quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

PATTY DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 9h42


O lavatório estava manchado de um roxo lamacento da tinta com que Ben pintara o
cabelo. Portanto, algures durante a noite, ele trancara-se na casa de banho, sentara-se na
tampa da sanita e lera as instruções da embalagem de tinta que ela encontrara no lixo. A
embalagem tinha uma fotografia de uma mulher de lábios ligeiramente rosados e cabelo
preto retinto, curtinho e com franja. Perguntou-se se ele a teria roubado. Não conseguia
imaginar Ben, Ben que andava sempre de queixo enterrado no peito, a pousar a embalagem
de tinta para o cabelo no balcão da caixa registadora. Por conseguinte, roubara-a. Depois, a
meio da noite, o seu filho, completamente sozinho, medira e misturara e aplicara. Sentarase
com aquela lama de produtos químicos no cabelo ruivo e esperara que fizesse efeito.
Só a ideia deixava-a inacreditavelmente triste. Que naquela casa de mulheres, o seu
menino tivesse pintado o cabelo de noite, sozinho. Obviamente que era ridículo pensar que
ele lhe teria pedido ajuda, mas fazer uma coisa daquelas sem um cúmplice parecia um ato
de uma solidão tão grande. A irmã mais velha de Patty, Diane, furara as orelhas de Patty
naquela mesma casa de banho, havia duas décadas. Patty aquecera um alfinete de ama
com um isqueiro barato e Diane cortara uma batata a meio e colara uma metade fria e
molhada à parte de trás da orelha de Patty. Congelaram o lóbulo com um cubo de gelo e
Diane — está quieta, está quieeeeta — espetara o alfinete na carne de Patty como se
fosse borracha. Porque é que precisavam da batata? Por uma questão de pontaria ou uma
coisa desse género. Patty acobardara-se depois da primeira orelha, deixara-se cair na
borda da banheira, com o pico do alfinete espetado na orelha. Diane, intensa e inexorável
numa enorme camisa de noite de lã, cercou-a brandindo um segundo alfinete quente.
— Daqui a nada já está, não podes furar só uma, P.
Diane, uma mulher de ação. Não se devia abandonar nenhuma tarefa a meio, nem por
causa do tempo, nem da preguiça, nem de uma orelha a latejar, gelo derretido e uma irmã
mais nova assustadiça.
Patty girou as suas pérolas de ouro. A esquerda não estava bem centrada, culpa sua
por se ter mexido à última hora. Apesar disso, ali estavam eles, os dois furos assinalando
o zelo adolescente, e ela fizera-os com a irmã, da mesma maneira que pusera batom pela
primeira vez ou prendera elásticos a pensos higiénicos do tamanho de uma fralda por volta
de 1965. Havia coisas que não se devia fazer sozinho.
Verteu detergente no lavatório e começou a esfregar, vendo a água transformar-se
numa tinta verde-escura. Diane devia estar quase a aparecer. Passava sempre lá por casa
a meio da manhã, se estivesse no carro, o que era a sua maneira de fingir que o trajeto
de quarenta e oito quilómetros fazia parte da sua rotina de tarefas diárias. Diane troçaria
desta mais recente saga de Ben. Quando Patty estava preocupada com a escola, os
professores, a quinta, Ben, o casamento, os miúdos, a quinta (depois de 1980, era sempre,
sempre, sempre a quinta), era por Diane que ela mais ansiava, como se fosse uma bebida
forte. Diane, sentada numa cadeira de jardim na garagem, a fumar cigarros uns atrás dos
outros, declararia que Patty era uma tola, dir-lhe-ia para não levar as coisas tão a sério.
As preocupações vêm ao nosso encontro sem as procurarmos. Para Diane, as
preocupações eram quase seres físicos, criaturas porosas com ganchos em vez de dedos,
destinadas a serem derrotadas de imediato. Diane não se preocupava, isso era coisa para
mulheres menos robustas.
      Mas Patty não conseguia levar as coisas de ânimo leve. Ben tornara-se tão distante
neste último ano, transformara-se num miúdo estranho e tenso, que se fechava no quarto
aos pulos ao som de uma música que abanava as paredes, as palavras vomitadas aos
gritos escapando por debaixo da porta. Palavras assustadoras. A princípio, não se dera ao
trabalho de as ouvir com atenção, a música em si era tão feia, tão frenética, mas um dia
chegara a casa cedo, quando Ben julgava que estava sozinho, postara-se do lado de fora da
porta dele e ouvira os berros:

Já não existo,
Estou feito,
O Diabo levou-me a alma,
Agora sou filho de Satanás.

