escreveu: «São as férias do Natal e estou a pensar em ti... adivinha quem é?» Com um B
no fundo da página. Ela ia adorar. Pensou em tirar qualquer coisa da caixa de Krissi e
transferi-la para a caixa de Libby, mas achou melhor não o fazer. Ia dar demasiado nas
vistas, Libby aparecer com uma coisa bonita. Perguntou-se até que ponto ele e as irmãs
seriam alvo de gozo na escola. As três miúdas partilhavam um armário e meio de roupa,
Michelle andava com as camisolas de lã velhas dele, Debby usava o que podia de Michelle
e Libby vestia o que sobrava: jeans azuis de rapaz remendados, camisolas de basebol
velhas e sujas, vestidos de malha baratos que a barriga de Debby alargara. Era essa a
diferença em relação a Krissi. Todas as roupas dela tinham estilo. As de Diondra também,
com os seus jeans perfeitos. Se Diondra usava jeans desbotados, era por estarem na
moda; se tivessem salpicos de lixívia, era por os ter comprado com salpicos de lixívia.
Diondra recebia uma mesada choruda, já o levara às compras algumas vezes, segurando
nas peças de encontro ao corpo dele como se Ben fosse uma criança, mandando-o sorrir.
Dizendo-lhe que ele era capaz e, depois, piscava o olho. Ele não sabia muito bem se um
rapaz devia deixar uma rapariga comprar-lhe roupa, não sabia se era fixe ou não. O senhor
O’Malley, o professor que fazia a chamada todas as manhãs, estava sempre a gozar com
as camisas novas que a mulher o obrigava a usar, mas o senhor O’Malley era casado. De
qualquer maneira, Diondra gostava que ele se vestisse de preto e Ben não tinha dinheiro
para comprar nada. A porra da Diondra arranjaria maneira de ter o que queria, como
sempre.
Essa era mais uma razão para ele gostar tanto de estar com Krissi: ela partia do
princípio de que ele era fixe só porque tinha quinze anos e, para ela, quinze anos parecia
uma idade extremamente adulta. Ela não era como Diondra, que gozava com ele em
momentos esquisitos. Ele perguntava-lhe: «Qual é a graça?» e ela ria-se de boca fechada
e disparava: «Nada. És giro.» A primeira vez que tentaram ter relações, ele atrapalhara-se
tanto com o preservativo que ela desatara a rir e ele perdera o tesão. Da segunda vez, ela
tirara-lhe o preservativo das mãos e lançara-o para a outra ponta do quarto, dizendo que
se lixe e enfiara-o dentro dela.
Ficou com tesão só de pensar nisso. Estava a pôr o bilhete na caixa de Krissi, com o
pau duro como o diabo, e eis que entrou a senhora Darksilver, a professora do segundo
ano.
— Olá, Ben, o que é que estás a fazer aqui? — sorriu ela. Levava uns jeans vestidos,
uma camisola de lã e uns mocassins, e avançou para ele com passinhos curtos, segurando
num placar de cortiça e num metro de fita axadrezada.
Ele virou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta que dava para o liceu.
— Oh, nada, vim só pôr uma coisa na caixa da minha irmã.
— Não fujas, vem dar-me um abraço, ao menos. Desde que és crescido e entraste para
o liceu, nunca te vejo.
Ela continuou a andar em direção a ele, com os mocassins a ressoarem no cimento e
aquele seu grande sorriso cor-de-rosa na cara e a franja cortada a direito. Quando era
miúdo, ele tinha tido uma paixoneta por ela, por aquela franja de cabelo preto tão direita.
Virou-lhe completamente as costas e tentou encaminhar-se, meio a coxear, para a porta,
com o pau espetado na perna das calças, mas, no instante em que se virou, teve
consciência de que ela tinha percebido o que se passava. O sorriso desapareceu-lhe dos
lábios e uma careta de nojo e constrangimento espalhou-se-lhe pela cara toda. Nem sequer
disse mais nada, foi por isso que ele percebeu que ela tinha visto. Ela estava a olhar para
a caixa que se encontrava mesmo à frente dele: a de Krissi Cates e não a da irmã.
Ben sentiu-se como um animal a fugir, coxo, um veado que tinha de ser abatido. Calate
e dispara. Às vezes, via imagens de armas, um cano de espingarda encostado à cabeça.
