conseguia saber o que ela estava usando, em que cômodo do trailer se
encontrava e o que fazia lá. Não surgiu nada, claro — aquele vínculo
também foi dissolvido.
Gritei por Jo — acho que o fiz —, mas Jo também se fora. Eu estava
sozinho. Deus me ajude. Deus nos ajude. Podia sentir o pânico tentando
descer e o combati. Tinha que manter minha mente clara. Se eu não
pudesse pensar, qualquer chance que Ki pudesse ter estaria perdida. Andei
rapidamente de volta pelo corredor até o vestíbulo, tentando não ouvir a voz
doentia na parte de trás de minha cabeça, a que dizia que Ki já estava
perdida, já estava morta. Eu não podia saber de tal coisa, não podia saber
disso agora que a conexão entre nós foi quebrada.
Olhei para a pilha de livros no chão, depois para a porta. As novas
pegadas tinham entrado por aquele caminho e saído por aquele caminho
também. Um relâmpago riscou o céu e um trovão estalou. O vento
começava a soprar forte de novo. Fui até a porta, estendi a mão para a
maçaneta e então parei. Algo estava preso na fenda entre a porta e a
maçaneta, algo tão fino e flutuante quanto uma teia de aranha.
Um único cabelo branco.
Olhei para ele com uma nauseada falta de surpresa. Eu devia ter
sabido, claro, e se não fosse a tensão pela qual vinha passando e os
sucessivos choques daquele dia terrível, teria sabido. Estava tudo na fita
que John havia posto para tocar naquela manhã... uma época que parecia
parte da vida de outro homem.
Por um lado, havia o marcador de tempo assinalando o ponto em que
John tinha desligado na cara dela. Nove e quarenta da manhã, horário de
verão no Leste, disse a voz de robô, o que significa que Rogette tinha ligado
às seis e quarenta da manhã... isto é, se realmente ligou de Palm Springs.
Era pelo menos possível; se a estranheza tivesse me ocorrido enquanto
estávamos rodando do aeroporto para o trailer de Mattie, eu teria dito a
mim mesmo que sem dúvida havia insones por toda a Califórnia que
concluíam seus assuntos na Costa Leste antes que o sol raiasse
inteiramente no horizonte, e que ótimo para eles. Mas havia algo mais que
não podia ser explicado com tanta facilidade.
Em determinado ponto, John retirou a fita. Segundo ele, porque eu
tinha ficado branco como um papel em vez de me divertir. Eu lhe disse que
deixasse a fita tocar até o fim: simplesmente me surpreendi por ouvi-la
novamente. A qualidade de sua voz. Cristo, como a reprodução era boa. Só
que isso, na verdade, eram os rapazes do porão reagindo à fita; meus
coconspiradores do subconsciente. E não foi a voz dela que os assustou
tanto a ponto de fazer meu rosto ficar branco. O que os assustou foi o
zumbido subjacente, o zumbido característico que sempre há nos
telefonemas da TR, tanto os que se fazem quanto os que se recebem.
Rogette Whitmore jamais tinha deixado a TR-90. Se minha falha em
perceber isso naquela manhã custasse a vida de Ki Devore naquela tarde,
eu seria incapaz de conviver comigo mesmo. Disse isso a Deus repetidas
vezes, enquanto descia novamente pelos degraus de dormentes abaixo,
correndo para o meio de uma tempestade revitalizada.
Foi realmente de espantar que eu não saísse voando direto da margem.
Metade de minha plataforma de flutuação tinha aterrissado lá, e talvez eu
tivesse me empalado nas lascas de suas bordas e morrido como um
vampiro retorcendo-se numa estaca. Que pensamento agradável.
Correr não é bom para alguém quase em pânico; é como se arranhar
com hera venenosa. Quando abracei um dos pinheiros ao pé dos degraus
para deter meu avanço, estava à beira de perder qualquer pensamento
coerente. O nome de Ki pulsava em minha mente de novo, e tão alto que
não havia espaço para muito mais.
Então o clarão de um relâmpago saltou do céu à minha direita e
derrubou pelo menos um metro da parte de baixo de um enorme e velho
abeto que provavelmente já estava lá quando Sara e Kito ainda se
encontravam vivos. Se eu estivesse olhando diretamente para ele, teria
ficado cego; mesmo com a cabeça virada em três quartos, o golpe deixou
uma gigantesca mancha azul flutuando em frente aos meus olhos, como o
momento posterior ao flash de uma câmera gigantesca. Houve um som de
trituração e uma vibração quando 60 metros de abeto azul caíram sobre o
lago, borrifando no ar uma longa cortina d’água, que pareceu pairar entre o
céu e a água cinzentos. O toco ardia na chuva, queimando como o chapéu
de uma feiticeira.
