Portanto, eu ia conhecer o meu irmão, já crescido. Depois do meu encontro com Lyle,
voltei para casa e peguei no livro da Barb Eichel, A Sua Família na Prisão: Supere as
Grades! Depois de ler uns quantos capítulos confusos sobre a administração do sistema
penitenciário no estado da Florida, folheei as páginas amareladas até encontrar o
copyright: 1985. Que livro tão incrivelmente inútil. Fiquei com medo de receber mais
encomendas sem sentido de Barb: panfletos sobre parques aquáticos defuntos no
Alabama, brochuras sobre hotéis de Las Vegas desfeitos em estilhaços, avisos sobre o
vírus do milénio.
Acabei por pedir a Lyle para tratar de tudo. Disse-lhe que não conseguia entrar em
contacto com a pessoa certa, que me sentia esmagada por aquilo tudo, mas a verdade é
que pura e simplesmente não me apetecia lidar com as questões práticas. Não tenho
estofo para isso: marcar números, esperar em linha, falar, esperar em linha, depois ser
muito simpática para uma mulher qualquer mal-humorada, com três filhos para criar e a
resolução anual de retomar os estudos, uma mulher qualquer mortinha para que lhe demos
uma desculpa para nos desligar o telefone na cara. É uma cabra, sem dúvida, mas não lhe
podemos chamar nomes, senão, de repente, temos de voltar à estaca zero como no jogo
das escadas e serpentes. E o castigo é termos de ser ainda mais simpáticos quando
ligarmos de novo. Lyle que lidasse com isso.
A prisão de Ben fica mesmo à saída de Kinnakee e foi construída em 1997, depois de
mais uma leva de fusões de quintas. Kinnakee fica quase no centro do Kansas, não muito
longe da fronteira com o Nebrasca e, em tempos, autoproclamou-se o centro geográfico
dos quarenta e oito Estados Unidos contíguos. O coração da América. Foi uma história
levada muito a sério nos anos 80, quando todos éramos patrióticos. Outras cidades do
Kansas rivalizaram pelo título, mas os kinnakeenses ignoraram-nas, teimosamente,
orgulhosamente. Este era o único foco de interesse da cidade. A Câmara do Comércio
vendia posters e t-shirts com o nome da terra escrito em letras cursivas dentro de um
coração. Todos os anos, Diane comprava-nos uma t-shirt nova, por um lado, porque
gostávamos de tudo o que tivesse a forma de coração e, por outro, porque Kinnakee é
uma palavra índia antiga que significa «mulherzinha mágica». Diane sempre tentou
convencer-nos a sermos feministas. A minha mãe dizia, a brincar, que não se depilava
muito e que isso já era um começo. Não me lembro de ela o dizer, mas lembro-me de
Diane, corpulenta e furibunda, como andava sempre depois dos crimes, a fumar um cigarro
na rulote, a beber chá gelado por um copo de plástico com o nome dela escrito em letras
a imitar troncos, a contar-me a história.
Afinal, estávamos enganados. Lebanon, Kansas, é o centro oficial dos Estados Unidos.
Kinnakee partira de pressupostos errados.
Pensei que ia demorar meses a conseguir autorização para ver Ben, mas parece que o
Estabelecimento Prisional de Kinnakee Kansas é rápido a conceder passes de visita.
(«Acreditamos que a interação com a família e amigos é uma atividade benéfica para os
reclusos, ajudando a preservar as suas relações sociais e o contacto com a realidade
exterior.») Burocracias e tretas e, depois, passei os poucos dias de interregno a analisar
os ficheiros de Lyle, a ler a transcrição do julgamento de Ben, o que nunca tinha tido
coragem de fazer.
