aqueles que cantavam canções natalinas pelas ruas de Sanford parecessem
personagens do filme A felicidade não se compra. Quando fui checar Kyra
pela terceira vez, era 1h15 da madrugada do dia 26, e a neve tinha cessado.
Uma lua tardia, redonda, mas pálida, espiava através de nuvens
emaranhadas e fofas.
Eu passava o Natal novamente com Frank, e éramos os únicos
acordados. As crianças, inclusive Ki, haviam morrido para o mundo,
descontando no sono a farra anual de comidas e presentes. Frank estava
em seu terceiro uísque — tinha sido uma história de três uísques se algum
dia houve uma, acho —, mas eu bebi apenas um dedo de minha primeira
dose. Penso que poderia ter mergulhado com fé na garrafa se não fosse por
Ki. Nos dias em que estou com ela, geralmente não bebo mais do que um
copo de cerveja. E ficar com ela três dias seguidos... mas que droga, cara
pálida, se você não pode passar o Natal com sua filha, para que porcaria
serve o Natal?
— Tudo bem com você? — perguntou Frank, quando sentei
novamente e tomei outro golinho simbólico de meu copo.
Sorri ante aquilo. Não ela está bem e sim você está bem. Bom,
ninguém nunca disse que Frank era idiota.
— Você devia ter me visto quando o Departamento de Serviços
Humanos me deixou ficar com ela por um fim de semana em outubro. Eu
devo tê-la checado uma dúzia de vezes antes de ir para a cama... e depois
continuei checando. Levantando e espiando, ouvindo-a respirar. Não preguei
o olho na noite de sexta, tirei um cochilo de três horas no sábado. Portanto,
já fiz um grande progresso. Mas, se você algum dia bater com a língua nos
dentes sobre o que lhe contei, Frank, se algum dia eles souberem que eu
enchi aquela banheira antes que a tempestade fizesse o gerador pifar,
posso dizer adeus às minhas chances de adotá-la. Provavelmente terei que
preencher um formulário tríplice antes que eles sequer me deixem assistir
à sua formatura no ensino médio.
Eu não pretendia contar a Frank a parte da banheira, mas, quando
comecei a falar, despejei quase tudo. Acho que tinha que ser despejado para
alguém, se algum dia eu quisesse prosseguir com minha vida. Imaginei que
John Storrow fosse a pessoa do outro lado do confessionário quando o
momento chegasse, mas John não queria falar sobre nada do que tinha
acontecido, exceto o que dizia respeito a nosso contínuo assunto legal, que
hoje em dia é única e exclusivamente Kyra Elizabeth Devore.
— Vou ficar de boca fechada, não se preocupe. Como vai a batalha
da adoção?
— Lenta. Passei a odiar o sistema jurídico do estado do Maine e o
Departamento de Serviços Humanos também. Se você analisar as pessoas
que trabalham nessas burocracias individualmente, são boas pessoas na
maioria, mas o conjunto...
— Ruim, é?
— Às vezes me sinto como um personagem daquele romance, A
casa abandonada. Aquele em que o Dickens afirma que nos tribunais
ninguém ganha, só os advogados. John me fala para ter paciência e ver
quanto de bom já temos, que estamos fazendo progressos surpreendentes,
considerando-se que sou uma das criaturas mais indignas de confiança no
mundo, um homem branco solteiro e de meia-idade, mas Ki já esteve em
dois lares de adoção desde que Mattie morreu e...
— Ela não tem parentes numa daquelas cidades vizinhas?
— A tia de Mattie. Que não queria nada com Ki quando Mattie estava
viva e tem menos interesse agora. Sobretudo desde que...
— ... desde que Ki não vai ser rica.
— É.
— A tal Whitmore estava mentindo sobre o testamento de Devore.
— Totalmente. Ele deixou tudo para uma fundação que incentivará o
conhecimento de computação no mundo inteiro. Com o devido respeito à
enorme quantidade de fanáticos do mundo, não posso imaginar uma
caridade mais gelada.
— Como vai John?
— Muito bem recuperado, mas jamais vai voltar a usar
completamente o braço direito. Ele quase morreu com a perda de sangue.