Aquilo teve o efeito de um tapa, clareando minha cabeça e me dando
uma chance final de usar o cérebro. Respirei fundo e me forcei a fazer
exatamente aquilo. Em primeiro lugar, por que eu tinha descido até ali? Por
que pensei que Rogette havia trazido Kyra para o lago, onde tinha acabado
de estar, em vez de levá-la para longe de mim, pela entrada de carro e na
direção da estrada 42?
Não seja burro. Ela desceu para cá porque a Rua é o caminho de
volta ao Warrington’s, e é no Warrington’s que ela tem ficado, sozinha,
desde que mandou o corpo do patrão de volta à Califórnia no avião
particular dele.
Ela se esgueirou por minha casa adentro enquanto eu estava embaixo
do estúdio de Jo, descobrindo a caixa de metal no ventre da coruja e
estudando aquele recorte sobre genealogia. Teria levado Ki então se eu lhe
tivesse dado uma chance, mas eu não lhe dei. Voltei correndo, com medo
de que algo estivesse errado, com medo de que alguém pudesse estar
tentando se apossar da criança...
Rogette a teria acordado? Ki a teria visto e tentado me avisar antes
de adormecer de novo? Foi isso que me levou para lá com tanta pressa?
Talvez. Eu ainda estava na zona então, ainda estávamos ligados. Rogette
certamente estava na casa quando eu voltei. Podia até mesmo estar no
closet do quarto norte, espiando-me pela fenda. Parte de mim soube disso
também. Parte de mim a sentiu, sentiu algo que não era Sara.
Então eu saí de novo. Agarrei a bolsa de compras do Slips’n Green e
desci aqui. Virei à direita, virei para o norte. Na direção da bétula, da rocha,
do saco de ossos. Eu fiz o que tinha de fazer, e enquanto o fazia Rogette
carregou Kyra pelos degraus de dormentes abaixo por trás de mim e dobrou
à esquerda na Rua. Virou ao sul para o Warrington’s. Com uma sensação de
afundamento no ventre, percebi que eu provavelmente ouvi Ki... podia até
tê-la visto. Aquele pássaro espiando timidamente do abrigo durante a
calmaria não tinha sido pássaro nenhum. Ki estava acordada então, Ki me
viu — talvez tivesse visto Jo também — e tentou chamar. Ela conseguiu
exatamente aquele pequeno pio antes que Rogette lhe cobrisse a boca.
Há quanto tempo tinha sido aquilo? Parecia uma eternidade, mas eu
tinha ideia que de modo nenhum podia ter sido há muito tempo — menos
de cinco minutos, talvez. Mas não é preciso muito tempo para se afogar
uma criança. A imagem do braço nu de Kito esticando-se para fora da água
tentou voltar — a mão se abrindo e fechando, se abrindo e fechando, como
se tentasse respirar pelos pulmões que não podiam fazê-lo — e eu a
afastei. Também suprimi o ímpeto de simplesmente disparar na direção do
Warrington’s. Se eu fizesse isso, sem dúvida o pânico me dominaria.
Em todos os anos, desde a morte de Jo, jamais ansiei por ela com a
amarga intensidade de então. Mas Jo se foi; não havia sequer um sussurro
dela. Sem poder depender de ninguém a não ser de mim mesmo, comecei a
avançar para o sul ao longo da Rua juncada de galhos, contornando árvores
e ramos derrubados quando podia, arrastando-me sob eles quando
bloqueavam inteiramente meu caminho, quebrando os ramos apenas como
último recurso. Enquanto andava, emitia o que imagino que sejam as
orações-padrão em tais situações, mas nenhuma delas pareceu afastar a
imagem do rosto de Rogette Whitmore erguendo-se em minha mente. Seu
rosto penetrante e implacável.
Eu me lembro de pensar Isso é a versão ao ar livre da Casa Fantasma.
Certamente os bosques pareciam assombrados para mim enquanto me
esforçava para percorrê-los: as árvores apenas afrouxadas na primeira
grande ventania caíam aos montes nesse segundo turno de vento e chuva.
O barulho era o de grandes passos estalando estrondosamente, e eu não
precisava me preocupar com o ruído de minhas próprias passadas. Quando
passei pelo campo dos Batchelder, uma construção circular pré-fabricada
situada num afloramento de rochas, como um chapéu sobre uma bancada,
vi que todo o telhado havia sido achatado por um pinheiro do Canadá.
A uns 800 metros ao sul de Sara, reparei numa das fitas brancas de
Ki caída no atalho. Peguei-a, pensando como aquela borda vermelha parecia
com sangue. Então a enfiei no bolso e continuei em frente.