O disco deu um salto e voltou novamente o cântico grosseiro: já não existo, estou
feito, o Diabo levou-me a alma, agora sou filho de Satanás.
E outra vez. E mais outra. E Patty percebeu que Ben estava parado junto do gira-discos,
a levantar a agulha e a tocar aquelas palavras vezes sem conta, como uma prece.
Precisava de Diane. Já. Diane, instalada no sofá como um urso amistoso numa das
suas três velhas camisas de flanela, a mascar uma série de pastilhas de nicotina, falaria
daquela vez em que Patty chegara a casa de vestido ultracurto e os pais ficaram
literalmente sem ar, como se ela fosse uma causa perdida. «E não eras, pois não? Não
passavas de uma miúda. Pois com o Ben é a mesma coisa.» E Diane estalaria os dedos
como se fosse a coisa mais simples do mundo.
As miúdas estavam à espera do lado de fora da porta da casa de banho e ali estariam
quando ela saísse, expectantes. Sabiam, pelos murmúrios e pelas limpezas de Patty, que
mais alguma coisa correra mal e estavam a decidir se aquela situação requeria lágrimas
ou recriminações. Quando Patty gritava, geralmente duas das filhas tinham um ataque de
raiva e, se alguém se metia em sarilhos, a casa inteira era varrida por um vendaval de
culpa. As mulheres Day eram a personificação da histeria em massa. E ali estavam elas
numa quinta cheia de forquilhas.
Passou as mãos por água, as mãos gretadas, vermelhas e calejadas, e olhou para a sua
imagem no espelho, certificando-se de que não tinha os olhos molhados. Tinha trinta e
dois anos, mas aparentava mais uns dez. Tinha a testa enrugada como um leque de papel
feito por uma criança e os olhos cheios de pés de galinha. O cabelo ruivo estava raiado de
fios grossos e brancos, e o seu corpo estava feio de tão magro, cheio de altos e pontas
espetadas, como se tivesse engolido uma prateleira inteira de ferramentas e afins:
martelos e bolas de naftalina e umas quantas garrafas antigas. Não era o tipo de corpo
que uma pessoa quisesse abraçar e, de facto, os seus próprios filhos nunca se aninhavam
nela. Michelle gostava de a pentear (com gestos impacientes e agressivos, como tudo o
que Michelle fazia) e Debby encostava-se a si, sempre que estavam ambas de pé (de uma
maneira desligada e distraída, como era costume em Debby). A coitada da Libby
raramente lhe tocava, a menos que se tivesse magoado muito, o que também fazia
sentido. O corpo de Patty estava tão gasto que, quando tinha vinte e poucos anos, até os
mamilos eram nodosos; deixara de amamentar Libby pouquíssimo tempo depois de ela
nascer.
Não havia armário de medicamentos na casa de banho exígua (o que é que ela ia fazer,
quando as miúdas entrassem para o liceu, só com uma casa de banho para quatro
mulheres, e onde estaria Ben? Teve um triste vislumbre dele num quarto qualquer de
motel, completamente sozinho, num caos pueril de toalhas sujas e leite derramado), por
isso guardava um pequeno amontoado de produtos de toilette no rebordo do lavatório. Ben
empurrara todos os frascos para um canto: desodorizante em spray e laca do cabelo, uma
embalagem minúscula de pó de talco que ela não se lembrava de ter comprado. Estavam
agora salpicados com a mesma tinta arroxeada que lhe sujara o lavatório. Limpou-os como
se fossem peças de porcelana. Patty não estava pronta para fazer mais uma visita à loja.
Fora de carro até Salina havia um mês, num estado de espírito positivo e alegre, para
comprar alguns produtos de beleza: amaciador, creme para a cara, batom. Guardara uma
nota de vinte dólares no bolso da frente só para a viagem. Um gasto exorbitante. Mas só a
quantidade de tipos de creme que existiam para o rosto — hidratante, antirrugas, protetor
solar — deixou-a perdida. Uma pessoa podia comprar um hidratante, mas depois tinha de
arranjar um desmaquilhante da mesma gama e uma coisa chamada loção tonificante e,
antes mesmo de chegar ao creme para a noite, já tinha gastado cinquenta dólares. Saíra
da loja de mãos a abanar, sentindo-se castigada e tola.
