quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

PATTY DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 8h02


  Ele estava a falar ao telefone outra vez, ela conseguia ouvir-lhe o muamuamua da voz,
como num desenho animado, por detrás da porta. Ele quisera uma extensão no quarto,
jurara-lhe que metade dos colegas do liceu tinha o seu próprio nome na lista telefónica.
Chamava-se Linhas para Crianças. Ela rira-se e depois ficara irritada, porque ele ficara
irritado por ela se ter rido. (Sinceramente, uma linha telefónica para crianças? Que
cambada de miúdos mimados!) Nenhum dos dois voltara a falar no assunto — ficavam
ambos facilmente constrangidos com qualquer coisa — e, umas semanas depois, ele
aparecera em casa, com a cabeça baixa, e mostrara-lhe o conteúdo de um saco de
compras: um distribuidor de linhas, que permitia que dois telefones usassem o mesmo
número, e um telefone de plástico incrivelmente leve que fazia lembrar os telefones corde-rosa
com que as meninas costumavam brincar às secretárias. «Escritório do Sr.
Benjamin Day», diziam elas, tentando arrastar o irmão para a brincadeira. Ben costumava
sorrir e mandava-as apontar o recado; ultimamente, limitava-se a ignorá-las.
   Desde que Ben trouxera o telefone para casa, a expressão «maldito fio do telefone!»
tornara-se frequente em casa dos Day. O fio em espiral partia da ficha da cozinha,
passava por cima do balcão, atravessava o corredor e enfiava-se debaixo da porta do
quarto dele, que estava quase sempre fechada. Alguém tropeçava invariavelmente no fio
pelo menos uma vez por dia e a isto seguia-se um grito (se fosse uma das meninas) ou
uma praga (se fosse Patty ou Ben). Ela pedia-lhe sistematicamente para prender o fio à
parede e, sistematicamente, ele esquecia-se de o fazer. Ela tentava convencer-se de que
este comportamento não passava da habitual teimosia adolescente, mas, no caso de Ben,
ele era agressivo, e isso deixava-a preocupada, com medo de que ele estivesse cheio de
raiva, ou que fosse preguiçoso, ou qualquer coisa pior que nem sequer lhe passara pela
cabeça. E com quem é que ele falava ao telefone? Antes da misteriosa adição do segundo
telefone, Ben quase nunca recebia chamadas. Tinha dois bons amigos, os irmãos Muehler,
Futuros Agricultores da América, ataviados de fatos-macaco, que eram tão reticentes que,
às vezes, até lhe desligavam o telefone na cara quando era ela a atender e, depois, Patty
limitava-se a dizer a Ben que Jim ou Ed tinham ligado. Mas nunca, até então, tinha havido
conversas longas à porta fechada.
Patty desconfiava que o filho finalmente arranjara namorada, mas as suas (poucas)
insinuações nesse sentido tinham deixado Ben tão constrangido que a sua pele clara se
transformara num branco-arroxeado e as sardas cor de âmbar até brilharam, como uma
espécie de aviso, e ela recuara de imediato. Não era o tipo de mãe capaz de escancarar a
vida dos filhos; já era suficientemente difícil para um rapaz de quinze anos ter alguma
privacidade numa casa cheia de mulheres. Ele instalara um cadeado na porta quando um
dia regressara da escola e encontrara Michelle a mexericar nas gavetas da sua secretária.
A instalação do cadeado também foi apresentada como um facto consumado: um martelo,
algumas pancadas e, de repente, estava feito. O seu próprio antro de rapaz, à prova de
intrusos. Uma vez mais, ela compreendia a decisão. A quinta tornara-se um espaço
feminino desde que Runner se fora embora. As cortinas, os sofás, até as velas, tudo era
cor de alperce e rendado. Sapatinhos cor-de-rosa e roupa interior florida e bandoletes
enchiam gavetas e armários. As poucas tentativas de afirmação por parte de Ben — o fio
do telefone em espiral e o cadeado metálico e viril — eram, de facto, compreensíveis.