Num dos seus cadernos, tinha escrito uma frase de Nietzsche que encontrara enquanto
estava a folhear um livro de citações, um dia, à espera que os jogadores de futebol
saíssem do edifício para ele poder limpar:
A ideia do suicídio é uma grande consolação;
Ajuda a suportar muitas noites más.
Na verdade, Ben nunca se mataria. Não queria ser a aberração trágica que punha as
miúdas a chorar em direto nas notícias, embora elas nunca lhe dirigissem a palavra na
vida real. Não sabia porquê, mas isso parecia-lhe mais patético do que a sua vida já era.
Ainda assim, à noite, quando as coisas estavam mesmo mal e ele se sentia
completamente encurralado e sem tomates, era uma ideia reconfortante: ir ao armário
onde a mãe guardava as armas (código 5-12-69, o aniversário de casamento dos pais,
atualmente uma piada), sentir o peso agradável do metal nas mãos, enfiar umas balas na
câmara, uma coisa tão fácil de fazer como espremer pasta de dentes, encostar a arma à
cabeça e disparar de imediato. Era preciso disparar logo, com a arma encostada, o dedo no
gatilho, senão ainda se mudava de ideias. Tinha de ser de um gesto só e, depois, uma
pessoa caía no chão como roupa que escorrega de um cabide. Assim... zás. Caía redonda
no chão e, para variar, outra pessoa qualquer que resolvesse o problema.
Não planeava fazer nada disto, mas, quando precisava de descarregar e não conseguia
bater uma punheta, ou quando já tinha batido uma e continuava a precisar de descarregar,
era nisso que geralmente pensava. No chão, de lado, como se o seu corpo fosse uma pilha
de roupa suja à espera que alguém a apanhasse.
Saiu porta fora e ficou sem tesão, como se o facto de passar para o lado do liceu o
tivesse castrado. Pegou no balde, arrastou-o para o seu cubículo e lavou as mãos com
sabão e pedra-pomes.
Desceu as escadas em direção à porta dos fundos e um bando de finalistas passou por
ele a caminho do parque de estacionamento. Sentia o escalpe quente por baixo do cabelo
preto e pôs-se a imaginar o que eles estariam a pensar — aberração, exatamente como o
treinador —, mas não disseram nada, na verdade nem sequer olharam para ele. Trinta
segundos depois de passarem, Ben abriu as portas com estrondo, vendo o sol incidir na
neve ofuscante. Se aquilo fosse um vídeo, agora entrava o solo de guitarra, o tremolo...
Buiiiirrrr!
Lá fora, os tipos enfiaram-se numa carrinha e foram-se embora, a exibirem-se aos
ziguezagues até ao fundo do parque de estacionamento. Ben tirou o cadeado da bicicleta,
com a cabeça a latejar, e uma gota de sangue caiu em cima do guiador. Esfregou-a com a
ponta de um dedo, passou-a pela ferida da testa e, sem pensar, levou o dedo à boca, como
se fosse um bocado esquecido de doce.
Precisava de descarregar. Cerveja e eventualmente um charro, descontrair-se um
bocado. O único sítio onde podia tentar fazê-lo era em casa de Trey. Na realidade, a casa
não era de Trey, Trey nunca disse onde é que vivia, mas, quando Trey não estava em casa
de Diondra, estava quase sempre no Complexo, ao fundo de uma comprida estrada de
terra batida que partia da Autoestrada 41, ladeada de laranjeiras-de-osage e, a seguir,
havia uma grande clareira desbastada, com um armazém feito de um material qualquer
duro, tipo lata. Aquilo tudo chocalhava em dias de vento. No inverno, um gerador zumbia lá
dentro, fornecendo eletricidade suficiente só para ligar uns aquecedores e uma televisão
com má receção. Espalhados pelo chão de terra estavam dúzias de amostras de alcatifa
em coloridos retalhos malcheirosos e uns quantos sofás velhos e feios que tinham sido
dados. As pessoas sentavam-se a fumar à volta dos aquecedores como se fossem
fogueiras. Toda a gente tinha cerveja — deixavam as latas na geada, do lado de fora da
porta — e toda a gente tinha charros. Geralmente, a dada altura, alguém ia à loja de
conveniência e, quem quer que fosse, voltava com umas dúzias de burritos, alguns
aquecidos no micro-ondas, outros ainda congelados. Se houvesse burritos a mais,
enfiavam-nos na neve ao lado da cerveja.
