os sete anos de idade que me lembrava dele em imagens fugazes de casa assombrada:
Ben, de cabelo preto, rosto macio, com as mãos fincadas num machado, a precipitar-se
pelo corredor fora contra Debby, emitindo um zumbido por entre os lábios cerrados. O
rosto de Ben salpicado de sangue, aos uivos, a espingarda pousada no ombro.
Esquecera-me do Ben que existira em tempos, tímido e sério, com aquelas suas
estranhas e inquietantes explosões de mau humor. Simplesmente o Ben, meu irmão, que
nunca teria sido capaz de fazer o que disseram que fez. O que eu disse que ele fez.
Num semáforo, com o sangue a ferver, levei a mão atrás do banco e peguei no
envelope que tinha uma fatura antiga. Por cima da janela de plástico, escrevi: Suspeitos,
Depois escrevi: Runner. Depois parei. Alguém que tivesse alguma coisa contra o Runner?
Escrevi. Alguém a quem o Runner devesse dinheiro? Runnerrunnerrunner. Tudo remetia
para Runner. Aquela voz masculina, aos gritos em nossa casa naquela noite, podia ter sido
Runner ou um inimigo de Runner, da mesma maneira que podia ter sido Ben. Eu precisava
que isto fosse verdade, e comprovável. Fui assolada por uma rajada de pânico: não posso
viver com isto, com Ben preso, com esta culpa em aberto. Precisava que isto acabasse.
Precisava de saber. Eu, eu, eu. Continuava previsivelmente egoísta.
Quando passei pelo cruzamento que dava para a nossa quinta, recusei-me a olhar para
lá.
Parei numa loja de conveniência nos arredores de Kansas City, enchi o depósito,
comprei uma barra de queijo processado Velveeta, uma Coca-Cola, pão branco e comida
para o meu velho gato esfaimado. Depois, dirigi-me para minha casa no Meio de Nenhures,
subi a encosta, saí do carro e cravei os olhos nas duas velhas do outro lado da rua que se
recusavam a olhar para mim. Estavam sentadas na cadeira de baloiço do alpendre, como
sempre, apesar do frio, com as cabeças muito direitas e hirtas, não fosse eu estragar-lhes
a vista. Fiquei de pé, com as mãos nas ancas, no cimo da minha colina, e esperei até que
uma delas cedeu finalmente. Depois, fiz um aceno majestoso, uma espécie de aceno do
Faroeste. A velhota enrugada fez-me um aceno de cabeça e eu entrei em casa e dei de
comer ao coitado do Buck, sentindo uma onda de triunfo.
Enquanto ainda tinha forças, barrei uma fatia de pão branco com mostarda amarelovivo,
empilhei pedaços grossos e macios de Velveeta e engoli a sanduíche, enquanto pedia
a três telefonistas diferentes, todas elas entediadas, para ligarem para o Asilo Masculino
de Bert Nolan. É mais uma hipótese a acrescentar à minha lista de potenciais empregos
para dar ao velho Jim Jeffreys: telefonista. Quando era miúda, esse era um dos empregos
que as meninas queriam ter quando fossem crescidas, telefonista, mas não me lembrava
porquê.
Com uma fina camada de pão colada ao céu da boca, fui finalmente atendida por uma
voz no Asilo de Bert Nolan e fiquei surpreendida ao saber que era o próprio Bert Nolan ao
telefone. Partira do princípio de que qualquer pessoa que tivesse um abrigo com o seu
nome já teria morrido. Disse-lhe que precisava de falar com Runner Day e ele fez uma
pausa.
— Bom, ele nunca cá está a tempo inteiro, no passado mês esteve mais tempo fora do
que cá, mas eu dou-lhe o recado — respondeu Bert Nolan, numa voz que parecia uma
velha buzina de automóvel. Dei-lhe o meu nome, sem qualquer sinal de reconhecimento da
parte dele, e comecei a indicar o meu número de telefone quando Nolan me interrompeu.