Ouviu uma gargalhada vinda de dentro do quarto dele e ficou irritada. Ben nunca fora
risonho, nem quando era pequeno. Aos oito anos, olhara para uma das irmãs friamente e
anunciara: «A Michelle tem um problema de riso», como se fosse uma coisa a precisar de
solução. Patty descrevia-o como estoico, mas a autocontenção dele ia para lá disso. O pai
nunca soubera o que fazer dele, alternando entre brincadeiras rudes (Ben hirto e sem
reação, enquanto Runner o rebolava pelo chão como se fosse um crocodilo) e recriminação
(Runner queixava-se ruidosamente de que o miúdo era demasiado sério, esquisito,
efeminado). Patty também não se saíra muito melhor. Comprara recentemente um livro
sobre a relação mãe/filho adolescente e escondera-o debaixo da cama como se fosse
pornografia. A autora incitava as mães a serem corajosas, a fazerem perguntas, a
exigirem respostas dos filhos, mas Patty não era capaz. Ultimamente, bastava a mera
sugestão de uma pergunta para deixar Ben furioso e desencadear nele aquele seu silêncio
insuportavelmente ruidoso. Quanto mais ela tentava percebê-lo, mais ele se escondia. No
quarto. A falar com pessoas que ela não conhecia.
As suas três filhas também já estavam acordadas há horas. Uma quinta, até mesmo a
quinta deles, patética, falida e subavaliada, exigia que os seus moradores se levantassem
cedo e a rotina mantinha-se mesmo durante o inverno. Elas estavam nesse momento a
brincar na neve. Tinha-as mandado lá para fora como se fossem cachorrinhos, para não
acordarem Ben, depois ficou irritada quando ouviu a voz dele ao telefone e percebeu que já
se levantara. Sabia que era por isso que estava a fazer panquecas, o prato preferido das
filhas. Para equilibrar as coisas. Ben e as miúdas estavam sempre a acusá-la de ser
parcial: pedia constantemente a Ben para ter paciência com as criaturinhas cheias de fitas
nos cabelos e implorava constantemente às meninas para se calarem e não incomodarem
o irmão. Michelle, de dez anos, era a mais velha, Debby tinha nove, e Libby, sete. («Meu
Deus, mãe, parece que tiveste uma ninhada», repreendia-a Ben.) Espreitou por uma cortina
fininha e viu as meninas no seu natural estado animal: Michelle e Debby, chefe e
assistente, a construírem um forte de neve, usando um projeto arquitetónico que não se
tinham dado ao trabalho de partilhar com Libby; Libby a tentar integrar-se nas franjas da
brincadeira, dando-lhes bolas de neve e pedras e um comprido pau trémulo, todos eles
rejeitados com indiferença. Por fim, Libby dobrou as pernas para soltar um grito forte e,
de seguida, destruiu o forte todo com um pontapé. Patty virou costas; seguir-se-iam
murros e lágrimas e ela estava sem paciência para isso.
A porta de Ben abriu-se com um rangido e os seus passos pesados ao fundo do
corredor indicaram-lhe que tinha calçado aquelas botifarras pretas que ela detestava. Nem
olhes para elas, disse para si própria. Dizia a mesma coisa sempre que ele usava as
calças de camuflado. («O pai usava calças de camuflado», amuara ele quando ela se
queixara. «Para caçar, ele usava-as para caçar», corrigira ela.) Tinha saudades do miúdo
que costumava pedir roupas discretas, que só usava calças de ganga e camisas de tecido
escocês. O miúdo de caracóis de um ruivo escuro e uma obsessão por aviões. Ali vinha
ele, de casaco de ganga preta, jeans pretos e um gorro térmico enterrado até aos olhos.
Murmurou qualquer coisa e dirigiu-se para a porta.
— Primeiro, tomas o pequeno-almoço — disse ela. Ele deteve-se e virou-se de perfil
para ela.
— Tenho umas coisas para fazer.
— Tudo bem, mas primeiro toma o pequeno-almoço connosco.
— Sabes muito bem que detesto panquecas.
Que chato.
— Eu faço-te outra coisa qualquer. Senta-te. — Ele não se atreveria a desobedecer a
uma ordem direta, pois não? Ficaram parados a olhar um para o outro, a ver quem era
mais forte, e Patty estava quase a ceder quando Ben suspirou ruidosamente e se deixou
cair numa cadeira. Pôs-se a mexericar no saleiro, a deitar grãos de sal em cima da mesa
e a fazer montinhos com eles. Ela quase o mandou estar quieto, mas conteve-se. Já era
muito bom ele ter-se sentado à mesa.