Fez-me suar. O meu testemunho era um labirinto de recordações infantis confusas
(Acho que o Ben trouxe uma bruxa para casa e ela matou-nos, disse eu, ao que o
advogado de acusação respondeu simplesmente: Mmmm, falemos agora do que realmente
aconteceu) e diálogo ensaiado (Vi o Ben quando estava parada à beira do quarto da minha
mãe, ele estava a ameaçar a mãe com a nossa caçadeira). Quanto ao advogado de defesa
de Ben, só lhe faltou embrulhar-me em papel de seda e pousar-me numa cama de penas,
de tão delicado que foi comigo (Não estará um pouquinho confusa em relação ao que viu,
Libby? Tem a certeza, a certeza absoluta, de que era o seu irmão, Libby? Não estará a
dizer-nos aquilo que acha que queremos ouvir? Ao que respondi: Não Sim Não). Ao fim do
dia, respondi a todas as perguntas com um Acho que sim, a minha maneira de dizer que já
chegava.
O advogado de defesa de Ben insistira naquela mancha de sangue na colcha da Michelle
e no misterioso sapato de cerimónia que deixara uma pegada no sangue da minha família,
mas não conseguiu apresentar uma teoria alternativa convincente. Talvez tivesse estado
mais alguém lá em casa, mas não havia pegadas nem marcas de pneus no exterior para o
provar. Na manhã do dia 3 de janeiro, a temperatura aumentou seis graus, derretendo a
neve e transformando todas as suas impressões numa lama primaveril.
Além do meu depoimento, Ben tinha contra ele: arranhões na cara que ele não foi
capaz de explicar, uma história sobre um homem cabeludo que, a princípio, ele disse que
tinha matado toda a gente — história essa que se apressou a substituir pela defesa
«passei a noite fora, não sei de nada» —, um grande tufo de cabelo de Michelle
encontrado no chão do quarto dele e o seu comportamento tresloucado naquele dia. Tinha
pintado o cabelo de preto, o que toda a gente considerou suspeito. Fora visto a andar pelos
corredores da escola «sorrateiramente», testemunharam vários professores. Perguntaramse
se ele teria ido buscar os restos de animais que guardava no cacifo (restos de
animais?) ou se estaria a recolher objetos pessoais de outros alunos para uma missa
satânica. Mais tarde, nesse mesmo dia, parece que foi a um antro qualquer da passa e se
vangloriou dos seus sacrifícios demoníacos.
Ben não fez nada para se ajudar a si próprio: não tinha álibi para os crimes; tinha uma
chave de casa, cuja porta não foi arrombada; tinha tido uma discussão com a minha mãe
nesse dia de manhã. E, além disso, fez uma figura de merda em tribunal. Quando os
advogados de acusação afirmaram que era um assassino adorador do Diabo, Ben
respondeu discutindo entusiasticamente os rituais de adoração do Diabo, em especial
canções que lhe lembravam o submundo e o grande poder do satanismo. (Incentiva-nos a
fazermos aquilo que nos apetece, porque no fundo somos todos animais.) A dada altura, o
advogado de acusação pediu a Ben para «parar de mexer no cabelo e assumir uma postura
séria, não percebe que isto é um assunto grave?».
«Percebo que, aos seus olhos, é grave», respondeu Ben.
Nem sequer parecia uma resposta do Ben de que eu me lembrava, o meu irmão
sossegado e metido consigo. Lyle incluíra umas quantas fotografias novas do julgamento:
Ben com o cabelo preto apanhado num rabo de cavalo (porque é que os advogados de
defesa não o obrigaram a cortá-lo?), enfiado num fato desalinhado, sempre com um
sorriso idiota ou completamente indiferente.
Portanto, Ben não mexeu uma palha a seu favor, mas a transcrição do julgamento fezme
corar. Ao mesmo tempo, aquilo tudo ajudou-me um bocadinho a sentir-me melhor. Se
Ben estava na cadeia, a culpa não era exclusivamente minha (se realmente ele era
inocente, se realmente o era). Não, toda a gente tinha tido um pouquinho de culpa.