Cinco minutos depois, cheguei a um velho pinheiro recoberto de
musgo que tinha caído atravessado no caminho; ainda estava ligado ao toco
por uma rede torcida e esticada de lascas, e guinchava como uma fila de
dobradiças enferrujadas enquanto a água ondulante erguia e deixava cair o
que tinha sido a parte superior de seus 6 ou 9 metros, agora flutuando no
lago. Havia espaço para que eu me arrastasse por baixo dele, e quando caí
de joelhos vi outras pegadas de joelhos começando a se encher de água. Vi
outra coisa também: a segunda fita de cabelo. Enfiei-a no bolso com a
primeira.
Estava na metade do caminho debaixo do pinheiro quando ouvi outra
árvore cair, esta muito mais próxima. O som foi seguido por um grito —
não de dor ou medo, mas de raiva e surpresa. Então, mesmo com o silvo
da chuva e do vento, pude ouvir a voz de Rogette: Volte! Não vá aí fora, é
perigoso!
Esgueirei-me o resto do caminho por baixo da árvore, quase não
sentindo o toco de um galho me arranhar na parte inferior das costas,
levantei e corri pelo atalho. Quando as árvores caídas com que me
deparava eram pequenas, eu pulava por cima delas sem diminuir a corrida.
Se eram maiores, eu as escalava com dificuldade, sem pensar onde podiam
me agarrar ou espetar. Trovões abalaram o céu. Um relâmpago brilhante
faiscou, e em seu clarão ofuscante vi tábuas envelhecidas cinzentas
através das árvores. No dia em que encontrei Rogette pela primeira vez,
tive uns vislumbres do hotel do Warrington’s, mas agora a floresta tinha se
dilacerado como uma roupa velha — aquela área levaria anos para se
recuperar. A metade da parte dos fundos do hotel foi praticamente
demolida por duas árvores enormes que pareciam ter caído juntas. Haviamse
cruzado como uma faca e um garfo num prato de jantar e jaziam sobre
as ruínas num X felpudo.
A voz de Ki se ergueu por cima da tempestade apenas porque estava
aguda de terror: Vai embora! Não quero você, vó branca! Vai embora! Era
horrível ouvir o terror em sua voz, mas era maravilhoso ouvir sua voz.
A uns 12 metros de distância de onde o grito de Rogette me
imobilizou, mais uma árvore jazia através do atalho. A própria Rogette
permanecia em sua outra extremidade, estendendo a mão para Ki. Da mão
pingava sangue, mas eu mal notei aquilo. Eu olhei mesmo foi para Kyra.
O cais percorrendo o espaço entre a Rua e o Sunset Bar era
comprido — uns 20 metros, talvez 30. Longo o suficiente para que, num
bonito entardecer de verão, você pudesse passear de mãos dadas com a
namorada ou a amante e construir uma recordação. A tempestade não o
havia arrastado — ainda não —, mas o vento o torceu como uma fita.
Lembro-me de um documentário, em alguma matinê de sábado, mostrando
uma ponte suspensa dançando num furacão, e era parecido com aquele cais
entre o Warrington’s e o Sunset Bar. Ele se movia para cima e para baixo
na água ondulante, gemendo em todas as suas articulações de ripas como
um acordeão de madeira. Existia um corrimão — presumivelmente para
guiar de volta à praia em segurança os que tinham feito uma noitada —,
mas este agora desapareceu. Kyra se encontrava na metade daquela
oscilante e gotejante extensão de madeira. Eu podia ver pelo menos três
retângulos de escuridão entre a praia e onde ela estava, lugares onde as
tábuas haviam sido arrancadas. Da parte de baixo do cais, chegava o
agitado clang-clang-clang dos tambores vazios de aço que o seguravam.
Vários desses tambores haviam sido desancorados e estavam flutuando
para longe. Ki tinha os braços estendidos para se equilibrar, como alguém
andando sobre uma corda bamba de circo. A camisa preta da HarleyDavidson
batia com força em seus joelhos e ombros bronzeados.
— Volte! — gritou Rogette. Seu cabelo escorrido voava em torno da
cabeça; a brilhante capa de chuva preta que estava usando tinha se
rasgado. Ela estendia as mãos agora, uma ensanguentada e a outra não.
Imaginei que Ki pudesse tê-la mordido.