— Oh, ele não vai poder fazer telefonemas interurbanos, aviso-a já. Os homens que
aqui estão costumam ser grandes correspondentes, mas por carta, entende? Um selo não
chega a cinquenta cêntimos e uma pessoa não tem de fazer fila para usar o telefone.
Quer deixar a sua morada?
Não, não queria. Estremeci só de pensar em Runner a subir os meus degraus da
entrada com as suas botas demasiado pesadas, as mãos gordurosas na cinturinha,
sorrindo como se me tivesse derrotado num jogo qualquer.
— Se quiser, posso anotar o recado e a menina dá-me a sua morada em privado —
sugeriu Bert Nolan, sensatamente. — E quando o Runner me der uma carta para si, eu
ponho-a no correio e ele nem sequer fica a saber o seu código postal. Há muitos
familiares que optam por esta solução. É uma coisa triste, mas necessária. — Ao fundo,
ouvi uma máquina de refrigerantes a chocalhar e a despejar uma garrafa, alguém a
perguntar a Nolan se ele também queria uma e ele a responder: Não, obrigado, estou a
tentar reduzir, numa voz simpática de médico de província. — Quer fazer isso, menina?
Caso contrário, será difícil contactá-lo. Como eu disse, ele não é do tipo de ficar sentado
ao lado do telefone à espera que lhe liguem.
— E não há um e-mail para onde eu possa escrever?
Bert Nolan soltou um resmungo.
— Não, infelizmente não há nenhum e-mail.
Nunca pensei que Runner fosse propriamente fã de escrever cartas, mas é verdade que
ele sempre mantivera contacto mais por correio do que por telefone, por isso achei que
essa seria a melhor solução; fora isso, só mesmo ir de carro até Oklahoma e deitar-me
num dos beliches de Bert Nolan à espera de Runner.
— Importa-se de lhe dizer que preciso de falar com ele sobre o Ben e aquela noite?
Posso ir aí visitá-lo, se ele marcar um dia.
— Está bem... disse: o Ben e aquela noite?
— Sim, foi isso mesmo.
Sabia que Lyle ia ficar muito convencido por causa da minha mudança de opinião — ou
melhor, da minha potencial e semipossível mudança de opinião — sobre Ben. Já o estava a
ver a falar com os tipos do Kill Club, vestido com um dos seus estranhos casacos justos,
a explicar-lhes que me tinha convencido a ir visitar Ben. «No princípio, ela não queria ir,
acho que tinha medo do que poderia descobrir sobre o Ben... e sobre si própria.» E aquelas
caras todas a olharem para ele, admirativas, tão contentes com o que ele tinha feito. Isso
irritou-me.
Com quem eu queria falar era com a tia Diane. Diane que tomara conta de mim
durante sete dos meus onze anos, enquanto eu era uma órfã menor de idade. Foi ela a
primeira pessoa que me recolheu, enfiando-me na sua rulote com a minha mala de
pertences. Roupas, livro preferido, mas nada de brinquedos. Michelle arrebanhava todas as
bonecas à noite, dizia que era uma festa de pijama, e fez chichi para cima delas quando
foi estrangulada. Ainda me lembro de um livro de autocolantes que Diane nos deu no dia
dos crimes — flores, unicórnios e gatinhos — e sempre me perguntei se estaria naquela
pilha de destroços.
Diane não tinha meios para comprar uma casa. Todo o dinheiro do seguro de vida da
minha mãe foi gasto num bom advogado para Ben. Diane disse que era o que a minha mãe
quereria, mas disse-o com uma cara abatida, como se tivesse vontade de puxar as orelhas
à minha mãe. Portanto, não recebemos um tostão. Como era franzina, fiquei a dormir
numa despensa onde teria cabido apenas uma máquina de lavar e secar roupa. Diane até a
pintou para mim. Ela trabalhava horas extras, levava-me de carro a Topeka para as
sessões de acompanhamento psicológico, tentava ser carinhosa para mim, mas eu
percebia que a magoava abraçar-me, eu era uma criatura intratável que lhe lembrava o
assassinato da irmã. Os braços dela rodeavam-me como um arco, como se fosse um jogo
pô-los à minha volta mas tocando-me o mínimo possível. Todas as manhãs, porém, dizia
que me amava.