Uma semana depois de ter aceitado visitar Ben, ali estava eu, a caminho. Ia ao volante
do carro, em direção à minha terra natal, onde não punha os pés há pelo menos doze anos,
a minha terra que se tornara uma cidade-prisão sem o meu aval. Aconteceu tudo tão
depressa que até fiquei enjoada. Só consegui meter-me no carro dizendo a mim mesma
sem parar que não ia propriamente a Kinnakee e que não ia descer aquela comprida
estrada de terra que me levaria a casa, não, isso não. Não que ainda fosse a minha casa:
alguém comprara a propriedade anos antes, demolira a casa por completo, destruindo
paredes que a minha mãe tinha embelezado com posters baratos de flores, partindo
janelas de encontro às quais nós respirávamos, enquanto esperávamos para ver quem é
que vinha a descer o caminho de acesso à casa, partindo a moldura da porta onde a minha
mãe tinha escrito a lápis as diferentes alturas de Ben e das minhas irmãs, mas não as
minhas, porque estava demasiado cansada para me medir (eu só tive direito a uma
marca: Libby 96 cm).
Fiz as três horas de caminho até ao Kansas, subindo e descendo os montes Flint,
depois atravessando as planícies, vendo placas a convidarem-me para visitar o Museu da
Greyhound, o Museu da Telefonia, o Maior Novelo de Guita. Uma vez mais, senti uma
pontada de lealdade: devia ir visitar tudo, nem que fosse para irritar os viajantes irónicos.
Saí finalmente da autoestrada, dirigindo-me para norte e oeste e norte e oeste em
estradas secundárias tipo puzzle, os terrenos agrícolas reduzidos a pintas verdes,
amarelas e castanhas, pontilhismo pastoral. Debrucei-me sobre o volante, a fazer zapping
no rádio, passando de canções country lamechas para rock cristão e ruído de estática. O
sol esforçado de março conseguiu aquecer o carro, pôs as minhas grotescas raízes ruivas
em chamas. O calor e a cor fez-me pensar novamente em sangue. No banco do
passageiro, estava uma minigarrafa de vodca que eu tencionava emborcar assim que
chegasse à prisão, uma dose automedicada de entorpecimento. Precisei de uma força de
vontade invulgar para não a despejar goela abaixo pelo caminho, com uma mão no volante
e a cabeça inclinada para trás.
Como um passe de magia, no instante em que pensei Estou quase a chegar, uma placa
minúscula apareceu no horizonte amplo e plano. Soube exatamente o que estaria escrito
nela: Bem-vindo a Kinnakee, o Coração da América! em letras cursivas dos anos 50. E
assim era, e consegui distinguir uma saraivada de buracos de bala no canto inferior
esquerdo, no sítio onde Runner a atingiu umas décadas atrás, ao passar de carrinha.
Depois, aproximei-me e percebi que os buracos de bala eram imaginação minha. Esta placa
era nova e estava intacta, mas as letras eram iguais às antigas: Bem-vindo a Kinnakee, o
Coração da América! Mantiveram a mentira, fizeram bem. Passei pela placa e surgiu
outra: Estabelecimento Prisional de Kinnakee Kansas, próxima à esquerda. Segui a
indicação, rumando para oeste em terras que em tempos pertenceram à quinta dos Evelee.
Aha, bem feito para vocês, Evelee, pensei, mas não me conseguia lembrar porque é que os
Evelee eram maus. Só me lembrava que eram.
Abrandei enquanto descia aquela estrada nova, nos confins da orla da povoação.