Ben nunca lá tinha ido sem Diondra, era o grupo dela, mas para onde é que havia de ir,
se não para lá? Aparecer no Complexo com a cabeça partida de certeza que lhe daria
direito a um aceno de cabeça relutante e a uma lata de Beast. Podiam não ser simpáticos
— Trey nunca era propriamente simpático —, mas não fazia parte do código de conduta
deles mandar alguém embora. Ben de certeza que era o mais novo, embora já lá tivesse
visto um miúdo mais novo do que ele: uma vez, um casal aparecera com um puto
pequeno, todo nu, só de jeans. Enquanto toda a gente apanhava uma moca, o miúdo ficara
sentado no sofá, sem fazer barulho, a chupar no dedo, de olhos postos em Ben. A maior
parte das pessoas, no entanto, tinha uns vinte, vinte e um, vinte e dois anos, aquela idade
em que deviam ter ido para a faculdade se não tivessem desistido do liceu. Ben ia lá dar
um salto e podia ser que gostassem dele e, assim, Diondra parava de lhe chamar
Emplastro sempre que o levava lá. Pelo menos, deixavam-no sentar-se a um canto e beber
cerveja durante umas horas.
Talvez fosse mais inteligente ir para casa, mas que se fodesse.
Quando Ben finalmente chegou ao armazém, as paredes de lata chocalhavam, vibrando
ao som de um solo improvisado de guitarra. Às vezes, os tipos levavam amplificadores e
treinavam o tremolo até furarem os tímpanos de toda a gente. Quem quer que estivesse a
tocar era muito bom: uma música qualquer dos Venom, perfeita para o estado de espírito
dele. Ramadamdamram! Era o barulho de cavaleiros a aproximarem-se, saqueadores e
incendiários. O barulho do caos.
Deixou a bicicleta cair na neve e esticou as mãos, estalou o pescoço. Doía-lhe a
cabeça, uma espécie de dor vibrante, mais difícil de ignorar do que uma simples moinha.
Estava esganado de fome. Tinha andado para cima e para baixo na autoestrada, a tentar
convencer-se a seguir o desvio para o armazém. Precisava de arranjar uma boa história
para justificar o corte na cara, uma coisa que não desse azo a merdas do estilo ohhhh, o
bebé caiu da bicicleta. Desejou que Diondra ou Trey aparecessem de carro mesmo a
tempo de o acompanhar até lá dentro, tudo na boa, só sorrisos e álcool a toda a volta
quando ele entrasse.
Mas, não, ia ter de entrar sozinho. Conseguia ver tudo à sua volta num raio de
quilómetros de neve e não havia um único carro à vista. Puxou a coberta de lona para
cima com a bota e entrou no armazém, sentindo a guitarra ressoar nas paredes como um
animal encurralado. Ben conhecia de vista o tipo que estava a tocar. Dizia que tinha sido
roadie dos Van Halen, mas nunca entrava em pormenores sobre como era a vida na
estrada com uma banda rock. Olhou para Ben de relance, mas nem o viu, o seu olhar
estava concentrado num público imaginário. Quatro rapazes e uma rapariga, todos de
carapinha, todos mais velhos, partilhavam um charro, espalhados pelos quadrados de
alcatifa. Mal olharam para ele. O tipo mais feio tinha as mãos nas ancas da rapariga, que
estava estendida sobre ele como um gato. Ela tinha o nariz atrofiado e a cara vermelha de
pústulas de acne e parecia completamente pedrada.
Ben atravessou o armazém — havia um espaço vazio enorme entre a porta e os
quadrados de alcatifa — e sentou-se num retalho fino de alcatifa verde, a um metro e
pouco do grupo, olhando para eles pelo canto do olho para os poder cumprimentar com um
aceno de cabeça. Ninguém estava a comer, não havia comida para cravar. Se fosse Trey,
teria feito um aceno de cabeça na direção deles e dito «Arranjem-me um, ‘tá?», e pelo
menos estaria a fumar com eles.
O guitarrista, Alex, por acaso até era bastante bom. Outra coisa que Ben queria ter era
uma Floyd Rose Tremolo. Tinha dedilhado uma em Kansas City, quando ele e Diondra
foram a uma loja de guitarras, e a sensação tinha sido fixe, uma coisa que provavelmente
ele podia aprender a fazer bem. Pelo menos, aprender o suficiente para tocar umas
canções baris, para voltar ao armazém e fazê-lo estremecer. Toda a gente que ele
conhecia tinha jeito para qualquer coisa, nem que fosse para gastar dinheiro, como
Diondra. Sempre que ele lhe falava em coisas que queria aprender, coisas que queria fazer,
ela ria-se e dizia que aquilo de que ele precisava era de um salário decente.