Frank me afastou dos assuntos interligados de Ki e da custódia com
habilidade, para um homem já no terceiro uísque, e o segui de boa vontade.
Quase não suportava pensar nos longos dias e noites mais longas ainda de
Ki naqueles lares onde o Departamento de Serviços Humanos guarda as
crianças como bugigangas que ninguém quer. Ki não vivia nesses lugares,
apenas existia, pálida e apática, como um coelho bem alimentado mantido
numa gaiola. Cada vez que via meu carro aparecendo ou parando, ela
voltava à vida, agitando os braços e dançando como Snoopy em sua casinha
de cachorro. Nosso fim de semana em outubro tinha sido maravilhoso
(apesar de minha obsessiva necessidade de checá-la a cada meia hora
depois de ela dormir), e os feriados de Natal haviam sido até melhores. Seu
enfático desejo de estar comigo ajudava mais do que qualquer outra coisa
no tribunal... mas as rodas ainda giravam lentamente.
Talvez na primavera, Mike, disse-me John. Era um novo John
naqueles dias, pálido e sério. O esquilinho diligente e levemente arrogante
que quis bater cabeça com o sr. Maxwell “Grana Preta” Devore não estava
mais visível. John tinha aprendido algo sobre mortalidade no dia 21 de julho,
assim como algo sobre a crueldade idiota do mundo. O homem que ensinou
a si mesmo a cumprimentar com a mão esquerda em vez de com a direita
não estava mais interessado em festejar até vomitar. Andava saindo com
uma moça da Filadélfia, a filha de uma amiga de sua mãe. Eu não tinha
ideia se a coisa era séria ou não, o “Ti-John” de Ki mantém a boca fechada
sobre essa parte de sua vida, mas, quando um rapaz está saindo com a
filha de uma amiga da mãe por sua própria vontade, geralmente a coisa é
séria.
Talvez na primavera: tinha sido o seu mantra naquele final de outono
e princípio de inverno. O que é que estou fazendo de errado?, perguntei-lhe
certa vez — logo depois do Dia de Ação de Graças e de outro revés.
Nada, respondeu ele. Adoções por pessoas que não são casadas são
sempre lentas, e quando o adotante putativo é um homem, pior ainda.
Naquele ponto da conversa, John fez um pequeno gesto feio, enfiando o
indicador da mão esquerda para dentro e para fora de seu punho direito
frouxamente fechado.
Isso é uma escandalosa discriminação sexual, John.
É, mas geralmente justificada. Ponha a culpa em todos os idiotas de
mente torta que algum dia se acharam com o direito de tirar as calças de
uma criança, se quiser; ponha a culpa na burocracia, se quiser; que droga,
ponha a culpa nos raios cósmicos, se quiser. É um processo lento, mas
você vai ganhar no final. Você tem uma ficha limpa, você tem Kyra dizendo
“Quero ficar com Mike” para cada juiz e assistente social do DSH que ela
encontra, você tem dinheiro suficiente para ficar atrás deles por mais que
se contorçam e por mais formulários que joguem em cima de você... e
principalmente, companheiro, você tem a mim.
Eu tinha outra coisa também — o que Ki tinha sussurrado em meu
ouvido quando parei para recuperar o fôlego nos degraus. Nunca contei a
John sobre isso, e era uma das poucas coisas que eu também não contei a
Frank.
Mattie disse que eu sou sua garotinha agora, ela sussurrara. Mattie
disse que você vai tomar conta de mim.
Eu estava tentando — desde que os malditos molezas dos Serviços
Humanos me deixassem —, mas a espera era dura.
Frank pegou o uísque e o inclinou na minha direção. Balancei a
cabeça. Ki estava certa de que faria um boneco de neve, e eu queria poder
enfrentar o sol ofuscante sobre a neve fresca bem cedo de manhã sem dor
de cabeça.
— Frank, em quanto disso você realmente acredita?
Ele se serviu do uísque, depois ficou quieto por um tempo, olhando
para a mesa e pensando. Quando levantou a cabeça de novo, sorria, um
sorriso tão parecido com o de Jo que me partiu o coração. E quando falou,
apimentou seu sotaque de Boston geralmente leve.