Nos dez anos que se seguiram, dei cabo do carro dela duas vezes, parti-lhe o nariz
outras duas, roubei e vendi os cartões de crédito dela e matei-lhe o cão. Foi o cão que
acabou por a vergar. Ela tinha comprado Gracie, um rafeiro de pelo comprido, pouco depois
dos crimes. Ladrava muito e era do tamanho do antebraço de Diane e ela gostava mais
dele do que de mim, ou pelo menos era isso que eu sentia. Durante anos tive ciúmes
daquele cão, de ver Diane escovar Gracie, com as suas manápulas masculinas a pegarem
num pente de plástico cor-de-rosa, de a ver pôr um gancho no pelo comprido de Gracie, de
a ver tirar da carteira uma fotografia de Gracie e não de mim. O cão estava obcecado
com o meu pé, o pé mutilado, só com dois dedos, o segundo e o pequenino, umas coisas
magricelas e nodosas. Gracie andava sempre a cheirá-lo, como se soubesse que tinha
qualquer coisa de errado, o que não a tornou particularmente querida aos meus olhos.
Eu tinha sido castigada por uma coisa qualquer no verão entre o décimo primeiro e o
décimo segundo ano do liceu e, enquanto Diane trabalhava, sentei-me na rulote quente a
sentir-me cada vez mais irritada com o cão e o cão cada vez mais agressivo comigo.
Como me recusei a levá-lo à rua, ele desatou a correr às voltas, frenético, do sofá para a
cozinha e daí para a despensa, ladrando o tempo todo e mordiscando-me os pés. Quando
me enrosquei, alimentando a minha fúria, fingindo ver uma telenovela mas em vez disso
deixando o meu cérebro ficar negro de raiva, Gracie parou a meio de uma das suas voltas
e mordeu-me o dedo pequenino do pé mutilado, agarrou nele com os caninos e sacudiu.
Lembro-me de pensar: Se este cão me arranca um dos meus últimos dedos do pé... e de
ficar furibunda por ser uma figurinha ridícula: na mão esquerda, tinha um coto onde
nenhum homem poria uma aliança e o meu pé direito, sem apoio suficiente, dava-me um
andar de marinheiro de pernas bambas. Na escola, as miúdas chamavam ao meu dedo
«espiga». Isso era pior, parecia uma coisa ao mesmo tempo exótica e grotesca, uma
coisa de que uma pessoa se ri e depois se apressa a desviar os olhos. Um médico tinhame
dito, havia pouco tempo, que as amputações provavelmente nem tinham sido
necessárias: «Foi o ato de um médico de província demasiado ambicioso.» Agarrei em
Gracie pela barriga, sentindo as costelas dela, aquele tremer frio de criatura pequena. Os
tremores deixaram-me ainda mais irritada e, de repente, dei por mim a arrancá-la do meu
dedo do pé — arrancando a pele, ao mesmo tempo — e a atirá-la com toda a força em
direção à cozinha. Ela bateu na esquina do balcão, afiada como uma picareta, e caiu,
desfeita em espasmos, a sangrar pelo linóleo fora.
A minha intenção não era matá-la, mas ela morreu, não tão depressa como eu teria
gostado, mas no espaço de dez minutos enquanto eu andava de um lado para o outro da
rulote, a tentar decidir o que fazer. Quando Diane chegou a casa, com uma oferenda de
frango frito, Gracie ainda estava deitada no chão e a única coisa que me saiu pela boca
foi: «Ela mordeu-me.»