«As compras de supermercado são caras, a eletricidade é cara, tu não entendes», dizia
ela. Era verdade que Diondra pagava muitas das contas da casa, uma vez que os pais
estavam sempre fora, mas pagava-as com a porra do dinheiro dos pais. Ben não estava
convencido de que ser capaz de passar um cheque fosse uma coisa assim tão
extraordinária como isso. Perguntou-se que horas seriam e pensou que devia era ter ido
para casa dela e esperado que ela chegasse. Agora, ia ter de ficar ali uma hora ou mais,
para não pensarem que se ia embora só porque ninguém tinha falado com ele. Ainda tinha
as calças molhadas da água do balde e sentia o cheiro a atum rançoso no peito da camisa.
— Ei — disse a rapariga. — Ei, puto.
Ele levantou os olhos para ela e o cabelo preto caiu-lhe para um dos olhos.
— Não devias estar na escola? — disse ela, soltando as palavras aos grumos, pedrada.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou de férias.
— Ele diz que está de férias — disse ela ao namorado. O tipo, mal-amanhado e de cara
chupada, com um contorno de bigode, levantou a cabeça.
— Conheces alguém aqui? — perguntou o namorado.
Ben apontou para Alex.
— Conheço-o a ele.
— Ei, Alex, conheces este puto?
Alex parou de tocar, fincou as pernas no chão, abertas numa pose de roqueiro, e olhou
para Ben, encolhido no chão. Abanou a cabeça.
— Não, meu, não me dou com putos de liceu.
Este era o tipo de merda que ele tinha de ouvir sempre no armazém. Ben pensava que
o cabelo preto ajudaria, lhe daria um ar mais velho, mas os tipos adoravam gozar com ele
ou ignorá-lo. Devia ser qualquer coisa na sua estrutura física, ou na maneira de andar, ou
qualquer coisa que lhe estava no sangue. Ele era sempre a quarta ou quinta escolha em
qualquer jogo de equipa: o miúdo de quem se lembravam à última hora, antes dos
verdadeiros nabos. Os rapazes apercebiam-se disso à primeira vista; estavam
constantemente a atirar-se a Diondra à frente dele. Como se soubessem que a pila dele
murchava um bocado sempre que entrava numa sala. Pois que se fodessem, estava farto
disso.
— Vai levar no cu — murmurou Ben.
— Ohhhhh! O puto está chateado!
— Parece que andou à pancada — comentou a rapariga.
— Ei, meu, andaste à pancada? — A música tinha parado por completo. Alex encostara
a guitarra a uma parede gelada e estava a fumar ao pé dos outros, com um sorriso na
cara e a abanar a cabeça para cima e para baixo. As vozes deles embateram no teto e
troaram como fogo de artifício.
Ben fez um aceno de cabeça.
— Foi? Com quem?
— Ninguém que tu conheças.
— Oh, eu conheço toda a gente. Diz lá, a ver se eu conheço ou não. Quem foi, o teu
maninho mais pequeno? Levaste uma coça do maninho?
— O Trey Teepano.
— Estás a mentir — ripostou Alex. — O Trey dava-te uma coça dos diabos.
— Andaste à pancada com aquele cabrão índio? O Trey não é meio índio? — disse o
namorado, ignorando Alex.
— Que merda tem isso a ver com o caso, Mike? — perguntou um dos amigos. Aspirou
um bocado de erva usando uma pinça de cabelo e a pena rosa-vivo adejou ao frio. A
rapariga acabou o charro, apagou-o e voltou a enfiar a pinça no cabelo. Um caracol fininho
ficou espetado.
— Ouvi dizer que o gajo anda metido numas merdas bué de assustadoras — disse
Mike. — Merdas à séria, satânicas.