«Tens quatro filhos... ninguém está à espera que tenhas um ar fresco que nem uma
alface», fora o comentário de Diane.
Mas ela queria ter um ar fresco que nem uma alface de vez em quando. Há alguns
meses, Runner voltara para casa, caíra do céu com o rosto bronzeado e uns olhos azuis e
histórias de barcos de pesca no Alasca e do circuito de corridas na Florida. Ficara parado
no degrau da entrada, alto e magro, de jeans sujos, como se nada fosse depois de três
anos sem dar notícias nem enviar dinheiro aos filhos. Perguntara se podia ficar lá em casa
até arranjar um sítio onde morar; é claro que estava falido, embora tivesse dado uma
Coca-Cola quente e meio vazia a Debby como se fosse uma prenda extraordinária. Runner
jurou que consertaria o que houvesse para consertar na quinta e que manteria uma relação
platónica, se ela quisesse. Era verão, na altura, e ela deixou-o dormir no sofá, onde as
miúdas corriam para ele de manhã, dando com ele espojado e malcheiroso, de boxers
rasgados, com os tomates meio de fora.
Ele encantou as miúdas — tratava-as por Bonequinha e Cara de Anjo — e até Ben o
observava com toda a atenção, rondando-o como um tubarão. Runner não interagia
verdadeiramente com Ben, mas tentava brincar um pouco com ele, ser simpático. Incluía
Ben nas conversas tratando-o como um homem, o que era bom, dizia coisas do estilo
«Isso é trabalho de homem» e piscava o olho a Ben. Ao fim de três semanas, Runner
chegou de carrinha com um sofá-cama que arranjara e sugeriu instalar-se na garagem.
Pareceu-lhe boa ideia. Ajudava-a a lavar a louça e abria-lhe a porta para ela passar.
Deixava Patty apanhá-lo a olhar-lhe para o rabo e depois fingia ficar embaraçado. Uma
noite, deram um beijo com sabor a tabaco, quando ela lhe estava a dar lençóis lavados, e
ele atacou-a de imediato: enfiou as mãos dentro da camisa dela, encostou-a à parede,
puxou-lhe a cabeça para trás pelos cabelos. Ela afastou-o de si, disse-lhe que não estava
pronta, tentou sorrir. Ele amuou e abanou a cabeça, olhando-a de cima a baixo com os
lábios cerrados. Quando ela se despiu para se deitar, sentiu o cheiro a nicotina no sítio
onde ele a agarrara mesmo abaixo do peito.
Ele ficara mais um mês, olhando-a de esguelha, começando trabalhos e depois
deixando-os a meio. Quando ela lhe pediu para se ir embora, uma vez, ao pequeno-almoço,
ele chamou-lhe cabra, atirou-lhe com um copo, deixou marcas de sumo no teto. Quando
ele já estava longe, ela descobriu que ele lhe roubara sessenta dólares, duas garrafas de
álcool e uma caixa de joias que em breve ele descobriria estar vazia. Runner mudou-se
para uma cabana decrépita, a um quilómetro e meio de distância; da chaminé saía fumo a
toda a hora, a única forma de aquecimento. Por vezes, ouvia tiros ao longe, sons de balas
disparadas para o ar.
Esse seria o seu último romance com o homem que era pai dos seus quatro filhos. E,
agora, estava na hora de enfrentar mais uma vez a realidade. Patty puxou o cabelo, seco e
pesado, para trás das orelhas e abriu a porta. Michelle estava sentada no chão mesmo à
sua frente, a fingir que analisava as tábuas do soalho. Observou Patty por detrás de uns
óculos de lentes cinzentas.
— O Ben fez asneira? — perguntou ela. — Porque é que ele fez aquilo ao cabelo?
— Crise de adolescência, diria eu — respondeu Patty e, no instante em que Michelle
inspirou fundo (ela inspirava sempre fundo antes de dizer alguma coisa, as suas frases
eram associações rápidas e cerradas de palavras que jorravam em catadupa, até ela ter
de respirar outra vez), ouviram um carro a aproximar-se. O caminho de acesso à casa era
longo, um carro metia pelo carreiro e demorava um minuto a chegar à entrada. Patty
soube, de alguma forma, que não era a irmã, apesar de as miúdas já estarem aos gritos
Diane! Diane!, correndo para a janela para espreitarem. Haveria suspiros tristes quando
percebessem que afinal não era Diane. Não sabia explicar porquê, mas tinha a certeza de