— Não, vó branca! — Ki balançou a cabeça numa negação alucinada
e eu quis dizer-lhe não faça isso, bichinho, não balance a cabeça assim, é
uma péssima ideia. Ela cambaleou, um braço apontado para o céu e outro
para a água, de modo que por um momento pareceu um avião inclinando-se
fortemente de lado. Se o cais tivesse escolhido aquele momento para se
mover com força por baixo dela, Ki teria sido cuspida na água. Em vez
disso, reconquistou um precário equilíbrio, embora eu tenha pensado ter
visto seus pés descalços escorregarem um pouco nas tábuas lisas.
— Vai embora, vó branca, não quero você! Vai... tirar uma soneca,
você parece cansada!
Ki não me viu; toda sua atenção estava fixada na vó branca. A vó
branca também não me viu. Deitei-me no chão de bruços e me arrastei por
debaixo da árvore, puxando-me para a frente com as mãos em garras. O
trovão ressoou através do lago como uma grande bola de mogno, o som
ecoando para as montanhas. Quando fiquei em pé de novo, vi que Rogette
avançava lentamente em direção à extremidade do cais que dava para a
praia. Para cada passo que ela avançava, Kyra dava um vacilante e perigoso
passo para trás. Rogette estendia a mão boa, embora por um momento eu
tenha achado que aquela também tivesse começado a sangrar. Mas o que
escorria através de seus encalombados dedos era escuro demais para ser
sangue, e quando ela começou a falar numa medonha voz persuasiva que
arrepiou minha pele, percebi que era chocolate derretendo.
— Vamos fazer a brincadeira, Kizinha — arrulhou Rogette. — Quer
começar? — Ela deu um passo. Ki deu um passo compensatório para trás,
cambaleou, recuperou o equilíbrio. Meu coração parou, depois retomou a
disparada. Percorri a distância entre mim e a mulher tão rapidamente
quanto pude, mas não corri; não queria que ela soubesse de coisa alguma
até acordar. Se acordasse. Pouco me importava se acordasse ou não. Que
droga, se eu pude fraturar o crânio de George Footman com um martelo,
certamente poderia machucar aquela pessoa horrível. Enquanto andava,
entrelacei as mãos num grande punho.
— Não? Não quer começar? Está muito assustada? — disse Rogette
numa açucarada voz de programa infantil que me fez ranger os dentes. —
Muito bem, eu começo. Peteca! Quais são as rimas para peteca, Kizinha?
Sapeca... e soneca... você estava tirando uma soneca, não estava, quando eu
vim e acordei você? E moleca... a minha molequinha não quer sentar no
meu colo, Kizinha? A gente dá chocolate uma para a outra, como
costumávamos fazer... Vou te ensinar uma brincadeira nova de...
Outro passo. Ela tinha chegado à borda do cais. Se a ideia lhe tivesse
ocorrido, podia simplesmente jogar pedras em Kyra como fez comigo, jogar
pedras até acertar uma e atirar Ki dentro do lago. Mas acho que não chegou
nem perto de tal ideia. Uma vez que a loucura passa de certo ponto, você
está numa autoestrada sem retornos. Rogette tinha outros planos para
Kyra.
— Vamos, Ki-Ki, vem jogar com a vó branca. — Estendeu o
chocolate de novo, um pegajoso chocolate Hershey gotejando através do
amassado papel laminado. Os olhos de Kyra se moveram e ela finalmente
me viu. Balancei a cabeça, tentando lhe dizer para ficar quieta, mas não
adiantou — uma expressão de alegre alívio atravessou seu rosto. Ela gritou
meu nome e vi os ombros de Rogette se erguerem surpresos.
Corri os últimos 4 metros, erguendo as mãos unidas como um
bastão, mas escorreguei no solo molhado no momento crucial e Rogette se
esquivou, encolhendo-se. Em vez de atingi-la na nuca, como pretendia,
minhas mãos só lhe roçaram o ombro. Ela cambaleou, caiu num joelho e se
levantou de novo quase imediatamente. Seus olhos eram como pequenas
lâmpadas de arco voltaico azuis cuspindo fúria em vez de eletricidade.
— Você! — disse ela, fazendo a palavra silvar entre a língua e os
dentes, transformando-a no som de alguma antiga maldição. —
Voosscccêêê! — Atrás de nós, Kyra gritou meu nome, numa dança
vacilante na madeira molhada, agitando os braços num esforço para evitar
que caísse no lago. A água varreu o deck e correu por cima de seus
pequenos pés descalços.
— Aguenta aí, Ki! — gritei de volta. Rogette viu minha atenção
mudar de direção e aproveitou a chance, girou e correu para dentro do cais.
Disparei atrás dela, agarrei-a pelo cabelo e este saiu na minha mão. Todo
ele. Fiquei ali à beira do lago ondulante com a esteira de cabelos brancos
suspensa na mão como um escalpo.