— Claro que sou um irlandês meio bêbado que acaba de ouvir o avô
de todas as histórias de fantasmas na noite de Natal — disse ele. —
Acredito em todas elas, seu idiota.
Eu ri, e ele também. Nós o fizemos principalmente através do nariz,
como os homens fazem quando ficam acordados até tarde, talvez um
pouco bêbados, e não querem acordar o resto da casa.
— Vamos, quanto de verdade?
— Toda ela — repetiu ele, sem o sotaque de Boston. — Porque Jo
acreditava nela. E por causa dela. — Apontou a escada com a cabeça de
modo que eu soubesse quem era “ela”. — Ki não é como nenhuma outra
garota que já vi. É bastante doce, mas há alguma coisa em seus olhos. No
início achei que era a perda da mãe do modo como foi, mas não. Há mais
do que isso, não há?
— Sim.
— Está em você também. Tocou os dois.
Pensei na coisa que latia e que Jo tinha conseguido segurar enquanto
eu derramava a soda cáustica no rolo de lona podre. Um Forasteiro, ela o
chamou. Eu não dei uma olhada nítida nele, e provavelmente isso foi bom.
Provavelmente foi muito bom.
— Mike? — Frank pareceu preocupado. — Você está tremendo.
— Estou bem — eu disse. — Mesmo.
— Como está a casa agora? — perguntou ele. Eu ainda estava
morando em Sara Laughs. Adiei até o princípio de novembro, então pus a
casa de Derry para vender.
— Quieta.
— Totalmente quieta?
Assenti com a cabeça, mas não era totalmente verdade. Em umas
duas ocasiões, tinha acordado com a sensação que Mattie mencionou certa
vez — de que havia alguém na cama comigo. Mas não uma presença
perigosa. Em duas ocasiões, senti o cheiro (ou pensei ter sentido) do
perfume Red. E às vezes, mesmo quando o ar está perfeitamente parado, o
sino de Bunter toca algumas notas. Como se alguém solitário quisesse dar
um alô.
Frank deu uma olhada no relógio e depois em mim, quase pedindo
desculpas.
— Tenho mais algumas perguntas, tudo bem?
— Se a gente não consegue ficar acordado até de madrugada no dia
26 de dezembro, acho que nunca vai conseguir. Chute.
— O que é que você disse à polícia?
— Não tive que dizer muita coisa. Footman falou o suficiente para
contentá-los... excessivamente, para Norris Ridgewick. Footman disse que
ele e Osgood, era Osgood quem dirigia o carro, o corretor de estimação de
Devore, fizeram o atentado porque Devore os tinha ameaçado com o que
lhes aconteceria se não o fizessem. Os tiras do estado também
encontraram a cópia de uma ordem de pagamento entre as coisas de
Devore no Warrington’s. Dois milhões de dólares para uma conta nas Ilhas
Caimãs. O nome escrito na cópia é o de Randolph Footman. Randolph é o
nome do meio de George. O sr. Footman está residindo agora na Prisão
Estadual de Shawshank.
— E Rogette?
— Bem, Whitmore era o nome de solteira da mãe dela, mas acho
que é mais seguro dizer que o coração de Rogette pertencia ao papai. Ela
tinha leucemia, foi diagnosticada em 1996. Em pessoas da idade dela, tinha
só 57 anos quando morreu, por falar nisso, é fatal em dois de cada três
casos, mas ela estava fazendo quimioterapia. Daí a peruca.
— Por que ela tentou matar Kyra? Não entendi. Se você quebrou o
domínio de Sara Tidwell nesse nosso plano terreno quando dissolveu os
ossos dela, a maldição deveria ter... por que está me olhando dessa
maneira?
— Você entenderia se tivesse conhecido Devore — eu disse. — Ele
foi o homem que pôs fogo em toda a porra da TR como uma forma de
despedida ao partir para a ensolarada Califórnia. Pensei nele no segundo que
puxei a peruca; pensei que de certo modo eles haviam trocado de
identidade. Então pensei Ah, não, é ela, sim, é Rogette, ela apenas perdeu o
cabelo de algum modo.
— E você estava certo. A quimioterapia.
— Eu estava também errado. Sei mais sobre fantasmas do que
sabia, Frank. Talvez o mais importante é o que você vê primeiro, o que
você pensa primeiro... geralmente é o que é a verdade. Era ele naquele dia.