Tentei dizer mais qualquer coisa, explicar porque é que não tinha tido culpa, mas Diane
limitou-se a espetar um dedo trémulo: Não abras a boca. Chamou a melhor amiga, Valerie,
um mulher que tinha tanto de delicado e maternal como Diane de corpulenta e bruta. Diane
ficou debruçada sobre a pia, a olhar pela janela, enquanto Valerie embrulhava Gracie num
cobertor especial. Depois, reuniram-se no quarto à porta fechada e, quando saíram de lá,
Valerie ficou parada em silêncio ao lado de Diane, chorosa e a torcer as mãos, enquanto
Diane me mandava arrumar as minhas coisas. Em retrospetiva, depreendo que Valerie
devia ser namorada de Diane; todas as noites, Diane metia-se na cama e falava com ela
ao telefone até adormecer. Discutiam tudo e mais alguma coisa e até tinham exatamente
o mesmo corte de cabelo penugento de lavar e andar. Na altura, eu estava-me nas tintas
para o papel que ela representava na vida de Diane.
Nos meus dois últimos anos de liceu, vivi com um casal educado, em Abilene, que me
era qualquer coisa em segundo grau e que eu só torturei ligeiramente. A partir daí, de
tantos em tantos meses, Diane telefonava. Eu sentava-me a falar com ela, ouvindo o
zumbido do telefone e a respiração de fumadora de Diane. Imaginava a metade inferior da
boca dela pendurada do auscultador, a penugem aveludada do queixo e o sinal empoleirado
no lábio, uma pinta cor de carne que uma vez ela me disse, com uma gargalhada, que
realizaria os meus sonhos se eu a esfregasse. Eu ouvia um rangido ao fundo e sabia que
Diane estava a abrir o armário do meio da cozinha da rulote. Eu conhecia aquela casa
melhor do que a quinta. Diane e eu fazíamos barulhinhos desnecessários, fingindo que
espirrávamos ou tossíamos, e depois Diane dizia: «Espera um instante, Libby»,
escusadamente, uma vez que nenhuma das duas tinha estado a falar. Geralmente Valerie
estava lá em casa e elas murmuravam entre si, a voz de Valerie motivadora, a de Diane
um rezingo, e depois Diane dava-me mais cerca de vinte segundos de conversa e arranjava
uma desculpa para desligar.
Parou de atender as minhas chamadas quando saiu Um Novo Dia
1
. As suas únicas
palavras foram: Que raio te passou pela cabeça para fazeres uma coisa daquelas?, o que
foi muito contido para Diane, mas teve um efeito muito mais doloroso do que três dúzias
de vai-tefoder.
Eu sabia que Diane ainda devia estar a viver no mesmo lugar, ela nunca havia de mudar
de casa; a rulote estava presa a ela como uma carapaça. Passei vinte minutos a remexer
nas minhas pilhas de coisas, à procura do meu antigo caderno de endereços, o que eu
tinha desde a escola básica, com uma miúda ruiva de puxinhos na capa que alguém deve
ter achado que era parecida comigo. Excetuando o sorriso. O número de Diane estava
anotado em T, de Tia Diane, com o nome escrito a marcador roxo na minha letra aos
balões.
Que tom devia eu adotar? E como explicar aquele meu telefonema? Por um lado, eu
queria simplesmente ouvir a respiração asmática dela ao telefone, a sua voz de treinador
de futebol a berrar-me ao ouvido: Então, porque é que demoraste este tempo todo para
me ligar? Por outro lado, queria saber o que é que ela pensava realmente de Ben. Nunca a
ouvi dizer mal de Ben, sempre teve cuidado com a maneira como falava sobre ele, mais
uma coisa pela qual lhe devia um agradecimento retroativo.