que era Len, o agente de cobranças. Até a maneira como conduzia tinha um som
possessivo. Len, o Credor Sanguessuga. Ela debatia-se com ele desde 1981. Runner já os
tinha abandonado nessa altura, anunciando que aquele tipo de vida não era para ele,
olhando em volta como se aquela casa fosse dele e não dela, a casa dos pais dela, dos
avós dela.
A única coisa que ele fizera fora casar-se com ela e arruinar a casa. Pobre e desiludido
Runner, com os seus sonhos tão altos nos anos 70, quando as pessoas pensavam que
podiam enriquecer a gerir uma quinta. (Ha!, riu-se ela, com desprezo, ali na cozinha, só de
pensar nisso, imaginem só.) Ela e Runner tinham tomado conta da quinta em 1974,
sucedendo aos pais dela. Foi um passo enorme, maior ainda do que o casamento ou o
nascimento do primeiro filho. Nenhuma dessas ocasiões entusiasmara os seus doces e
discretos pais. Runner cheirava a esturro já naquela época, mas, Deus os abençoe, os
coitados nunca disseram mal dele. Quando, aos dezassete anos, ela lhes anunciou que
estava grávida e que se iam casar, eles limitaram-se a responder: Oh. Assim, só isso. O
que dizia tudo.
Patty tinha uma fotografia desfocada do dia em que assumiram as rédeas da quinta:
os pais dela, hirtos e orgulhosos, sorrindo timidamente para a objetiva, e ela e Runner,
com sorrisos triunfais, cabeleiras luxuriantes, incrivelmente jovens, bebendo champanhe.
Os pais nunca tinham provado champanhe, mas foram de carro à povoação comprar uma
garrafa de propósito. Fizeram o brinde em velhos frascos de compota.
As coisas deram rapidamente para o torto e Patty não pôde culpar Runner
inteiramente. Naquela altura, toda a gente achava que o valor da terra continuaria a subir
em flecha — não vão inventar mais terras! — e porque não comprar mais, e melhor,
continuamente? Cultivem de uma ponta à outra, era este o grito de ordem. Sejam
agressivos, sejam ousados. Runner, com os seus sonhos ambiciosos e sem experiência
nenhuma, levara-a ao banco — pusera uma gravata cor de sorvete de lima, grossa como
uma colcha — e exclamara e gaguejara para conseguir um empréstimo. Acabaram por lhes
dar o dobro do que tinham pedido. Não deviam ter aceitado, quiçá, mas o credor disse para
não se preocuparem, eram tempos prósperos.
Estão a dar tudo de mão beijada!, gritara Runner e, de repente, tinham um trator novo
e uma máquina para revolver a terra de seis filas quando a de quatro chegava à vontade.
No espaço de um ano, comprara um Krause Dominator vermelho reluzente e uma máquina
combinada de colheita John Deere. Vern Evelee, com os seus respeitáveis duzentos
hectares ao fundo da estrada, fazia questão de mencionar todas as coisas novas que
avistava na propriedade deles, sempre com um ligeiro tremor na sobrancelha. Runner
comprou mais terras e um barco de pesca e, quando Patty perguntara tens a certeza, tens
mesmo a certeza?, ele amuara e rosnara que ficava magoado por ela não confiar nele.
Depois, tudo descambou de repente, como se fosse uma piada de mau gosto. Carter e o
embargo à venda de cereais aos russos (combatam os comunistas, esqueçam os
agricultores), taxas de juro a dezoito por cento, o preço do combustível a aumentar e
depois a disparar em flecha, bancos a abrir falência, países de que ela quase nunca ouvira
falar — a Argentina — de repente a fazerem concorrência nos mercados. A fazerem-lhe
concorrência a ela, na sua terrinha de Kinnakee, Kansas. Uns quantos anos maus e foi o
fim de Runner. Nunca se recompôs do efeito Carter, falava de Carter a toda a hora, sem
parar. Sentava-se a beber uma cerveja, a ver as más notícias na televisão e, assim que
via aqueles dentes grandes de coelho, os olhos dele ficavam vítreos e enchia-se de tal
maneira de ódio que parecia que até conhecia Carter pessoalmente.
Por isso, Runner culpava Carter e o resto da maldita povoação em peso culpava-a a
ela. Vern Evelee estalava a língua sempre que a via, como que dizendo «devias ter