Devore. Ele voltou no final. Tenho certeza disso. No final, a coisa não tinha
a ver com Sara, não para ele. No final, não tinha a ver nem com Kyra.
Tinha a ver mesmo com o trenó de Scooter Larribee.
O silêncio se instalou entre nós. Por alguns momentos foi tão
profundo que pude realmente ouvir a casa respirar. Pode-se ouvir isso,
sabe? Se você ouve de fato. Isso é outra coisa que eu sei agora.
— Cristo — disse ele finalmente.
— Não acho que Devore veio da Califórnia para o leste para matá-la
— eu disse. — Não era esse o plano original.
— Então, qual era? Veio conhecer a neta? Consertar suas cercas?
— Minha nossa, não. Você ainda não entendeu o que ele era.
— Então me diga.
— Um monstro humano. Ele voltou para comprá-la, mas Mattie não a
vendeu. Então, quando Sara o dominou, ele começou a planejar a morte de
Ki. Suspeito que Sara jamais encontrou um instrumento mais disposto.
— Quantos ela matou ao todo? — perguntou Frank.
— Não sei bem. Acho que nem quero saber. Baseado nas anotações
e recortes de Jo, diria que foram talvez mais quatro... assassinatos
dirigidos, chamemos assim... nos anos entre 1901 e 1998. Todos crianças,
todos nomes começados com K, todos estreitamente aparentados com os
homens que a mataram.
— Meu Deus!
— Não acho que Deus tenha muito a ver com isso... mas ela os fez
pagar, não há dúvida.
— Você tem pena dela, não é?
— Tenho. Eu a teria dilacerado se ela tivesse posto um dedo em Ki,
mas claro que tenho pena dela. Foi estuprada e assassinada. O filho
afogado enquanto ela estava morrendo. Meu Deus, você não tem pena dela?
— Acho que sim. Mike, você sabe quem era o outro menino? O
menino que chorava? Foi ele quem morreu de toxemia?
— A maior parte das anotações de Jo tinha a ver com isso. Foi onde
ela começou. Royce Merrill conhecia bem a história. O menino que chorava
era Reg Tidwell Júnior. Você precisa entender que, por volta de setembro de
1901, quando os Red-Tops fizeram seu último espetáculo no condado de
Castle, quase todo mundo na TR sabia que Sara e o filho haviam sido
assassinados, e quase todo mundo tinha uma boa ideia de quem tinha feito
aquilo.
“Reg Tidwell passou bastante tempo naquele agosto atormentando o
xerife do condado, Nehemiah Bannerman. No início foi para encontrá-los
vivos, Tidwell queria uma busca a cavalo, depois foi para achar seus
corpos, e depois para encontrar os assassinos... porque, uma vez que ele
aceitou o fato de que haviam morrido, sempre soube que tinham sido
assassinados.
“No início, Bannerman foi solidário. Todos pareceram solidários no
início. O pessoal dos Red-Tops tinha sido muitíssimo bem tratado durante o
tempo que passou na TR. Foi isso o que mais enfureceu Jared, e acho que
você pode perdoar Son Tidwell por cometer um erro crucial.”
— Que erro foi esse?
Ora, ele pensou que Marte era o céu, cogitei. A TR deve ter parecido
o céu para eles, até que Sara e Kito saíram para um passeio, o garoto
carregando seu balde de frutinhas, e jamais voltaram. A impressão que a
TR deu a eles foi de que finalmente haviam descoberto um lugar onde
podiam ser negros e mesmo assim lhes era permitido respirar.
— Pensar que seriam tratados como pessoas comuns quando as
coisas deram errado só porque tinham sido tratados assim quando as
coisas estavam bem. Em vez disso, a TR se uniu contra eles. Ninguém que
tinha uma ideia do que Jared e seus protegidos haviam feito desculpou a
coisa exatamente, mas quando os navios estão afundando...
— Você protege os seus, lava a roupa suja com as portas fechadas
— murmurou Frank, e terminou a bebida.
— É. Quando os Red-Tops tocaram na Feira do condado de Castle,
sua pequena comunidade perto do lago tinha começado a se desfazer...