— Com quem é que estavas a falar? — perguntou, servindo-lhe um copo de sumo de
laranja que sabia que ele não ia beber só para a irritar.
— Com umas pessoas.
— Pessoas, no plural?
Ele limitou-se a arquear as sobrancelhas.
A porta de rede abriu-se e depois a porta da rua bateu contra a parede, e ela ouviu
uma série de botas a caírem no tapete da entrada: as suas filhas estavam bem treinadas
para não deixarem rasto. Pelos vistos, a zanga resolvera-se depressa. Michelle e Debby já
estavam a discutir por causa de um desenho animado qualquer da televisão. Libby entrou
na cozinha com passos resolutos e atirou-se para uma cadeira ao lado de Ben, sacudindo
pedaços de gelo dos cabelos. Das suas três filhas, só Libby sabia como desarmar Ben:
sorriu para ele, fez um pequeno aceno de mão e depois fixou os olhos em frente.
— Olá, Libby — disse ele, continuando a peneirar o sal.
— Olá, Ben. É gira, a tua montanha de sal.
— Obrigado.
Patty viu Ben fechar-se nitidamente como uma concha assim que as outras duas
meninas entraram na cozinha, com as suas vozes alegres e estridentes a salpicarem os
cantos da assoalhada.
— Mãe, o Ben está a fazer uma porcaria enorme — denunciou Michelle.
— Não faz mal, querida, as panquecas estão quase prontas. Ovos, Ben?
— Porque é que o Ben tem direito a ovos? — queixou-se Michelle.
— Ovos, Ben?
— Sim.
— Eu quero ovos — diz Debby.
— Nem sequer gostas de ovos — irritou-se Libby. Podia-se sempre contar com ela para
tomar o partido do irmão. — O Ben precisa de ovos porque é rapaz. É homem.
Isto fez com que Ben sorrisse muito ligeiramente, o que, por sua vez, fez com que
Patty escolhesse a panqueca mais perfeita e redonda para dar a Libby. Empilhou as
panquecas nos pratos, enquanto os ovos cuspiam na frigideira, surpreendida por as
delicadas afinações de um pequeno-almoço para cinco estarem a correr bem. Era tudo o
que restava da comida boa do Natal, mas não tencionava preocupar-se com isso nesse
momento. Depois do pequeno-almoço, preocupar-se-ia.
— Mãe, a Debby tem os cotovelos em cima da mesa — anunciou Michelle, no seu
estilo mandona.
— Mãe, a Libby não lavou as mãos. — Outra vez Michelle.
— Tu também não. — Debby.
— Ninguém lavou. — Libby, rindo-se.
— Menina porquinha — disse Ben, e deu-lhe um toque nas costelas. Era uma piada
qualquer antiga entre eles, essa expressão. Patty não sabia de onde é que surgira. Libby
inclinou a cabeça para trás e riu-se ainda mais, um riso teatral destinado a agradar a Ben.
— Menino da mãezinha — disse Libby com um riso velado, uma espécie de resposta
combinada.
Patty pôs água e sabão num pano e passou-o a cada um, para poderem continuar
sentados à mesa. O facto de Ben se dar ao trabalho de dizer uma piada a uma das irmãs
era um acontecimento raro, e Patty teve a sensação de que conseguiria agarrar-se à boa
disposição se ninguém saísse do seu lugar. Precisava de boa disposição da mesma
maneira que uma pessoa precisa de dormir depois de uma direta, da mesma maneira que
uma pessoa sonha durante o dia em enfiar-se na cama. Todos os dias ela acordava e
jurava que não deixaria a quinta deitá-la abaixo, não deixaria a falência da quinta (tinha as
prestações do empréstimo em atraso há três anos, três anos e não havia saída)
transformá-la no tipo de mulher que detestava: sem alegria, crispada, incapaz de apreciar
fosse o que fosse. Todas as manhãs, ajoelhava-se no tapete puído junto da cama e rezava,
mas na realidade era uma promessa que fazia: Hoje não vou gritar, não vou chorar, não
me vou encolher toda como se estivesse à espera que um soco me deitasse ao chão.