Aos olhos de Ben, Trey era um exibicionista. Falava em encontros especiais à meianoite
em Wichita, onde se derramava sangue em diferentes rituais. Tinha aparecido uma
noite em casa de Diondra, em outubro, passado com metanfetaminas, sem camisa e sujo
de sangue. A jurar que ele e uns amigos tinham matado umas reses nos arredores de
Lawrence. Disse que pensaram em ir ao campus universitário raptar um estudante
qualquer para o sacrificar também, mas em vez disso tinham apanhado uma moca das
grandes. Talvez essa fosse verdade, porque, no dia seguinte, a notícia estava em todo o
lado: quatro vacas mortas a golpe de machete e as entranhas tinham desaparecido. Ben
vira as fotografias: todas elas deitadas de lado, uns corpos grandes e reboludos, com
umas patas escanzeladas. Era muito difícil matar uma vaca, não era à toa que davam uma
pele de tão boa qualidade. Claro está que Trey treinava musculação umas horas por dia,
Ben já o vira a malhar no ferro e a espremer-se todo e a soltar pragas. Trey era um
monte de músculos bronzeado e gingão, e provavelmente conseguia matar uma vaca com
um machete, e provavelmente era suficientemente louco para o fazer por puro gozo. Mas
quanto à parte dos rituais satânicos? Ben achava que o Diabo estaria interessado em
coisas mais úteis do que entranhas de vaca. Ouro. Ou quem sabe um puto. Para mostrar
lealdade, como quando os gangues obrigam um tipo novo a dar um tiro em alguém.
— E anda — disse Ben. — Andamos. Fazemos umas merdas muita sinistras.
— Não acabaste de dizer que andaste à pancada com ele? — disse Mike e, finalmente,
finalmente!, levou a mão a uma geladeira de esferovite e deu uma Olympia Gold gelada a
Ben. Ben bebeu-a de um trago, estendeu a mão para receber outra e ficou surpreendido
quando Mike lhe deu uma segunda cerveja em vez de o brindar com um monte de merdas.
— Andamos à pancada. Quando fazemos as merdas que fazemos, é claro que
acabamos à pancada. — Isto parecia tão vago como as histórias de roadie que Alex
contava.
— Foste um dos tipos que matou as vacas? — perguntou a rapariga.
Ben fez que sim com a cabeça.
— Tivemos de as matar. Foi uma ordem.
— Estranha ordem, meu — disse o tipo mais calado, que estava a um canto. —
Mataram o meu hambúrguer.
Riram-se, toda a gente se riu, e Ben tentou pôr um ar discreto mas duro. Abanou a
cabeça para o cabelo lhe cair para os olhos e sentiu a cerveja arrepiá-lo. Duas cervejas
rápidas num estômago vazio e ficou zonzo, mas não queria dar parte de fraco.
— Porque é que mataram as vacas? — perguntou a rapariga.
— Sabe bem, satisfaz uns quantos requisitos. Não se pode entrar simplesmente para o
clube, é preciso fazer umas coisas.
Ben já tinha ido caçar montes de vezes, o pai levara-o uma vez e depois a mãe fizera
questão de o levar sempre com ela. Para criarem laços entre eles. Ela não percebeu como
era embaraçoso para Ben ir caçar com a mãe. Mas foi a mãe que fez dele um bom
atirador, ensinou-o a lidar com o coice, quando premir o gatilho, como esperar e ser
paciente durante horas no mato. Ben já abatera dúzias de animais a tiro, desde coelhos
até veados.
De repente, lembrou-se de ratos. Um dia, o gato da mãe desenterrara um ninho e
engolira dois ou três ratitos recém-nascidos e viscosos e depois despejara a restante meia
dúzia nos degraus dos fundos da casa. Runner tinha acabado de se ir embora — pela
segunda vez —, por isso coube a Ben acabar com o sofrimento deles. Estavam a
contorcer-se silenciosamente, como enguias cor-de-rosa, com os olhos ainda fechados
com secreções e, quando ele voltara para junto deles, depois de ir a correr duas vezes ao
celeiro a tentar decidir o que fazer, já eles estavam cobertos de formigas. Acabara por
pegar numa pá e esmagá-los, saltaram-lhe bocados de carne para os braços, e a cada
pazada sentia-se mais irritado e furioso. Achas que sou um mariquinhas, Runner, achas
que sou um mariquinhas! Quando acabou, só restava uma mancha pegajosa no chão.
Estava suado e, ao levantar os olhos, viu que a mãe o observava por trás da porta de rede.
Passara o jantar muito calada, nessa noite, a olhar para ele com uma cara preocupada, os
olhos tristes. Teve vontade de se virar para ela e dizer: Às vezes, sabe bem lixar qualquer
coisa. Em vez de estarem sempre a lixar-nos a nós.