Tudo isso segundo as anotações de Jo, sabe; não há um pio a respeito do
assunto em nenhuma das histórias sobre a cidade.
“No Dia do Trabalho, a intimidação ativa começou. Foi o que Royce
contou a Jo. Ficou um pouco mais feia a cada dia, um pouco mais
assustadora, mas Son Tidwell simplesmente não queria ir embora, não até
descobrir o que tinha acontecido à irmã e ao sobrinho. Aparentemente
manteve gente da família no prado mesmo depois que os outros tinham
partido para lugares mais amigáveis.
“Então alguém pôs a armadilha. Havia uma clareira no bosque a
cerca de uns 1.500 metros a leste do que agora é chamado de prado de
Tidwell; havia uma grande cruz de bétula no meio dele. Jo tinha uma foto
dela em seu estúdio. Era lá que a comunidade negra celebrava seus cultos
depois que as portas das igrejas locais se fecharam para ela. O garoto,
Júnior, costumava ir muito lá para rezar ou apenas para sentar e meditar.
Havia muita gente na cidade que conhecia esse hábito dele. Alguém pôs
uma armadilha no pequeno atalho através dos bosques que o garoto usava.
Coberta com folhas e agulhas de pinheiro.”
— Deus do céu — disse Frank. Ele parecia nauseado.
— Provavelmente não foi Jared Devore ou seus rapazes lenhadores
que a instalaram... eles não queriam mais nada com o pessoal de Sara e
Son depois dos assassinatos, ficavam longe deles. Não pode nem mesmo
ter sido um amigo daqueles garotos. Eles já não tinham tantos amigos
assim. Mas isso não mudou o fato de que o pessoal perto do lago estava
esquecendo seu lugar, esmiuçando coisas que deviam ser deixadas em paz,
recusando-se a aceitar um não como resposta. Então alguém colocou a
armadilha. Penso que talvez a intenção não tenha sido realmente matar o
garoto, mas mutilá-lo? Talvez vê-lo sem o pé, condenado a uma vida inteira
de muletas? Acho que podem ter ido até esse ponto em imaginação.
“Seja como for, funcionou. O garoto pisou na armadilha... e por um
bom tempo não o encontraram. A dor deve ter sido excruciante. Então veio
a toxemia. Ele morreu. Son desistiu. Tinha que pensar nos outros filhos,
sem falar no pessoal que continuava com ele. Arrumaram suas roupas e
violões e partiram. Jo rastreou alguns deles na Carolina do Norte, onde
muitos de seus descendentes ainda vivem. E durante os incêndios de 1933,
aqueles que o jovem Max Devore ateou, as cabanas se queimaram até o
chão.”
— Não entendo por que os corpos de Sara e seu filho não foram
encontrados — disse Frank. — Entendo que o cheiro que você sentiu, a
putrefação, não era em qualquer sentido físico. Mas certamente na época...
se esse caminho que você chama de Rua era tão popular...
— Devore e os outros não os enterraram onde eu os encontrei,
inicialmente. Devem ter começado por arrastar os corpos mais para o
fundo dos bosques... talvez para onde fica a ala norte de Sara Laughs agora.
Então os cobriram com matagal e voltaram naquela noite. Deve ter sido
naquela noite mesmo; deixá-los ali por mais tempo teria atraído todos os
carnívoros do bosque. Eles o levaram para algum outro lugar e os
enterraram naquele rolo de lona. Jo não sabia onde, mas meu palpite é
Bowie Ridge, onde passavam a maior parte do verão cortando madeira. Que
droga, Bowie Ridge ainda é um lugar bastante isolado. Colocaram os corpos
em algum lugar; podemos muito bem achar que foi lá.
— Então como... por quê...
— Draper Finney não foi o único assombrado pelo que tinham feito,
Frank. Todos o foram. Literalmente assombrados. Com a possível exceção
de Jared Devore, acho eu. Ele viveu outros dez anos e aparentemente
jamais perdeu uma refeição. Mas os rapazes tinham pesadelos, bebiam
demais, brigavam demais, discutiam... se enfureciam se alguém chegasse a
citar os Red-Tops...
— Podiam do mesmo modo andar por ali usando cartazes dizendo
CHUTEM-NOS, SOMOS CULPADOS — comentou Frank.