Rogette olhou por cima do ombro, rosnando, um antigo gnomo careca
na chuva, e então pensei É ele, é Devore, ele nunca morreu de todo, de
algum modo ele e a mulher trocaram de identidade, foi ela quem cometeu
suicídio, foi o corpo dela que voltou para a Califórnia no jato...
Mesmo enquanto ela virava para o outro lado de novo e começava a
correr em direção a Ki, eu soube a verdade. Era Rogette, sem dúvida, mas
ela tinha chegado àquela medonha semelhança honestamente. Fosse lá o
que houvesse de errado com ela, tinha feito mais do que seu cabelo cair;
também a tinha envelhecido. Setenta anos, pensei, mas isso seria pelo
menos dez anos além da idade atual.
Conheci um monte de gente que põe nomes parecidos nos filhos,
disse a sra. M. Eles acham bonitinho. Max Devore deve ter achado isso
também, porque deu ao filho o nome de Roger e à filha o nome de Rogette.
Talvez ela tivesse chegado à parte Whitmore honestamente — podia ter
sido casada na juventude —, mas uma vez que a peruca tinha desaparecido,
seus antecedentes eram indiscutíveis. A mulher cambaleando pelo cais molhado para terminar o trabalho era tia de Kyra.
Ki começou a recuar rapidamente, sem fazer nenhum esforço para ter
cuidado e ver onde pisava. Ia cair; não havia jeito de se manter lá em
cima. Mas antes que isso acontecesse, uma onda varreu o cais entre elas
num lugar onde alguns dos tambores tinham-se soltado e, sem apoio, o
caminho já estava parcialmente submerso. Água espumante voou para cima
e começou a girar numa daquelas espirais que eu já tinha visto antes.
Rogette parou com os pés mergulhados até os tornozelos na água que
invadia o cais e eu parei a uns 4 metros atrás dela.
A forma se solidificou, e mesmo antes que eu pudesse discernir seu
rosto, reconheci o short folgado com seu turbilhão de cor desbotada e a
blusa da parte de cima. Só o Kmart vende blusas com uma assimetria tão
perfeita; acho que deve ser uma lei federal.
Era Mattie. Uma Mattie séria e cinzenta, olhando Rogette com graves
olhos cinzentos. Rogette ergueu as mãos, vacilou, tentou virar. Naquele
momento uma onda se levantou sob o cais, erguendo-o e depois abaixandoo
como um brinquedo de parque de diversões. Rogette caiu por sua lateral.
Além dela, além da Forma-água na chuva, pude ver Ki esparramada na
varanda do Sunset Bar. Aquela última oscilação a enviara para uma
segurança temporária como uma pulga humana.
Mattie olhava para mim, os lábios se movendo, os olhos nos meus.
Eu pude compreender o que Jo havia dito, mas desta vez não tinha a
mínima ideia. Fiz o máximo de esforço, mas não consegui entender.
— Mamãe! Mamãe!
A figura não se virou propriamente, girou em torno de si; na verdade,
não parecia ter existência abaixo da bainha do short longo. Moveu-se pelo
cais até o bar, onde Ki estava agora em pé de braços estendidos.
Algo agarrou o meu pé.
Olhei para baixo e vi uma aparição afogando-se nas ondas do lago.
Olhos escuros me fixavam de dentro do crânio calvo. Rogette tossia água
de lábios tão roxos quanto ameixas. Sua mão livre se agitava enfraquecida
para mim. Os dedos se abriam... e fechavam. Se abriam... e fechavam.
Dobrei um joelho e peguei sua mão. Esta se fechou na minha como uma
garra de aço e deu um solavanco, tentando me puxar para a água com ela.
Os lábios roxos se arreganhavam de cacos de dentes como os da caveira
de Sara. E sim — eu pensei que desta vez era Rogette quem ria.
Balancei os quadris e dei um solavanco nela para cima. Sem pensar,
foi puro instinto. Segurei pelo menos 45 quilos dela, sendo que três quartos
saíram do lago como uma monstruosa truta gigante. Ela gritou, lançou a
cabeça para a frente e enterrou os dentes no meu pulso. A dor foi enorme
e imediata. Dei um puxão no meu braço bem mais para cima e então o
abaixei, sem pensar se ia feri-la ou não, querendo apenas me livrar daquela
boca de doninha. Enquanto o fazia, outra onda atingiu o cais meio submerso.
Sua borda lascada que se erguia empalou o rosto de Rogette que descia.