Marquei o número, com os ombros encolhidos até às orelhas, a garganta apertada,
contendo a respiração sem me aperceber, até que ao terceiro toque, quando a chamada foi
parar ao atendedor, dei por mim subitamente a soltar o ar dos pulmões.
Era a voz de Valerie no atendedor de chamadas, a pedir-me para deixar uma
mensagem para ela ou para Diane.
— Olá! É a Libby. Era só para dizer olá e dizer-vos que estou viva e... — Desliguei.
Voltei a marcar o número. — Ignorem a minha mensagem anterior. É a Libby. Telefonei
para pedir desculpa por... Oh, por muitas coisas. E gostava de falar... — Deixei a frase em
suspenso, caso alguém estivesse a filtrar as mensagens, depois deixei o meu número de
telefone, desliguei e sentei-me na beira da cama, pronta para me levantar, mas sem razão
para o fazer.
Levantei-me. Tinha feito mais coisas nesse dia do que num ano inteiro. Enquanto ainda
tinha o telefone na mão, obriguei-me a ligar a Lyle, na esperança de ir parar ao voice mail
mas, como sempre, ele atendeu. Antes que ele me conseguisse irritar, disse-lhe que o
encontro com Ben tinha corrido muito bem e que estava pronta para saber quem é que ele
achava que era o assassino. Disse isto tudo num tom muito preciso, como se estivesse a
dosear informações com uma colher medidora.
— Eu sabia que ia gostar dele, sabia que ia mudar de ideias — crocitou ele e, uma vez
mais, fiz um favor a mim própria e não lhe desliguei o telefone na cara.
— Eu não disse isso, Lyle, eu disse que estava pronta para outra missão, se quiser.
Voltámos a encontrar-nos na churrasqueira Tim Clark’s, onde pairava uma nuvem de
gordura. Mais uma empregada velha, ou então era a mesma com uma peruca ruiva,
enfiada nuns ténis esponjosos e uma minissaia adejante, que a fazia parecer uma antiga
tenista profissional. Em vez do gordo a admirar a jarra nova, estavam uns tipos com ar
todo estiloso a mostrarem uns aos outros cartas de jogar com mulheres nuas dos anos 70
e a gozarem com o matagal púbico das fulanas. Lyle estava sentado na mesa ao lado,
tenso, com a cadeira virada de costas para eles, numa posição forçada. Sentei-me e servime
de um copo de cerveja do jarro dele.
— Então, ele era como a Libby esperava? O que é que ele disse? — começou Lyle, a
dar à perna, nervoso.
Contei-lhe como foi, tirando a parte sobre o coelhinho de louça.
— Está a perceber agora o que a Magda quis dizer quando afirmou que ele era um caso
perdido?
Estava.
— Acho que ele se resignou à sentença de prisão — respondi, uma perspetiva que só
partilhei porque o tipo me tinha dado trezentos dólares e eu queria mais. — Ele acha que é
um castigo merecido por não ter conseguido proteger-nos ou uma coisa assim. Não sei.
Pensei que quando eu lhe falasse no meu depoimento, no facto de ter sido... exagerado, ele
reagisse de imediato, mas... nada.
— Em termos jurídicos, provavelmente já não serve de muito, passado tanto tempo —
disse Lyle. — A Magda diz que, se a Libby quer ajudar o Ben, devíamos reunir mais provas
e a Libby pode retratar-se quando dermos entrada ao pedido de habeas corpus. Vai causar
mais impacto. Nesta altura do campeonato, é mais uma questão política do que jurídica.
Muita gente deve a sua carreira de sucesso a este caso.
— Parece que a Magda sabe muita coisa.
— Ela está à frente de um grupo chamado Associação Libertem Ben Day, que faz de
tudo para tentar tirar o Ben da prisão. Às vezes, vou às reuniões, mas parece-me uma
coisa mais vocacionada para, hum, fãs. Mulheres.