Kinnakee nunca tinha sido uma terra próspera, não passava de um aglomerado de quintas
em dificuldades e mansões otimistas de contraplacado derivadas de um boom petrolífero
escandalosamente curto. Agora era pior. A prisão não tinha salvado a terra. A rua estava
ladeada de lojas de penhores e casas decrépitas, ainda não tinham dez anos e já se
encontravam em mau estado. Vi crianças com ar atordoado paradas a meio de quintais
sujos. Havia montes de lixo em todos os cantos: embalagens de comida, palhinhas, pontas
de cigarro. Em cima de um passeio, alguém abandonara uma refeição inteira de takeaway:
caixa de esferovite, garfo de plástico, copo de esferovite. Na sarjeta, estava um punhado
de batatas fritas com ketchup. Até as árvores tinham um ar miserável: enfezadas,
mirradas e recusando-se teimosamente a florir. Ao fundo do quarteirão, um casal jovem e
mal-amanhado estava sentado ao frio, num banco da Dairy Queen, especado a olhar para o
trânsito como se estivesse a ver televisão.
Num poste telefónico ali perto, adejava uma fotocópia ampliada de uma adolescente
sisuda, desaparecida desde outubro de 2007. Mais dois quarteirões e uma folha que pensei
ser uma cópia do mesmo poster afinal era de outra miúda desaparecida, desta vez em
junho de 2008. Ambas as raparigas tinham um ar desleixado e mal-humorado, o que
explicava por que motivo não tinham direito ao tratamento que fora votado a Lisette
Stephens. Tomei nota mentalmente para tirar uma fotografia bonita e sorridente de mim
própria, na eventualidade de um dia eu desaparecer.
Mais uns minutos e a prisão surgiu no meio de uma grande clareira queimada pelo sol.
Era menos imponente do que eu imaginara, das poucas vezes em que tentara imaginá-
la. Tinha um ar de subúrbio em expansão, podia ser confundida com os escritórios
regionais de uma empresa de refrigeração, ou com a sede de uma empresa de
telecomunicações, não fosse o arame farpado que cercava os muros. Os rolos de arame
lembraram-me o fio do telefone sobre o qual Ben e a minha mãe andavam sempre a
discutir, o fio em que estávamos constantemente a tropeçar. Debby foi cremada com uma
pequena cicatriz em forma de explosão estelar no pulso por causa daquele maldito fio.
Tossi de propósito só para ouvir barulho.
Entrei no parque de estacionamento e o piso alcatroado e liso soube-me às mil
maravilhas depois de uma hora de estradas esburacadas. Estacionei e fiquei sentada,
especada a olhar, com o carro a balouçar por causa de tantas horas de trajeto. Do interior
dos muros chegava-me o murmúrio e os gritos de homens a apanharem ar no pátio. O
vodca desceu-me pela goela abaixo como um travo medicinal. Masquei um pedaço duro de
pastilha elástica de mentol, uma vez, duas vezes, depois cuspi-a para uma embalagem
vazia de sandes, sentindo as orelhas a aquecerem do álcool. A seguir, enfiei as mãos por
dentro da camisola e desapertei o sutiã, sentindo as mamas descaírem, grandes e moles,
ao som distante de assassinos a brincarem no pátio. Foi uma coisa que Lyle me
aconselhou, gaguejando e escolhendo as palavras a dedo: Só lhe dão uma oportunidade para
passar no detetor de metais. Não é como nos aeroportos, na prisão não têm aquela coisa
que parece uma varinha mágica. Por isso, deixe tudo o que for de metal no carro. Hum,
incluindo, hum, no caso das mulheres, ah, o, acho que têm arame por baixo? Os sutiãs?
Isso seria, poderia ser um problema.
Tudo bem. Enfiei o sutiã no porta-luvas e deixei as mamas balouçarem à solta.