Um olho pulou fora; uma lasca amarela gotejante enfiou-se em seu nariz
como um punhal; a pele fina da testa rasgou-se, soltando-se do osso como
duas persianas repentinamente soltas. Então o lago a puxou para longe. Vi a
topografia rasgada de seu rosto por um momento mais, revirada pela chuva
torrencial, molhada e tão pálida como a luz de uma lâmpada fluorescente.
Então ela rolou para cima, a capa de chuva preta de vinil rodopiando em
torno de si como uma mortalha.
O que vi quando olhei novamente para o Sunset Bar foi outro
vislumbre sob a pele deste mundo, mas um muito diferente do rosto de
Sara na Senhora Verde, ou da rosnante e meio vislumbrada forma do
Forasteiro. Kyra estava em pé na larga varanda de madeira na frente do
bar, em meio a uma desordem de mobília de vime derrubada. Na frente
dela havia uma tromba-d’água na qual eu ainda podia ver — muito
levemente — a forma desvanecida de uma mulher. Ela estava de joelhos,
estendendo os braços.
Elas tentaram se abraçar. Os braços de Ki fecharam-se em torno de
Mattie e saíram gotejando.
— Mamãe, não posso pegar você!
A mulher na água estava falando — eu podia ver seus lábios se
movendo. Ki olhava para ela, extasiada. Então, por apenas um momento,
Mattie se virou para mim. Nossos olhos se encontraram, os dela feitos da
água do lago. Eles eram o Dark Score, que estava aqui há muito tempo
antes de eu chegar e permaneceria ali muito depois que eu me fosse. Levei
as mãos à boca, beijei as palmas e as estendi para ela. Mãos tremulantes
se ergueram, como se para receber os beijos.
— Mamãe, não vai! — gritou Kyra, e envolveu a figura com os
braços. Ficou imediatamente ensopada e recuou, os olhos fechados,
tossindo. Não havia mais nenhuma mulher com ela; só havia água correndo
pelas tábuas e pingando através das fendas para voltar ao lago, que sobe de
fontes profundas bem lá debaixo, das fissuras na rocha subjacentes à TR e
a toda essa parte do nosso mundo.
Movendo-me cuidadosamente, fazendo meu próprio ato de equilíbrio,
fui andando pelo cais oscilante até o Sunset Bar. Quando cheguei lá, peguei
Kyra nos braços. Ela me abraçou apertado, tremendo ferozmente contra
mim. Ouvi o leve matraquear de seus dentes e o cheiro do lago em seu
cabelo.
— Mattie veio — disse ela.
— Eu sei. Eu vi.
— Mattie fez a vó branca ir embora.
— Vi isso também. Fique bem quieta agora, Ki. Vamos voltar para
terra firme, mas você não pode ficar se mexendo muito. Se fizer isso,
vamos acabar tendo que nadar.
Ela foi um doce de obediência. Quando estávamos na Rua de novo e
tentei colocá-la no chão, agarrou-se fortemente ao meu pescoço. Para mim,
tudo bem. Pensei em levá-la para o Warrington’s, mas não o fiz. Haveria
toalhas lá, provavelmente roupas secas também, mas tive a ideia de que
poderia haver também uma banheira cheia de água morna esperando. Além
disso, a chuva estava diminuindo de novo e o céu parecia mais claro no
oeste.
— O que é que Mattie te disse, meu bem? — perguntei enquanto
andávamos para o norte ao longo da Rua. Ki deixou que eu a pusesse no
chão para que pudéssemos nos arrastar por baixo das árvores caídas com
que nos deparamos, mas levantava os braços para ser erguida de novo do
outro lado da árvore.
— Para ser uma boa menina e não ficar triste. Mas eu tô triste.
Muito triste. — Ela começou a chorar e eu acariciei seu cabelo molhado.
Quando chegamos aos degraus de dormentes, ela tinha chorado tudo
que podia... e por sobre as montanhas no oeste pude ver uma faixa
pequena, mas muito brilhante do azul.
— Todas as árvores caíram — disse Ki, olhando à volta. Seus olhos
estavam arregalados.
— Bem... não todas, mas muitas, acho.
Na metade dos degraus, eu parei, esbaforido e seriamente sem
fôlego. Mas não perguntei a Ki se eu podia colocá-la no chão. Eu não queria
colocá-la no chão. Só queria recuperar o fôlego.
— Mike?
— O que é, meu amor?
— Mattie me disse mais uma coisa.
— O quê?
— Posso falar baixinho?
— Se você quiser, claro.
Ki se aproximou ainda mais, pôs a boca junto à minha orelha e sussurrou.
Escutei. Quando ela terminou, assenti com a cabeça, beijei seu rosto,
passei-a para meu outro quadril e carreguei-a pelo resto do caminho até a casa.