— Alguma vez ouviu dizer que o Ben tivesse uma namorada séria? Uma dessas
mulheres da associação, chamada Molly ou Sally ou Polly? Ele tinha uma tatuagem.
— Nenhuma Sally. Polly parece o nome de um animal de estimação... a minha prima
tinha uma cadela chamada Polly. Há uma Molly, mas tem setenta e picos.
Um prato com batatas fritas apareceu à frente dele e a empregada era claramente
diferente da anterior, igualmente velha, mas muito mais simpática. Gosto de empregadas
que me tratem por querida ou amor e esta fê-lo.
Lyle comeu batatas fritas durante uns minutos: primeiro, espremeu uns pacotes de
ketchup para a beira do prato, depois deitou sal e pimenta no ketchup e, a seguir, molhou
cada batata individualmente, enfiando-a na boca com o zelo de uma menina.
— Vá, diga-me lá quem é que acha que foi — pedi finalmente.
— Quem foi o quê?
Revirei os olhos e encaixei a cabeça nas mãos, como se aquilo fosse demais para
mim, e quase era.
— Ah, sim. Acho que foi o Lou Cates, o pai da Krissi Cates. — Recostou-se na cadeira,
satisfeito, como se tivesse acabado de ganhar um jogo de Clue.
Krissi Cates, o nome dizia-me qualquer coisa. Tentei fazer bluff, mas não resultou.
— Sabe quem é a Krissi Cates, não sabe? — Como eu não disse nada, ele continuou,
assumindo um tom de voz melífluo e condescendente. — A Krissi Cates era uma miúda
que andava no quinto ano na vossa escola, na escola do Ben. No dia em que a sua família
foi assassinada, a polícia andava à procura do Ben para o interrogar... ela tinha-o acusado
de a ter molestado.
— O quê?
— É.
Ficámos especados a olhar um para o outro, com expressões idênticas de «só podes
estar doido».
Lyle abanou a cabeça.
— Quando diz que ninguém fala consigo sobre estas coisas, pelos vistos não está a
brincar.
— Ela não depôs contra o Ben... — comecei.
— Não, não. Foi a única coisa inteligente que a defesa do Ben fez, mostrar que as duas
acusações não estavam ligadas uma à outra em termos legais, a molestação e os
assassinatos. Mas o júri ficou contra ele. Toda a gente da região tinha ouvido dizer que o
Ben molestara uma miúda querida de boas famílias e que provavelmente fora isso que
levara aos «assassinatos satânicos». Sabe como funcionam os boatos.
— E esse caso da Krissi Cates chegou a ir a julgamento? — perguntei. — Alguém
provou que o Ben lhe fez alguma coisa de mal?
— Nunca foi para a frente... a polícia não oficializou a queixa — disse Lyle. — A família
Cates fez um acordo rápido com a direção distrital do ensino e depois mudou de região.
Mas quer saber o que eu acho? Acho que o Lou Cates foi a sua casa naquela noite
interrogar o Ben. Acho que o Lou Cates, que era um tipo corpulento, foi lá a casa à
procura de respostas e depois...
— Passou-se da cabeça e decidiu matar a família toda? Isso não faz sentido nenhum.
— Este tipo cumpriu três anos de prisão por homicídio involuntário quando era mais
novo, foi isso que eu descobri. Atirou com uma bola de bilhar com toda a força contra um
tipo e acabou por matá-lo. Tinha um feitio violento. Se o Lou Cates achou que a filha tinha
sido molestada, consigo imaginá-lo a ferver de raiva. Depois, pintou os pentagramas e
essas coisas só para despistar.
— Mmmm, não faz sentido. — Mas eu queria muito que fizesse.
— O seu irmão ser o assassino é que não faz sentido. É um crime louco,
completamente louco, há muita coisa que nunca fará sentido. Por isso é que as pessoas
ficam tão obcecadas por estes crimes. Se fizessem sentido, não seriam considerados um
mistério, pois não?