Na prisão, os guardas eram todos muito educados, como se tivessem visto vários
vídeos pedagógicos sobre a delicadeza: sim, minha senhora, por aqui, minha senhora. A
maneira como olhavam para uma pessoa não tinha profundidade, a minha imagem fazia
ricochete neles e voltava para trás, eu que ficasse com a batata quente. Revista,
perguntas, sim minha senhora e uma longa espera. Portas abriram e fecharam, abriram e
fecharam, enquanto eu transpunha uma série delas, todas de tamanhos diferentes, como
um País das Maravilhas feito de metal. O chão fedia a lixívia e o ar cheirava a carne e a
humidade. Devíamos estar perto da cantina. Fui assolada por uma onda nauseada de
nostalgia, lembrando-me de mim e dos meus irmãos, os miúdos Day, e das nossas
refeições escolares subsidiadas pelo Estado: as mulheres de peito grande e cabelo húmido
do vapor da cozinha, a gritarem Almoço de graça! na direção da caixa registadora, quando
passávamos com um bocado de strogonoff e leite à temperatura ambiente.
Ben teve um bom sentido de oportunidade, pensei: a pena de morte no Kansas tinha
sido suspensa quando ocorreram os crimes (aqui, fiz uma pausa perante a minha
inquietante maneira nova de me exprimir: «quando ocorreram os crimes» em vez de
«quando Ben matou toda a gente»). Foi condenado a prisão perpétua. Pelo menos, não o
condenei à morte. Agora, estava parada à frente da porta lisa de metal, como a de um
submarino, da sala de visitas e o tempo a passar. «Não há nada a fazer senão fazê-lo, não
há nada a fazer senão fazê-lo.» O mantra de Diane. Tinha de parar de pensar em coisas
da família. O guarda que me acompanhou, um homem louro e hirto que me poupou a
conversa fiada, fez um gesto de faça favor.
Abri a porta e obriguei-me a entrar. Havia uma fila com cinco cubículos, um deles
ocupado por uma índia corpulenta a falar com o filho recluso. O cabelo preto da mulher
espetava-se-lhe nos ombros, com ar agressivo. Estava a murmurar monocordicamente
para o rapaz, que fazia espasmodicamente que sim com a cabeça, de telefone encostado
ao ouvido e olhos baixos.
Sentei-me duas cabinas mais à frente e estava a instalar-me, a inspirar fundo, quando
Ben entrou disparado porta adentro, como um gato a fugir para a rua. Era baixo, devia
medir 1,67 m, e o cabelo tinha adquirido um tom de ferrugem escura. Usava-o comprido, a
tocar nos ombros e enfiado menineiramente para trás das orelhas. Com uns óculos de
aros metálicos e um fato-macaco cor de laranja, parecia um mecânico diligente. A sala
era pequena, por isso ele chegou junto de mim em três passadas, sem parar de sorrir
discretamente. Um sorriso luminoso. Sentou-se, encostou uma mão ao vidro e fez-me
sinal com a cabeça para eu o imitar. Não consegui, não fui capaz de pressionar a palma da
minha mão de encontro à dele, húmida como um naco de fiambre. Em vez disso, dirigi-lhe
um sorriso tímido e peguei no telefone.
Do lado de lá do vidro, ele segurou no auscultador, pigarreou, depois baixou os olhos e
começou a dizer qualquer coisa, mas calou-se. Durante quase um minuto, a única coisa
que me deu a ver foi o cocuruto da cabeça. Quando a levantou, estava a chorar, duas
lágrimas corriam-lhe pelas faces abaixo. Enxugou-as com as costas da mão e sorriu, com
os lábios a tremerem.
— Meu Deus, estás igualzinha à mãe — disse ele abruptamente, deitando as palavras
cá para fora, e tossiu, limpou mais lágrimas. — Não sabia que eras assim. — Os olhos
dele saltitaram do meu rosto para as suas mãos. — Oh, meu Deus, Libby, como é que tu
estás?
Aclarei a garganta e disse:
— Estou bem. Achei que estava na hora de te vir visitar. — Por acaso, até acho que
sou parecida com a mãe, pensei. Sou mesmo. E depois pensei: o meu irmão mais velho, e
senti o mesmo orgulho no peito que sentia em miúda. Ele estava na mesma, o mesmo
rosto pálido, o mesmo nariz largo e arrebitado dos Day. Nem sequer tinha crescido muito
desde os crimes. Como se ambos tivéssemos ficado tolhidos naquela noite. O meu irmão
mais velho. E ele estava feliz por me ver. Ele sabe manipular-te, disse para mim própria, à
laia de aviso. A seguir, pus essa ideia de lado.