— É. Provavelmente não ajudou que a maioria da TR estivesse dando
a eles o tratamento silencioso. Então Finney morreu na pedreira, cometeu
suicídio na pedreira, acho, e os rapazes lenhadores de Jared tiveram uma
ideia. Que pegou como um resfriado. Só que era mais uma compulsão. Sua
ideia era que, se desenterrassem os corpos e tornassem a enterrá-los onde
a coisa tinha acontecido, tudo voltaria ao normal para eles.
— Jared aceitou a ideia?
— Segundo as notas de Jo, naquela época eles já não se
aproximavam de Jared. Tornaram a enterrar o saco de ossos, sem a ajuda
de Jared Devore, onde eu posteriormente o desenterrei. No final do outono
ou princípio do inverno de 1902, acho eu.
— Ela queria voltar, não queria? Sara. Voltar para onde realmente
poderia trabalhar neles.
— E no distrito inteiro. Sim. Jo achava isso também. O suficiente
para ela não querer voltar a Sara Laughs uma vez que tinha descoberto
parte do negócio. Especialmente quando descobriu que estava grávida.
Quando começamos a tentar ter um filho e eu sugeri o nome de Kia, como
isso deve tê-la assustado! E eu nunca percebi.
— Sara achava que podia usar você para matar Kyra, se Devore
batesse as botas antes que pudesse fazer o serviço... Ele estava velho e
com uma saúde ruim, afinal de contas. Jo apostou que, ao contrário, você a
salvaria. É o que você acha, não é?
— É.
— E ela estava certa.
— Eu não poderia tê-lo feito sozinho. Desde a noite em que sonhei
com Sara cantando, Jo esteve comigo a cada passo do caminho. Sara não
conseguiu afastá-la.
— Não, Jo não se dava por vencida facilmente — concordou Frank, e
enxugou um olho. — O que você sabe sobre sua tia-avó duas vezes? A que
se casou com Auster?
— Bridget Noonan Auster — eu disse. — Bridey, para os amigos.
Perguntei à minha mãe e ela jura de pés juntos que não sabe de nada, que
Jo nunca lhe perguntou sobre Bridey, mas acho que pode estar mentindo. A
moça definitivamente era a ovelha negra da família. Posso dizer isso
apenas pelo som da voz de mamãe quando o nome dela surge. Não tenho
ideia de como ela conheceu Benton Auster. Digamos que ele estivesse na
parte do mundo em que fica Prout’s Neck visitando amigos e começou a
flertar com ela numa mariscada animada e barulhenta. Isso é tão provável
quanto qualquer outra coisa. Foi em 1884. Ela estava com 18 anos; ele, com
23. Eles se casaram, um daqueles negócios apressados. Harry, o que afogou
Kito Tidwell, apareceu seis meses depois.
— Então ele mal tinha 17 anos quando a coisa aconteceu — disse Frank. — Deus do céu.
— E, na época, sua mãe já tinha se tornado religiosa. O terror dele a
respeito do que ela pensaria se descobrisse foi parte do motivo de ele ter
feito isso. Alguma outra pergunta, Frank? Porque eu realmente estou
começando a desmoronar.
Por algum tempo, ele não disse nada — eu comecei a achar que ele
havia terminado, quando...
— Mais duas. Você se importa?
— Acho que é tarde demais para recuar agora. Quais são?
— A Forma de que você falou. O Forasteiro. Aquilo me perturba.
Eu não disse nada. Perturbava-me também.
— Acha que há uma chance de que ele possa voltar?
— Sempre volta — eu disse. — Me arriscando a parecer pomposo, o
Forasteiro finalmente volta para todos nós, não é? Porque somos todos
sacos de ossos. E o Forasteiro... Frank, o Forasteiro quer o que está no saco.
Ele ruminou isso, depois tomou o resto do uísque de um gole só.
— Mais alguma pergunta?
— Tenho — disse ele. — Começou a escrever de novo?
Subi a escada poucos minutos depois, chequei Ki, escovei os dentes,
chequei Ki de novo, depois subi na cama. De onde eu estava deitado podia
ver a pálida lua brilhando na neve do lado de fora da janela.