vergonha». Os agricultores que não estavam a afundar nunca tinham compaixão pelos
outros, olhavam para eles como se tivessem andado a brincar nus na neve e depois
quisessem limpar o ranho na roupa deles. No verão passado, a semeadora de um agricultor
qualquer da zona de Ark City enlouquecera e despejara duas toneladas de trigo em cima
dele. O tipo, de um metro e noventa de altura, afogara-se nos cereais. Sufocara antes que
o conseguissem tirar de lá, é como engasgar-se com areia. Toda a gente em Kinnakee
ficou muito pesarosa, cheia de pena por causa daquele acidente aberrante... até
descobrirem que a quinta do homem estava a ir à falência. De repente, a conversa mudou
para comentários do estilo Oh, ele devia ter tido mais cuidado e desataram a fazer
sermões sobre segurança e como é que se trata do equipamento. Viraram-se logo contra
ele, contra aquele pobre coitado que morreu com os pulmões cheios da sua própria
colheita.
Ding-dong e ali estava Len, como ela temia, entregando o seu boné de lã a Michelle, o
sobretudo grosso a Debby e limpando cuidadosamente a neve dos sapatos demasiado
novos e brilhantes. Ben não aprovaria uns sapatos daqueles, pensou ela. Ben passava horas
a sujar os ténis novos, deixava as irmãs revezarem-se a pisá-los, na época em que ainda
deixava as miúdas aproximarem-se. Libby, no sofá, lançou um olhar carrancudo a Len e
depois virou-se novamente para a televisão. Libby adorava Diane e este tipo não era Diane,
este tipo enganara-a ao entrar pela porta dentro quando devia ter sido Diane a fazê-lo.
Len nunca dizia olá como cumprimento; dizia qualquer coisa que parecia um o-la-ré à
tirolesa e, de todas as vezes, Patty tinha de se preparar mentalmente para o ouvir, porque
achava o som completamente ridículo. Ele gritou o seu olaré, enquanto ela atravessava o
corredor, e Patty teve de se esconder na casa de banho para soltar uma praga e voltar a
pôr um sorriso na cara. Len abraçava-a sempre, o que ela tinha a certeza de que ele não
fazia com os outros agricultores que precisavam dos seus serviços. Por isso, foi ao
encontro dos braços abertos dele e deixou-o abraçá-la como fazia sempre, um nadinha de
tempo a mais, com as mãos nos cotovelos dela. Sentiu-o fazer um barulhinho com a boca
como se estivesse a cheirá-la. O homem fedia a salsichas e pastilhas de mentol. Um dia,
Len ia atirar-se efetivamente a ela, obrigando-a a tomar uma decisão a sério, e o jogo era
tão patético que lhe dava vontade de chorar. O caçador e a presa, mas era uma espécie
de mau programa sobre a vida selvagem: ele era um coiote pequeno e só com três patas
e ela era um coelhinho cansado e coxo. Não havia nada de magnificente naquilo.
— Como vai a minha menina agricultora? — disse ele. Havia a ideia implícita entre eles
de que ela gerir a quinta sozinha era uma piada. E naquela altura, pensou ela, até era.
— Oh, vai-se andando — respondeu. Debby e Michelle foram para o quarto. Libby
resfolegou no sofá. Da última vez que Len se dera ao trabalho de ir lá a casa, fizeram um
leilão umas semanas depois: os Day a espreitarem pelas janelas, a verem os vizinhos
darem cada vez menos pelo equipamento de que Patty necessitava para gerir uma
exploração agrícola. Michelle e Debby tinham ficado de rastos ao verem algumas das
colegas, as miúdas Boyler, a reboque dos pais como se aquilo fosse um piquenique, aos
pulos pela quinta. Porque é que não podemos ir lá para fora?, lamuriaram-se, contorcendose
em posturas iradas de súplica, vendo as miúdas Boyler a brincarem à vez no baloiço
delas; mais valia ter-lhes vendido o baloiço também. Patty teimara: Aquelas pessoas que
estão lá fora não são nossas amigas. As pessoas que lhe enviavam postais de Natal
estavam a passar as mãos pelas brocas e extirpadores dela, todas aquelas formas curvas
e retorcidas, oferecendo mesquinhamente metade do seu valor. Vern Evelee levou a
máquina para revolver a terra que em tempos pareceu suscitar nele tanto ressentimento,