— Que coisas? — insistiu a rapariga.
— Coisas do tipo... olha, às vezes tem de haver mortes. Temos de matar qualquer
coisa. Assim como Jesus precisa de sacrifícios, Satanás também precisa.
Disse a palavra Satanás como se fosse o nome de um gajo qualquer. Não lhe pareceu
uma treta e não teve medo. Pareceu-lhe normal, como se soubesse mesmo do que estava
a falar. Satanás. Quase o conseguia imaginar ali, um tipo de rosto comprido e chifres, com
uns olhos de bode arregalados.
— Acreditas mesmo nessa merda... como é que te chamas, diz lá outra vez?
— Ben. Day.
— Ben Gay?
— Pois, nunca tinha ouvido essa. — Ben tirou outra cerveja da geladeira sem pedir
licença, aproximara-se uns palmos desde que tinham começado a falar e, à medida que o
álcool o descontraía, tudo o que dizia, todas as merdas que lhe saíam pela boca fora
pareciam incontestáveis. Podia tornar-se um tipo incontestável, estava a ver que podia,
mesmo depois daquela última piada, o próprio gajo que a mandou percebeu que a piada ia
passar ao largo de Ben e cair em saco roto.
Acenderam mais um charro, a rapariga tirou outra vez a pinça do cabelo e a madeixa
pateta e simpática voltou ao lugar e ela perdeu o ar giro sem o caracol espetado. Ben
inspirou fundo, inalou uma quantidade grande, mas — não tussas, não tussas — não foi o
suficiente, por isso ficou com uma impressão na garganta. Aquela merda era erva de beira
da estrada, daquelas que davam uma pedrada das más. Um gajo ficava paranoico e
falador, em vez de descontraído. Ben tinha a teoria de que todos os desperdícios químicos
de todas as quintas se entranhavam no solo e eram sugados por aquelas plantas vorazes e
beras. Infetava-as: todos aqueles pesticidas e fertilizantes verdes berrantes estavam a
instalar-se nos sulcos dos seus pulmões e no seu cérebro.
A rapariga tinha os olhos postos nele, com aquele ar atordoado com que Debby ficava
depois de ver demasiada televisão, como se precisasse de dizer alguma coisa mas
estivesse demasiado preguiçosa para abrir a boca. Ben tinha fome.
O Diabo nunca tem fome. Foi isso que ele pensou naquela altura, assim, sem mais
nem menos, as palavras surgiram-lhe no cérebro como uma prece.
Alex estava a dedilhar a guitarra outra vez, Van Halen, AC/DC, uma música dos Beatles
e, de repente, pôs-se a tocar «O Little Town of Bethlehem», e as cordas aos saltos
aumentaram ainda mais as dores de cabeça de Ben.
— Ei, músicas de Natal, não, o Ben não gosta disso — gritou Mike.
— Foda-se, ele está a sangrar! — exclamou a rapariga.
O corte na testa reabrira e o sangue escorria-lhe agora abundantemente pela cara e
pingava para as calças. A rapariga tentou dar-lhe um guardanapo de papel, mas ele fez que
não com a mão e espalhou o sangue pelo rosto como se fosse uma pintura de guerra.
Alex parara de tocar e ficaram todos especados a olhar para Ben, com sorrisos
constrangidos e os ombros tensos, ligeiramente afastados dele. Mike estendeu-lhe o charro
como se fosse uma oferenda, com as pontas dos dedos para evitar tocar-lhe. Ben não
queria o charro, mas voltou a inspirar fundo e o fumo acre queimou-lhe ainda mais tecido
dos pulmões.
Foi então que a porta de lona se agitou e Trey entrou no armazém. Cruzou os braços,
fincou os pés no chão numa pose descontraída e, varrendo o espaço com os olhos, atirou a
cabeça para trás como se Ben fosse um peixe podre.
— O que é que estás aqui a fazer? A Diondra está cá?
— Está em Salina. Passei por cá só para fazer tempo. Eles estiveram a distrair-me.
— Ouvimos dizer que andaste à pancada — disse a rapariga, desfeita em sorrisos de
esguelha, os lábios como finos crescentes. — E que te meteste numas coisas beras.
Trey, com o seu cabelo preto comprido e escorrido e a cara angulosa, era
imperscrutável. Olhou para o grupo sentado no chão e para Ben agachado junto deles, e
por uma vez na vida pareceu à toa, sem saber como lidar com a situação.