Começou a escrever de novo?
Não. Além de um extenso ensaio de como passei as férias de verão
que talvez eu mostre a Kyra no futuro, não tenho escrito nada. Sei que
Harold está nervoso, e mais cedo ou mais tarde suponho que terei que ligar
para ele e dizer o que ele já adivinha: a máquina que deslizou tão
suavemente por tanto tempo parou. Não está quebrada — essas memórias
surgiram sem um ofegar ou sem que meu coração falhasse uma batida —,
mas mesmo assim a máquina parou. Há gasolina no tanque, as velas de
ignição funcionam e a bateria também, mas o local do palavrório continua
quieto no centro de minha mente. Pus uma lona em cima dele. Ele me
serviu bem, não há dúvida, e não gosto de pensar que está ficando
empoeirado.
Parte disso tem a ver com o modo como Mattie morreu. Em algum
momento desse outono, ocorreu-me que eu tinha escrito mortes
semelhantes em pelo menos dois dos meus livros, e a ficção popular está
repleta de outros exemplos da mesma coisa. Algum dia você já montou um
dilema moral que não sabe resolver? O protagonista está sexualmente
atraído por uma mulher que é jovem demais para ele, digamos assim. Você
precisa dar um jeito rápido? É a coisa mais fácil do mundo. “Quando a
história começa a azedar, chame o homem com a arma.” Raymond
Chandler disse isso, ou algo semelhante — parecido com o trabalho do
governo, cara pálida.
O assassinato é o pior tipo de pornografia. O assassinato é me
deixar fazer o que eu quero levado ao extremo. Acredito que mesmo
assassinatos de faz de conta deviam ser encarados seriamente; talvez
essa tenha sido outra ideia que me ocorreu no último verão. Talvez eu a
tenha tido enquanto Mattie se debatia em meus braços, expelindo sangue da
cabeça amassada e morrendo cega, ainda gritando pela filha enquanto
deixava este mundo. Pensar que eu possa ter escrito tal morte
infernalmente conveniente num livro, algum dia, me deixa nauseado.
Ou talvez eu desejasse apenas que tivesse havido um pouco mais de
tempo.
Eu me lembro de dizer a Ki que é melhor não deixar cartas de amor
por aí; o que pensei, mas não disse, foi que elas podem voltar para
assombrá-lo. Seja como for, estou assombrado... mas voluntariamente não
vou assombrar a mim mesmo, e, quando fechei meu livro de sonhos, fiz
isso por minha própria vontade. Acho que eu poderia ter derramado soda
cáustica sobre aqueles sonhos também, mas então recolhi minha mão.
Tenho visto coisas que jamais esperei ver e sentido coisas que
jamais esperei sentir — e o que senti e ainda sinto pela criança dormindo
no final do corredor não é de modo nenhum a menos importante dentre
elas. Ki é a minha garotinha agora, e eu sou seu garotão, e é isso que
importa. Nada mais parece ter tanta importância.
Thomas Hardy, que supostamente disse que o personagem mais
brilhantemente delineado num romance era apenas um saco de ossos, parou
de escrever romances após terminar Judas, o Obscuro, e enquanto estava
no auge de seu gênio narrativo. Continuou escrevendo poesia por outros
vinte anos, e, quando alguém lhe perguntava por que tinha abandonado a
ficção, ele dizia que, em primeiro lugar, não conseguia entender por que
tinha se envolvido tanto tempo com ela. Retrospectivamente, parecia-lhe
uma coisa tola, acrescentou. Sem sentido. Sei exatamente o que ele quis
dizer. No período que se estende entre agora e o momento em que o
Forasteiro se lembrar de mim e decidir voltar, deve haver outras coisas
para fazer, coisas que signifiquem mais do que aquelas sombras. Acho que
poderia voltar a arrastar correntes atrás da parede da Casa Fantasma, mas
não tenho nenhum interesse em fazer isso. Perdi o gosto por fantasmas.
Gosto de imaginar o que Mattie pensaria de Bartleby na história de Melville.
Deixei de lado minha pena de escrivão. Hoje em dia, prefiro não escrever.
Center Lovell, Maine:
25 de maio de 1997-6 de fevereiro
de 1998
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