conseguindo arrebatá-la por menos do que o preço de licitação. Impiedoso. Cruzou-se com
Vern uma semana depois, na loja de rações. Ele ficou com a nuca vermelha quando lhe
virou costas. Ela foi atrás dele e fez o barulho «devia ter vergonha» mesmo no ouvido
dele.
— Cheira bem aqui — comentou Len, num tom que quase parecia ressentido. — Pelos
vistos, o pequeno-almoço foi bom.
— Panquecas.
Ela fez um sinal de assentimento com a cabeça. Por favor, não me obrigues a
perguntar o que te trouxe aqui. Por favor, por uma vez na vida, diz porque é que vieste.
— Importa-se que me sente? — perguntou ele, encaixando-se no sofá ao lado de Libby,
de braços hirtos. — Esta qual delas é? — disse, tirando-lhe as medidas. Len vira as filhas
dela pelo menos uma dúzia de vezes, mas nunca sabia quem era quem e nem se arriscava
a lançar um nome ao calhas. Uma vez, chamara Susan a Michelle.
— Essa é a Libby.
— Tem o cabelo ruivo como a mãe.
Pois tinha. Patty não conseguiu dizer uma frase simpática em voz alta. Quanto mais
Len empatava, mais ela se sentia enjoada, com o constrangimento a transformar-se em
pavor. Já estava com as costas da camisola molhadas.
— O ruivo é de origem irlandesa? Vocês são irlandeses?
— Alemães. O meu nome de solteira é Krause.
— Ah, tem piada. Porque Krause significa cabelo encaracolado e não ruivo. Vocês não
têm o cabelo encaracolado. Ondulado, talvez. Também sou de origem alemã.
Já tinham tido esta conversa antes e acabava sempre de uma de duas maneiras. A
outra era: Len dizia que tinha piada o facto de o nome dela de solteira ser Krause, como o
equipamento agrícola, e que pena ela não ser da família dessa empresa. Qualquer uma das
duas versões deixava-a tensa.
— Então — cedeu ela, por fim. — Passa-se alguma coisa de errado?
Len pareceu desiludido por ela ter ido direta ao assunto. Franziu a testa como se
achasse que estava a ser indelicada.
— Bom, já que fala nisso, sim. Infelizmente, passa-se algo de muito errado. Fiz
questão de cá vir dar-lhe a notícia pessoalmente. Prefere falar num sítio mais privado? —
Apontou para Libby, arregalando os olhos. — Não prefere ir para o quarto? — Len tinha
barriga, uma barriga absolutamente redonda por baixo do cinto, como o despontar de uma
gravidez. Ela não queria ir para o quarto com ele.
— Libby, importas-te de ir ver o que as tuas irmãs estão a fazer? Preciso de falar com
o senhor Werner. — Libby suspirou e escorregou para fora do sofá, lentamente: primeiro
os pés, depois as pernas, depois o rabo e no fim as costas, como se fosse feita de cola.
Caiu no chão, rebolou umas quantas vezes, rastejou um pouco e finalmente pôs-se de pé e
arrastou-se pelo corredor fora.
Patty e Len olharam um para o outro e, a seguir, ele pôs o lábio inferior para fora e fez
que sim com a cabeça.
— Vão executar a hipoteca.
Patty sentiu o estômago contrair-se. Não se rebaixaria à frente daquele homem. Não
choraria.
— O que é que nós podemos fazer?
— Infelizmente, nóóóós ficámos sem alternativa. Consegui aguentá-los seis meses
para lá do prazo normal. Pus o meu emprego em risco. Menina agricultora. — Sorriu-lhe, de
mãos entrelaçadas nos joelhos. Ela teve vontade de o arranhar. Os colchões começaram a
ranger num dos quartos e Patty percebeu que Debby estava aos pulos em cima da cama, o
jogo preferido dela, pular de uma cama para a outra no quarto das meninas.
— Patty, a única maneira de resolver isto é com dinheiro. Já. Se não quer perder a
quinta. Estou a falar de pedir emprestado, suplicar, roubar. Estou a dizer que chegou a hora
de engolir o orgulho. Portanto: até que ponto é que quer manter a quinta? — As molas dos colchões 
rangeram ainda mais alto. O estômago de Patty deu uma volta. Len não parava
de sorrir.
Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial

0 comentários:

Postar um comentário

Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

Total de visualizações

Seguidores

Livros populares

Search