— Pois, o que é que ele esteve para aqui a contar? — Manteve os olhos postos em Ben
e tirou uma cerveja das mãos da rapariga sem sequer olhar para ela. Ben perguntou-se se
eles já teriam ido para a cama um com o outro, porque Trey tinha o mesmo ar de desdém
com que Ben o vira uma vez olhar para uma ex-namorada: Não estou irritado nem triste
nem feliz por te ver. Estou-me a cagar. Não me aqueces nem arrefeces.
— Umas merdas sobre o Diabo e as coisas que vocês fazem para... o ajudar — disse
ela.
Trey abriu a cara num sorriso e sentou-se à frente de Ben. Ben evitou olhar para ele.
— Ei, Trey? — disse Alex. — És índio, não és?
— Sou, queres que te arranque o escalpe?
— Mas não és cem por cento índio, pois não? — disse a rapariga abruptamente.
— A minha mãe é branca. Não saio com miúdas índias.
— Porquê? — perguntou ela, enfiando e tirando a pinça do cabelo, emaranhando os
dentes de metal nos caracóis.
— Porque Satanás gosta de coninhas brancas. — Sorriu e inclinou a cabeça, fitando-a, e
ela começou a rir-se, mas, como ele não mudou de expressão, ela calou-se e o namorado
feio voltou a pôr o braço na anca dela.
Tinham gostado do paleio de Ben, mas Trey metia mais medo. Ele sentou-se quase de
pernas cruzadas, olhando para eles de uma maneira que parecia simpática à superfície,
mas na verdade não possuía um pingo de simpatia. E embora ele tivesse o corpo numa
posição descontraída, tinha os braços e as pernas dobrados em ângulos pronunciados e
tensos. Havia qualquer coisa profundamente antipática nele. Ninguém se ofereceu para
voltar a passar o charro.
Ficaram sentados em silêncio durante uns minutos, a disposição de Trey deixando-os a
todos enervados. Geralmente ele era um bebedolas de cerveja, barulhento, armado em
esperto e sempre pronto para andar à pancada, mas, quando se irritava, era como se
tivesse centenas de dedos invisíveis e insistentes que empurravam os ombros de toda a
gente para baixo. Enterrava toda a gente.
— Então, vamos? — perguntou ele, de repente, a Ben. — Trouxe a minha carrinha e
tenho as chaves de casa da Diondra. Podemos ir para casa dela até ela voltar, tem
televisão por cabo. É melhor do que ficar aqui nesta espelunca gelada.
Ben fez que sim com a cabeça, disse adeus, nervoso, ao grupo e foi atrás de Trey, que
já estava lá fora a atirar a cerveja para a neve. Ben estava decididamente pedrado. As
palavras engrumavam-se-lhe na garganta e, quando entrou na carrinha, tentou gaguejar
uma desculpa qualquer a Trey. Trey que acabara de lhe salvar a pele, por uma razão
qualquer que ele não sabia qual era. Porque é que ele é que tinha as chaves de casa de
Diondra? Provavelmente porque lhas pedira. Ben não insistira para que ela lhas desse.
— Espero que estejas pronto para dar provas daquelas merdas que disseste lá dentro
— avisou Trey, metendo a marcha-atrás. A carrinha GMC era um tanque e Trey conduziu-a
em cheio através do terreno da quinta, passando por cima de hastes de milho e valas de
irrigação, obrigando Ben a agarrar-se ao apoio de braços para não trincar a língua. Trey
lançou uma olhadela às mãos de Ben, fincadas com força no apoio.
— Sim, claro.
— Talvez hoje à noite te tornes um homem. Talvez.
Trey ligou o leitor de cassetes. Iron Maiden, a meio de uma canção, fogo, meu, claro
que sim, as palavras sibilando aos ouvidos de Ben: 666... Satanás... Sacrifício...
Ben revolveu a música na cabeça, com o cérebro a fervilhar, sentindo uma raiva
frenética, como sentia sempre que ouvia heavy metal, o dedilhar constante da guitarra,
sem nunca abrandar, deixando-o cada vez mais tenso, com a cabeça aos embates, a
bateria a subir-lhe pela espinha acima, a música toda um frenesim de raiva que não o
deixava pensar com calma, mantendo-o num transe cerrado. Tinha a sensação de que todo
o seu corpo era um punho fechado com força, pronto para soltar um murro.
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