— Ainda bem, ainda bem — respondeu Ben, continuando de olhos postos na mão. —
Pensei muito em ti ao longo destes anos, a pensar no que seria feito de ti. É o que uma
pessoa faz aqui dentro... pensa e interroga-se. De vez em quando, recebo uma carta de
alguém a falar-me de ti, mas não é a mesma coisa.
— Pois não — concordei. — Tratam-te bem? — perguntei, estupidamente, de olhos
vítreos e, de repente, desatei a chorar e só me apetecia dizer desculpadesculpadesculpa.
Mas não disse nada, fiquei a olhar para uma constelação de acne que ele tinha à volta do
canto da boca.
— Estou bem, Libby. Libby, olha para mim. — Os meus olhos nos dele. — Estou bem. A
sério que estou. Acabei o liceu aqui dentro, o que provavelmente nunca teria feito lá fora,
e estou a tirar um curso universitário. Inglês. Ando a ler Shakespeare. — Fez o som
gutural que tentava fazer passar sempre por uma gargalhada. — Por Deus, macaquinho!
Não percebi o significado desta expressão, mas sorri, porque era o que ele esperava
que eu fizesse.
— Meu Deus, Libby, só me apetece olhar para ti. Não fazes ideia de como é bom verte.
Merda, desculpa. Estás mesmo parecida com a mãe, as pessoas não te dizem isso
constantemente?
— Quem? Não me dou com ninguém. O Runner foi-se embora, não sei para onde, a
Diane e eu não nos falamos. — Quis que ele tivesse pena de mim, que chapinhasse no
meu grande e vazio charco de piedade. Ali estávamos nós, os últimos Day. Se ele tivesse
pena de mim, teria mais dificuldade em recriminar-me. As lágrimas não paravam de me
vir aos olhos e acabei por deixá-las correr livremente. Duas cadeiras mais abaixo, a
mulher índia estava a despedir-se, desfeita num pranto que era tão grave como a voz.
— Quer dizer que estás completamente sozinha? Isso não é bom. Deviam ter tratado
melhor de ti.
— O que é que te aconteceu, algum renascimento espiritual? — disse eu, de supetão,
com o rosto molhado. Ben franziu o sobrolho, sem perceber. — Foi isso? Perdoas-me? Não
devias ser querido para mim. — Mas eu ansiava por isso, tinha urgência em sentir o alívio,
como quando pousamos um prato a escaldar.
— Não sou assim tão querido — disse ele. — Sinto muita raiva de muitas pessoas,
mas tu não és uma delas.
— Mas... — disse eu, e engoli um soluço como uma criança. — Mas o meu
testemunho... Eu acho que talvez tenha, não sei, não sei... — Só pode ter sido ele, lembrei
novamente a mim própria.
— Oh — disse ele, como se fosse um incómodo menor, um pequeno contratempo
numas férias de verão que mais valia esquecer. — Estou a ver que não lês as minhas
cartas, pois não?
Tentei explicar com um encolher de ombros inadequado.
— Bom, o teu testemunho... A única coisa que me espantou foi as pessoas terem
acreditado em ti. Não fiquei surpreendido com o que disseste. Estavas numa situação
completamente marada. E sempre foste uma mentirosazinha. — Ele riu-se outra vez e eu
imitei-o, gargalhadas rápidas e iguais, como se tivéssemos apanhado a mesma tosse. —
Não, agora a sério, o facto de eles terem acreditado em ti... Eles queriam-me aqui dentro,
iam meter-me aqui dentro, e o teu testemunho só lhes serviu de prova. Uma miúda de
sete anos. Meu Deus, eras tão pequenina... — Virou os olhos para a direita, perdido num
devaneio. Depois, recompôs-se. — Sabes do que me lembrei no outro dia, não sei porquê?