Fiquei calada. Era verdade. Comecei a mexericar no saleiro e no pimenteiro, que eram
surpreendentemente bonitos para uma espelunca daquelas.
— Não acha que, pelo menos, vale a pena explorar esta hipótese? — insistiu Lyle. —
Esta alegação enorme, horrível, que rebentou exatamente no mesmo dia em que a sua
família foi assassinada?
— Acho que sim. Você é que manda.
— Então, eu digo que até encontrar o Runner, veja se consegue que alguém da família
Cates fale consigo. Quinhentos dólares se for a Krissi ou o Lou. Só quero saber se eles
continuam a contar a mesma história sobre o Ben. Se conseguem viver com isso na
consciência, entende? É que só pode ser mentira. Certo?
Eu estava a sentir-me a tremer outra vez. A minha fé não precisava de ser posta à
prova naquele preciso momento. Ainda assim, agarrei-me a uma estranha certeza
reconfortante: o Ben nunca me tinha molestado. Se realmente era um molestador de
crianças, não teria começado por atacar uma menina dentro de sua própria casa?
— Certo.
— Certo — repetiu Lyle.
— Mas não sei se terei mais sorte do que se fosse o Lyle a tentar. No fim de contas,
sou irmã do tipo que eles acusam de a ter molestado.
— Bom, eu tentei e não consegui nada — disse Lyle, encolhendo os ombros. — Não
tenho jeito para esse tipo de coisa.
— Que tipo de coisa?
— Subtileza.
— Ah, por acaso eu tenho muito jeito para isso.
— Ótimo. E se conseguir marcar um encontro, eu gostava de a acompanhar.
Encolhi os ombros em silêncio e levantei-me, planeando deixar a conta para ele pagar,
mas Lyle gritou o meu nome antes de eu ter conseguido dar três passos.
— Libby, tem noção de que meteu o saleiro e o pimenteiro no bolso?
Detive-me um segundo e pensei em fazer-me de surpreendida: oh, meu Deus, sou tão
distraída. Em vez disso, fiz que sim com a cabeça e saí porta fora. Precisava do saleiro e
do pimenteiro.
Lyle tinha localizado a mãe de Krissi Cates em Emporia, no Kansas, onde vivia com o
segundo marido, com quem tivera uma segunda filha quase vinte anos depois da primeira.
Lyle deixara-lhe várias mensagens no ano passado, mas ela nunca lhe telefonara. E ele
ficara-se por aí.
Nunca deixem uma mensagem a uma pessoa com quem queiram mesmo falar. Não, o
melhor é ligar e ligar até que alguém atenda — por raiva, curiosidade ou medo — e,
depois, dizer rapidamente o que for preciso para a pessoa não desligar.
Telefonei à mãe da Krissi umas doze vezes até ela atender e, depois, à pressa, disse:
— Fala Libby Day, a irmã mais nova do Ben Day, lembra-se do Ben Day?
Ouvi uns lábios molhados entreabrirem-se ruidosamente e uma vozinha murmurou:
— Sim, lembro-me do Ben Day. De que é que se trata, por favor? — Como se eu fosse
uma operadora de televendas.
— Gostava de falar consigo ou com alguém da sua família sobre as acusações que a
sua filha Krissi fez contra o Ben.
— Nós não falamos disso... como é que disse que se chamava? Lizzy? Voltei a casarme
e tenho muito pouco contacto com a minha família anterior.
— Sabe como é que posso contactar o Lou ou a Krissi?
Ela soltou um suspiro como se fosse uma baforada de fumo.
— O meu palpite é que o Lou deve estar num bar qualquer, algures no estado do
Kansas. Quanto à Krissi... Meta pela I-70 e rume a oeste. Quando passar por Columbia,
vire à esquerda para os bares de striptease. Não volte a ligar.
1 O original A Brand New Day também pode ser traduzido por Uma Day Novinha em Folha.
(N. da T.)
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