente para que
lascas se soltassem, e Jo gemeu. Agarrei a bolsa de compras com o nome
Slips’n Greens impresso e abri-a enquanto
Harry — os outros o chamam de irlandês devido a seus cabelos cor
de cenoura — agarra a criança que se debate numa espécie desajeitada de
abraço de urso e pula no lago com ele. O garoto se debate com mais força
do que nunca; seu chapéu de palha caiu e flutua na água.
— Pegue aquilo! — ofega Harry. Fred Dean se ajoelha e pesca o
chapéu gotejante. Os olhos de Fred estão desnorteados, ele exibe o ar de
um lutador prestes a cair na lona. Atrás deles, Sara Tidwell começou a
vibrar bem no fundo do peito e da garganta — tais sons, assim como a
visão da mão fechada do garoto, vão assombrar Draper Finney até seu
mergulho final na pedreira Eades. Jared afunda mais os dedos, penetrando e
sufocando ao mesmo tempo, o suor escorrendo. Nenhuma quantidade de
água tirará o cheiro daquele suor de suas roupas, e, quando ele começa a
pensar naquilo como “suor de assassinato”, queima as roupas para se livrar
dele.
Harry Auster quer se livrar disso tudo — quer se livrar disso e nunca
mais ver esses homens, principalmente Jared Devore, que agora ele acha
que deve ser o próprio Satã. Harry não pode ir para casa e encarar o pai a
menos que esse pesadelo esteja terminado, enterrado. E sua mãe! Como
pode encarar sua adorada mãe, Bridget Auster, com seu doce rosto redondo
irlandês e cabelos grisalhos e colo reconfortante, Bridget que sempre teve
uma palavra amável ou uma mão calmante para ele, Bridget Auster que foi
Salva, Lavada no Sangue do Cordeiro, Bridget Auster que agora mesmo está
servindo tortas no piquenique que estão fazendo na nova igreja, Bridget
Auster que é sua mãe; como poderá olhá-la de novo — ou ela para ele —
se ele tiver que enfrentar um tribunal sob a acusação de estupro e
espancamento de uma mulher, mesmo sendo negra?
Assim, ele afasta o garoto — Kito o arranha uma vez, só um risco
num dos lados do pescoço, e naquela noite Harry dirá a mãe que foi o
espinho de um arbusto que o pegou desprevenido, e ele a deixará dar um
beijo no arranhão — e então mergulha a criança no lago. Kito olha para
cima, o rosto tremulando, e Harry vê um peixinho lampejar próximo. Uma
perca, pensa. Por um instante, cogita o que será que o garoto vê, olhando
através do escudo prateado da superfície para o rosto do sujeito lá em
cima que o segura embaixo d’água, o sujeito que o está afogando, e então
Harry afasta o pensamento. É só um crioulo, lembra desesperadamente a si
mesmo. É só o que ele é, um crioulo. Não é da sua espécie.
O braço de Kito sai da água — um braço marrom-escuro e gotejante.
Harry o empurra de volta, não querendo ser agarrado, mas a mão se
estende para ele, apenas se espeta reta para cima. Os dedos se curvam,
fechando o punho. Abrem. Fecham-se num punho. Abrem. Fecham-se de
novo. O garoto começa a se debater menos, os pés chutando começam a
arrefecer, os olhos fitando os olhos de Harry vão assumindo uma expressão
curiosamente sonhadora, e mesmo assim aquele braço magro se estica
para cima, mesmo assim a mão se abre e se fecha, se abre e se fecha.
Draper Finney fica na margem chorando, é claro que agora alguém verá a
coisa terrível que eles fizeram — a coisa terrível que, na verdade, ainda
estão fazendo. Esteja certo de que seu pecado encontrará você, diz o Bom
Livro. Esteja certo. Ele abre a boca para dizer a Harry para largar o garoto,
talvez não seja tarde demais para recuar, deixe-o subir à superfície, deixe-o
viver, mas não consegue emitir nenhum som. Atrás dele, Sara está
sufocando pela última vez. Na frente dele, a mão do filho dela que se afoga
abre e fecha, abre e fecha, seu reflexo tremulando na água, e Draper pensa
Ele não vai parar de fazer isso, não vai parar de fazer isso nunca? E como
se isso fosse uma prece que agora está sendo atendida, o cotovelo esticado
do menino começa a se curvar e o braço se afrouxa; os dedos começam a
se fechar novamente num punho e então param. Por um momento, a mão
oscila e então
com a palma da mão, dou um tapa na testa para afastar esses
fantasmas. Por trás de mim há um frenético ruído e os estalos de arbustos
molhados, enquanto Jo e seja lá o que ela está segurando continuam a lutar.