Lembrei-me do maldito coelho de porcelana, aquele que a mãe nos obrigava a pôr na
sanita.
Abanei a cabeça, sem fazer ideia do que ele estava a falar.
— Não te lembras disso, do coelhinho? Como a sanita estava meio estragada, se a
usássemos duas vezes no espaço de uma hora, a porcaria não escoava como devia. Por
isso, se um de nós cagasse quando o autoclismo não estava a funcionar, tinha de fechar o
tampo e pôr o coelhinho em cima, para que ninguém abrisse a sanita e visse o fundo cheio
de merda. Porque vocês desatavam aos gritos. Não acredito que não te lembres disso. Era
tão estúpido, deixava-me furioso. Furioso por ter de partilhar a casa de banho com vocês
todas, furioso por viver numa casa só com uma sanita que nem sequer funcionava bem,
furioso por causa do coelhinho. O coelhinho... — Ele soltou o seu riso contido. — Eu achava
o coelho, sei lá, humilhante. Como se me tirasse a virilidade. Aquilo para mim era uma
afronta pessoal. Achava que a mãe devia ter arranjado uma estatueta em forma de
automóvel ou de arma para eu usar. Deixava-me fulo da vida. Ficava parado a olhar para a
sanita, a pensar: «Recuso-me a pousar o raio do coelho no tampo» e, depois, quando já ia
a sair da casa de banho, pensava: «Foda-se, tenho de pôr o coelho, senão uma delas entra
aqui e desata aos gritos.» Vocês eram umas guinchonas, ainda por cima estridentes. E
como eu não queria ter de lidar convosco, punha a porra do coelho em cima da porra da
sanita. — Riu-se outra vez, mas a recordação afetou-o, ficou com o rosto corado e o nariz
suado. — É nesse tipo de coisa que uma pessoa pensa aqui dentro. Coisas estranhas.
Tentei desencantar o tal coelho na minha memória, tentei fazer o inventário da casa de
banho e das coisas dentro dela, mas não me consegui lembrar de nada, só uma mão-cheia
de água.
— Desculpa, Libby, é uma recordação estranha para eu atirar para cima de ti.
Aproximei a ponta de um dedo do fundo da janela de vidro e disse:
— Não faz mal.
Ficámos calados durante uns momentos, fingindo que estávamos a ouvir um barulho
que não existia. Ainda agora tínhamos começado, mas a visita já estava quase no fim.
— Ben, posso perguntar-te uma coisa?
— Acho que sim. — O rosto dele fechou-se, preparando-se para o que aí vinha.
— Não queres sair daqui?
— Claro que quero.
— Porque é que não dizes à polícia qual é o teu álibi para aquela noite? Não cabe na
cabeça de ninguém que tenhas dormido no celeiro.
— Porque não tenho um bom álibi, Libby. Pura e simplesmente, não tenho. Acontece.
— Porque estavam zero graus lá fora. Lembro-me muito bem. — Por baixo do balcão,
esfreguei o meu coto e mexi os dois dedos do pé direito.
— Eu sei, eu sei. Nem fazes ideia. — Virou o rosto. — Não fazes ideia das semanas,
anos, que passei aqui dentro a desejar ter feito tudo de maneira diferente. A mãe e a
Michelle e a Debby talvez não estivessem mortas, se eu tivesse... agido como um homem.
E não como um puto palerma. Escondido no celeiro, irritado com a mãe. — Uma lágrima
caiu no auscultador, fiquei com a sensação de a ter ouvido fazer ping! — Não faz mal
estar a ser castigado por aquela noite... sinto-me... bem com isso.
— Mas... não entendo. Porque é que foste tão pouco... prestável em relação à polícia?
Ben encolheu os ombros e, uma vez mais, o seu rosto tornou-se inexpressivo como
uma máscara fúnebre.