Não foi a tempestaaade do século, companheiro, não fique pensando que foi.
Não senhor.
Assim falava o pessoal da velha guarda sentado em frente à grande
tenda de médicos do Exército que servia como a Geral de Lakeview naquele
final de verão e outono. Um enorme olmo tinha caído atravessado na rota
68 e amassado o armazém como uma caixa de biscoitos. Para piorar ainda
mais os estragos, o olmo carregou consigo um monte de fios cuspindo
faíscas. Eles inflamaram o propano de um tanque rachado e a coisa toda
explodiu. A tenda, porém, era um substituto bastante bom para o tempo
quente, e o pessoal da TR passou a dizer que ia até o ESCOMBRO para pão
e cerveja — isso porque ainda se podia ver uma cruz vermelha desbotada
dos dois lados da cobertura da tenda.
A velha guarda se sentava ao longo da parede de lona em cadeiras
dobráveis, acenando para os outros da turma quando estes chegavam em
seus enferrujados carros de velha guarda (toda a velha guarda de
carteirinha tem Fords ou Chevys, portanto estou no caminho certo quanto a
isso), trocando suas camisetas por camisas de flanela quando os dias
começaram a esfriar em direção à estação da cidra e à época de
desenterrar as batatas, observando o distrito começar a se reconstruir em
torno deles. E, enquanto observavam, falavam da tempestade de gelo do
inverno passado, a que derrubou luzes e estilhaçou um milhão de árvores
entre Kittery e Fort Kent; falavam dos ciclones que haviam passado por lá
em agosto de 1985; do furacão de granizo de 1927. Aquelas, sim, foram
tempestades e tanto, disseram. Aquelas sim, Santo Deus.
Tenho certeza de que têm lá suas razões, e não discuto com eles —
raramente se ganha uma discussão com um genuíno ianque da velha
guarda, nunca, se é sobre o tempo —, mas para mim a tempestade de 21
de julho de 1998 sempre será a tempestade. E conheço uma garotinha que
sente o mesmo. Ela pode viver até 2100, graças aos benefícios da medicina
moderna, mas acho que para Kyra Elizabeth Devore aquela sempre será a
tempestade. A tempestade em que sua mãe que tinha morrido voltou para
ela vestida do lago.
O primeiro veículo a percorrer minha entrada de carros só chegou quase às
seis horas. Notei então que não era um carro da polícia do condado de
Castle e sim uma banheira amarela com luzes amarelas piscando no alto
da cabine e um sujeito com uniforme da Companhia de Energia do Maine
Central ao volante. Mas o cara no outro banco era um tira — na verdade,
era Norris Ridgewick, o próprio xerife do condado. E ele veio até minha
porta com a arma na mão.
A mudança de tempo que o camarada da TV tinha prometido
finalmente chegou, nuvens e núcleos de tempestade impelidos para leste
por um vento frio com apenas um pouquinho menos de força que uma
ventania.
As árvores continuaram a cair nos bosques gotejantes por pelo
menos uma hora depois que a chuva cessou. Por volta de cinco horas, fiz
sanduíches de queijo quente e sopa de tomate para nós... comida que
conforta, diria Jo. Kyra comeu, apaticamente, mas comeu, e bebeu bastante
leite. Eu a vesti com outra de minhas camisetas e ela prendeu o próprio
cabelo para trás. Ofereci-lhe as fitas brancas, mas ela balançou
decididamente a cabeça e, em vez delas, optou por um elástico.
— Não gosto mais dessas fitas — disse ela. Cheguei à conclusão de
que eu também não, e joguei-as fora. Ki me observou e não fez objeções.
Então atravessei a sala de estar e fui até o aquecedor à lenha.
— O que está fazendo? — Ela terminou o segundo copo de leite, se
contorceu para fora da cadeira e veio até mim.
— Acendendo um fogo. — Talvez todos aqueles dias quentes tenham
afinado meu sangue. Era o que minha mãe diria, de qualquer modo.
Silenciosamente, ela me observou puxar folha após folha da pilha de
papel que eu tinha trazido da mesa e empilhado no alto do aquecedor,
fazendo uma bola com cada uma e jogando-a pela sua portinhola. Quando
senti que era suficiente, passei a colocar pedaços de gravetos sobre as
bolas de papel.
— O que é que tá escrito nesses papéis? — perguntou Ki.
— Nada de importante.
— É uma história?
— Na verdade, não. Era mais uma... ah, não sei. Um jogo de palavras
cruzadas. Ou uma carta.
— Carta muito comprida — disse ela, e apoiou a cabeça na minha
perna como se estivesse cansada.
— É — eu disse. — Cartas de amor geralmente são compridas, mas
ficar com elas por aí não é boa ideia.