Ponho minhas mãos dentro da fenda da lona como um médico alargando um
ferimento. Um som baixo de rasgão se faz ouvir enquanto o rolo se rasga
de cima a baixo.
Dentro estava o que tinha sobrado deles — dois crânios amarelados,
fronte contra fronte como numa conversa íntima, um desbotado cinto de
mulher de couro vermelho, roupas femininas desfeitas em pó... e uma pilha
de ossos. Duas caixas torácicas, uma grande e uma pequena. Dois
conjuntos de pernas, um comprido e outro curto. Os restos matais de Sara
e Kito Tidwell enterrados ali junto ao lago por quase cem anos.
O crânio maior se virou. Olhou-me ferozmente com suas órbitas
vazias. Os dentes matraquearam como se quisessem me morder, e os
ossos abaixo começaram um movimento tenebroso e agitado. Alguns se
desmantelaram imediatamente; todos estavam macios e corroídos. O cinto
vermelho moveu-se inquietamente e a fivela enferrujada ergueu-se como a
cabeça de uma cobra.
— Mike! — gritou Jo. — Depressa, depressa!
Puxei o saco da bolsa de compras e agarrei a garrafa de plástico
dentro dele. Na oh, tinham dito os ímãs, ou NaOH. Hidróxido de sódio. Outra
mensagem passada às costas distraídas do guarda. Outra palavrinha-truque.
Sara Tidwell era uma criatura temível, mas havia subestimado Jo... e
também a telepatia de uma longa associação. Eu tinha ido ao Slips’n Greens
e comprado uma garrafa de soda cáustica. Então a abri e derramei o
hidróxido sobre os ossos de Sara e de seu filho, fumegando.
Houve o mesmo som de assobio que se ouve ao se abrir uma
garrafa de cerveja ou refrigerante. A fivela do cinto derreteu. Os ossos se
tornaram brancos e enrugados como coisas feitas de açúcar — tive uma
imagem de pesadelo de crianças mexicanas comendo cadáveres de açúcar
queimado espetados em longas varetas no dia dos mortos. As órbitas de
Sara se alargaram quando a soda cáustica encheu os buracos escuros onde
sua mente, seu prodigioso talento e sua alma sorridente um dia habitaram.
Era uma expressão que inicialmente pareceu de surpresa, e a seguir de
tristeza.
O maxilar caiu; os nacos de dente ficaram salientes.
O topo do crânio afundou.
Os ossos dos dedos estremeceram e depois se dissolveram.
— Ahhhhhhh...
O som perpassou através das árvores encharcadas como um vento
soprando... só que o vento tinha morrido enquanto o ar molhado recuperava
o fôlego antes da próxima investida. Era um som de inominável dor, anseio
e rendição. Não senti nenhum ódio nele; seu ódio tinha desaparecido,
queimado no corrosivo que eu comprei na loja de Helen Auster. O som de
Sara partindo foi substituído pelo grito queixoso e quase humano de um
pássaro, e me acordou no lugar onde eu havia estado, trazendo-me final e
completamente para fora da zona. Levantei trôpego, virei-me e olhei para a
Rua.
Jo ainda estava lá, uma forma turva através da qual eu podia ver
agora o lago e as nuvens escuras das próximas rajadas de vento seguidas
de raios e trovoadas vindo sobre as montanhas. Algo bruxuleou além dela —
aquele pássaro aventurando-se de seu abrigo seguro para uma espiada nas
modificações do meio ambiente, talvez —, mas quase não o registrei. Era
Jo que eu queria ver, Jo que veio só Deus sabia de onde, assim como só
Deus sabia o que ela tinha sofrido para me ajudar. Parecia exausta,
machucada e, de algum modo fundamental, diminuída. Mas a outra coisa —
o Forasteiro — tinha ido embora. Em pé, num círculo de folhas de bétula
tão mortas que pareciam carbonizadas, Jo se virou para mim e sorriu.
— Jo! Nós conseguimos!