— Oh, sei lá. Eu era um puto tão inseguro. Fogo, Libby, eu tinha quinze anos. Quinze.
Não sabia o que era ser homem. O Runner não me ensinou nada. Eu era um puto para
quem ninguém olhava duas vezes e, de repente, as pessoas desataram a tratar-me como
se eu é que lhes metesse medo. De um instante para o outro, como que por magia, eu era
um homem importante.
— Um homem importante acusado de ter assassinado a família toda.
— Se me quiseres chamar estúpido, Libby, chama à vontade. Para mim, a coisa era
simples: eu disse que não era culpado, sabia que não era culpado e... não sei, chama-lhe
mecanismo de defesa?, mas não levei aquilo a sério como devia. Se tivesse reagido como
toda a gente esperava que eu reagisse, provavelmente não estaria aqui. À noite, chorava
desalmadamente com a cabeça na almofada, mas armava-me em durão à vista de toda a
gente. Lixei tudo, acredita que eu sei disso. Mas não se pode pôr um puto de quinze anos
no banco dos réus, num tribunal cheio de gente que ele conhece, e esperar um mar de
lágrimas. Eu pensava, como é óbvio, que ia ser ilibado e que depois toda a gente na escola
me ia admirar por ser um gajo mau. Até sonhava acordado com essa merda. Nunca me
passou pela cabeça que corria o risco de... de acabar assim. — Estava a chorar, agora, e
limpou novamente a bochecha. — Como vês, já não me importo que me vejam a chorar.
— Temos de remediar isto — disse eu, por fim.
— Não dá para remediar, Libby, a não ser que descubras quem foi o culpado.
— Precisas de novos advogados para tratarem do processo — raciocinei em voz alta.
— As coisas que eles conseguem fazer com o ADN, hoje em dia... — Para mim, o ADN era
uma espécie de coisa mágica, uma substância qualquer pegajosa e brilhante que estava
constantemente a tirar pessoas da cadeia.
Ben riu-se por entre os lábios cerrados, como fazia quando éramos miúdos, sem deixar
que desfrutássemos do riso.
— Pareces o Runner a falar — disse ele. — De dois em dois anos, recebo uma carta
dele: ADN! Precisamos de deitar a mão àquele ADN. Como se eu tivesse um cacifo cheio
de ADN, mas não o quisesse partilhar. A-D-N! — repetiu, imitando o aceno de cabeça de
Runner, de olhos tresloucados.
— Sabes onde está ele?
— A última carta trazia a morada do Asilo Masculino de Bert Nolan, algures em
Oklahoma. Ele pedia-me para lhe mandar quinhentos dólares, para poder continuar a fazer
investigações em meu nome. Seja quem for o tal Bert Nolan, já se deve ter arrependido do
dia em que deu guarida ao raio do Runner. — Coçou o braço, levantando a manga o
suficiente para que eu visse uma tatuagem com o nome de uma mulher. Terminava em
olly ou ally. Fiz questão de que ele me visse a olhar.
— Ah, isto? Uma velha paixão. Começámos por trocar cartas. Pensei que estava
apaixonado por ela, que me ia casar com ela, mas afinal ela não queria ficar presa a um
homem que estava condenado a prisão perpétua. Bem que me podia ter dito isso antes de
eu fazer a tatuagem.
— Deve ter doído.
— Nem cócegas fez.
— Eu estava a falar da rutura.
— Oh, foi uma merda.
O guarda fez-nos sinal a indicar que já só tínhamos três minutos e Ben revirou os
olhos:
— É difícil decidir o que dizer em três minutos. Em dois minutos, começa-se a fazer
planos para a próxima visita. Em cinco minutos, consegue-se acabar a conversa. Mas três
minutos? — Espetou os lábios para fora e fez um barulho de chupão. — Espero que me
venhas ver outra vez, Libby. Já não me lembrava das saudades que tinha de casa. Estás
igualzinha a ela.