— Por quê?
— Porque elas... — Podem voltar para assombrar você foi o que
passou pela minha cabeça, mas eu não ia dizer isso. — Porque elas podem
embaraçar você mais tarde.
— Ah.
— Além disso, esses papéis são como as suas fitas, de certo modo.
— Você não gosta mais deles.
— É.
Então ela viu a caixa — a caixa de metal com IDEIAS DE JO escrito
na tampa. Estava no balcão entre a sala de estar e a pia, perto de onde o
velho Gato Maluco estivera pendurado na parede. Eu não me lembrava de
ter trazido a caixa do estúdio comigo, mas suponho que podia não lembrar;
estava muito atônito. Também acho que ela podia ter aparecido... por si
mesma. Acredito nessas coisas agora; tenho motivos para isso.
Os olhos de Kyra se iluminaram de um modo que eu não via desde
que ela acordou daquela curta soneca para descobrir que a mãe havia
morrido. Ficou na ponta dos pés para pegar a caixa, depois alisou com os
pequenos dedos as letras douradas. Pensei em como era importante para
uma criança possuir uma caixa de metal. Você tem que ter uma para suas
coisas secretas — o melhor brinquedo, os pedacinhos de renda mais
bonitos, a primeira joia. Ou um retrato da mãe, talvez.
— Isso é tão... bonito — disse ela numa voz suave e reverente.
— Pode ficar com ela, se não se importar que esteja escrito IDEIAS
DE JO em vez de IDEIAS DE KI. Aí dentro tem alguns papéis que eu quero
ler, mas posso colocá-los em outro lugar.
Ela me olhou para ter certeza de que eu não estava brincando, e viu
que eu não estava.
— Eu vou gostar muito — disse ela com a mesma voz suave e
reverente.
Peguei a caixa, retirei os cadernos de taquigrafia, anotações e recortes, e então a entreguei de volta para ela, que ficou praticando tirar a
tampa e depois colocá-la.
— Adivinha o que vou colocar aqui — disse ela.
— Tesouros secretos?
— É! — disse ela, e sorriu de fato por um momento. — Quem era
Jo, Mike? Eu conheço ela? Conheço, não é? Ela era do pessoal da geleira.
— Ela... — Um pensamento me ocorreu. Folheei os recortes
amarelados. Nada. Pensei que a tinha perdido em algum ponto do caminho,
então vi uma ponta dela espiando do meio de um dos cadernos de
taquigrafia. Peguei-a e a passei a Ki.
— O que é?
— Uma fotografia ao contrário. Segure contra a luz.
Ela o fez, e olhou-a por um longo tempo, fascinada. Tênue como um
sonho, eu podia ver minha mulher na mão dela, minha mulher em pé na
plataforma de flutuação, com seu maiô de duas peças.
— É Jo — eu disse.
— Ela é bonita. Tô contente de ganhar a caixa dela para as minhas
coisas.
— Também estou, Ki. — Beijei-lhe o alto da cabeça.
Quando o xerife Ridgewick martelou a porta, achei mais prudente atender
com as mãos para cima. Ele parecia eletrizado. O que pareceu relaxar a
situação foi uma pergunta simples e inesperada.
— Onde está Alan Pangborn no momento, xerife?
— Lá em New Hampshire — disse Ridgewick, abaixando um pouco a
pistola (um ou dois minutos depois ele a guardou no coldre sem nem
perceber que o tinha feito). — Ele e Polly estão indo muito bem. A não ser
pela artrite dela. Aquilo é horrível, acho eu, mas ela ainda tem seus bons
dias. A pessoa pode se dar bem por bastante tempo se consegue um bom
dia de vez em quando, é o que eu penso. Sr. Noonan, tenho muitas
perguntas a lhe fazer. Sabe disso, não é?
— Sei.
— Primeira e mais importante, o senhor está com a criança? Kyra
Devore?
— Sim.
— Onde ela está?
— Eu lhe mostro com o maior prazer.
Descemos o corredor da ala norte e paramos à entrada do quarto,
olhando para dentro. A colcha estava puxada até o queixo de Kyra e ela
dormia profundamente. O cachorro de pelúcia estava enroscado em sua
mão — podíamos ver apenas a cauda enlameada saindo do punho dela de
um lado e o nariz espetando-se do outro. Ficamos ali por muito tempo, sem
que nenhum de nós dissesse coisa alguma, observando-a dormir à luz de
uma tarde de verão. Nos bosques, as árvores haviam parado de cair, mas o
vento ainda soprava. Pelos beirais de Sara Laughs, ele produzia um som como o de música antiga.
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