Sua boca se moveu. Ouvi o som, mas as palavras estavam muito
distantes para serem distinguidas. Estava em pé ali, mas poderia estar
falando do outro lado de um largo desfiladeiro. Mesmo assim a entendi. Li
as palavras de seus lábios, se você preferir o racional, ou direto da mente
dela, se preferir o romântico. Eu prefiro o último. O casamento é uma zona
também, você sabe. O casamento é uma zona.
— Então isso está certo, não está?
Olhei para o escavado rolo de lona e não vi nada a não ser tocos e
lascas espetando-se para fora de uma pasta inquieta e nociva. Um sopro
chegou até mim e, mesmo através da Stenomask, me fez tossir e recuar.
Não era decomposição; soda cáustica. Quando olhei para Jo, ela quase não
estava lá.
— Jo! Espere!
— Não posso ajudar. Não posso ficar.
Palavras de outro sistema solar, quase vislumbradas de uma boca que se esvai. Agora ela era pouco mais do que olhos flutuando na tarde
escura, olhos que pareciam feitos do lago atrás deles.

— Depressa...
Desapareceu. Escorreguei e tropecei para o lugar onde ela havia
estado, meus pés esmagando folhas mortas de bétula, mas não agarrei
nada. Que idiota devo ter parecido, encharcado até os ossos, usando uma
Stenomask torta na metade inferior do rosto, tentando abraçar o úmido ar
cinzento.
Captei a mais débil lufada do perfume Red... e então só ficou a terra
úmida, a água do lago e o fedor ruim da soda cáustica correndo por baixo
de tudo. Pelo menos o cheiro de putrefação se fora; aquilo não havia sido
mais real do que...
Do que o quê? Do que o quê? Ou era tudo real, ou nada daquilo era
real. Se nada daquilo fosse real, eu tinha perdido as faculdades mentais e
estava pronto para o hospício. Olhei para a rocha cinzenta e vi o saco de
ossos que havia tirado do chão molhado como um dente apodrecido. Lentos
filetes de fumaça erguiam-se ainda da extensão rasgada. Aquilo pelo menos
era real. Assim como a Senhora Verde, que era agora uma Senhora Negra
cor de fuligem — tão morta como o galho morto por trás dela, o que
parecia apontar como um braço.
Não posso ajudar... não posso ficar... depressa.
Não podia ajudar com o quê? De que outra ajuda eu precisava? Havia
terminado, não havia? Sara se fora: o espírito segue a carne, boa noite,
caras senhoras.
E uma espécie de terror fedorento, não tão diferente do cheiro de
putrefação que saiu do solo, pareceu permear o ar; o nome de Kyra
começou a pulsar na minha cabeça, Ki-Ki, Ki-Ki, Ki-Ki, como o canto de
algum exótico pássaro tropical. Subi os degraus de dormentes para a casa
e, apesar de exausto, no meio do caminho comecei a correr.
Subi a escada para o deck e continuei por aquele caminho. A casa
parecia a mesma — a não ser pela árvore quebrada espetando-se pela
janela quebrada da cozinha adentro, Sara Laughs aguentou a tempestade
muito bem —, mas algo estava errado. Havia algo cujo cheiro eu quase
podia sentir... e cujo cheiro talvez sentisse mesmo, amargo e suave. A
loucura pode ter seu próprio aroma. Não é o tipo de coisa que eu me daria
ao trabalho de investigar.
No corredor da frente parei, vendo no chão uma pilha de livros em
edições em brochura de Elmore Leonard e Ed McBain. Como se uma mão os
tivesse varrido da prateleira. Mão descontrolada, talvez. Podia ver também
minhas pegadas lá, indo e vindo. Já tinham começado a secar. Deviam ser
as únicas; eu estava carregando Ki quando tínhamos entrado. Deviam ser,
mas não eram. Havia outras menores, mas não tão pequenas que eu as
confundisse com pegadas de criança.
Desci correndo o corredor na direção norte gritando o nome de Kyra,
e poderia muito bem estar gritando Mattie, Jo ou Sara. Saindo de minha
boca, seu nome soava como o de um cadáver. A coberta havia sido atirada
no chão. Exceto pelo cachorro preto de pelúcia, jogado no mesmo local em que esteve em meu sonho, a cama estava vazia. E Ki tinha desaparecido.



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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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