Hoje, vou desfrutar do dia. Era uma sorte chegar à hora do almoço sem azedar.
Estavam todos prontos, agora, toda a gente de mãos lavadas; disseram uma oração
rápida e estava tudo a correr bem até que Michelle resolveu falar.
— O Ben tem de tirar o gorro.
A família Day sempre tivera a regra de tirar os chapéus e gorros à mesa e era uma
regra tão inflexível que Patty ficou surpreendida por ter sequer de a relembrar.
— Tens razão, o Ben tem mesmo de tirar o gorro — disse Patty, num tom de suave
incitação.
Ben inclinou a cabeça para ela e Patty sentiu uma pontada de preocupação. Passava-se
alguma coisa de errado. As sobrancelhas dele, normalmente duas linhas finas cor de
ferrugem, estavam pretas, com a pele por baixo manchada de roxo-escuro.
— Ben?
Ele tirou o gorro e na cabeça tinha uma coroa preta retinta de cabelo, desgrenhado
como o de um velho labrador. Foi um choque tremendo, como beber um copo de água
gelada demasiado depressa: o seu menino ruivo, a característica que definia Ben, tinha
desaparecido. Parecia mais velho. Mau. Como se aquele miúdo à sua frente tivesse
obrigado o Ben que ela conhecia a desaparecer.
Michelle gritou, Debby desatou a chorar.
— Ben, querido, porquê? — perguntou Patty. Estava a tentar convencer-se a não fazer
um drama daquilo, mas era mais forte do que ela. Aquele estúpido gesto de adolescente
(não passava disso mesmo) fez com que toda a sua relação com o filho parecesse, de
repente, sem remédio. Enquanto Ben olhava fixamente para a mesa, com um sorriso
idiota, escudando-se do alvoroço feminino que o cercava, Patty esforçou-se por arranjar
uma desculpa para o comportamento dele. Desde miúdo que Ben odiava o cabelo ruivo,
sempre fizeram troça dele por causa disso. Talvez ainda fizessem. Talvez aquilo fosse um
ato de afirmação. Uma coisa positiva. Mas, pensando melhor, foi de Patty que Ben herdou
o cabelo ruivo, que agora acabara de apagar. Não era uma rejeição? É claro que era. Libby,
a sua única filha ruiva, achou claramente que era. Estava sentada a segurar numa madeixa
de cabelo com dois dedos magrinhos, observando-a, apática.
— Pronto — disse Ben, devorando o ovo e pondo-se de pé. — Chega de drama. É só a
porcaria do cabelo.
— Mas o teu cabelo era tão bonito.
Ben deteve-se perante este comentário, como se estivesse a refletir sobre ele. Depois,
abanou a cabeça — se por causa da frase dela ou da maneira como a manhã estava a
correr, Patty não conseguiu perceber — e dirigiu-se para a porta com passos pesados.
— Vejam se se acalmam — disse ele, sem se virar. — Até logo.
Ela pensou que ele ia bater com a porta, mas, em vez disso, fechou-a devagar, e isso
pareceu-lhe ainda pior. Patty soprou para afastar o cabelo do rosto e olhou em redor da
mesa para todos os olhos azuis que a fitavam, arregalados, observando-a para ver como
deviam reagir. Sorriu e soltou uma gargalhada sem convicção.
— Bom, que estranho — disse. As meninas arrebitaram um pouco, ficando claramente
mais altas nas cadeiras.
— Ele é tão estranho — acrescentou Michelle.
— Agora, o cabelo dele condiz com as roupas — constatou Debby, enxugando as
lágrimas com as costas da mão e levando uma garfada de panqueca à boca.
Libby ficou de olhos postos no prato, com os ombros descaídos sobre a mesa. Era uma
expressão de desalento que só uma criança conseguia encarnar.
— Está tudo bem, Lib — disse Patty, e tentou dar-lhe uma palmadinha descontraída
sem que as outras miúdas desatassem a lamuriar-se outra vez.
— Não está nada — retorquiu ela. — Ele odeia-nos.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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