quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Lugares Escuros


                                                               
Libby Day tinha apenas sete anos quando testemunhou o brutal assassinato da mãe e das duas irmãs na fazenda da família. O acusado do crime foi seu irmão mais velho, que acabou condenado à prisão perpétua. Desde aquele dia, Libby passou a viver sem rumo. Uma vida paralisada no tempo, sem amigos, família ou trabalho. Mas, vinte e quatro anos depois, quando é procurada por um grupo de pessoas convencidas da inocência de seu irmão, Libby começa a se fazer as perguntas que até então nunca ousara formular. Será que a voz que ouviu naquela noite era mesmo a do irmão? Ben era considerado um desajustado na pequena cidade em que viviam, mas ele seria mesmo capaz de matar? Existiria algum segredo por trás daqueles assassinatos? Gillian Flynn intercala a trajetória detetivesca de Libby com flashbacks dos acontecimentos do dia dos crimes com tanta habilidade que o leitor é levado a diferentes direções. Escrito com primor, Lugares escuros não só mostra como a memória é passível de falhas, mas também evidencia as mentiras que uma criança pode contar a si mesma para superar um trauma.

1 - LIBBY DAY TEMPO PRESENTE
2 - PATTY DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 8h02
3 - LIBBY DAY TEMPO PRESENTE
4 - BEN DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 9h13
5 - LIBBY DAY TEMPO PRESENTE
6 - PATTY DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 9h42
7 - LIBBY DAY TEMPO PRESENTE
8 - BEN DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 10h18
9 - LIBBY DAY TEMPO PRESENTE
10 - PATTY DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 11h31
11 - LIBBY DAY TEMPO PRESENTE
12 - BEN DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 12h51

BEN DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 12h51


Tirou um bocado de cartolina cor-de-rosa da caixa de Krissi, dobrou-o ao meio e
escreveu: «São as férias do Natal e estou a pensar em ti... adivinha quem é?» Com um B
no fundo da página. Ela ia adorar. Pensou em tirar qualquer coisa da caixa de Krissi e
transferi-la para a caixa de Libby, mas achou melhor não o fazer. Ia dar demasiado nas
vistas, Libby aparecer com uma coisa bonita. Perguntou-se até que ponto ele e as irmãs
seriam alvo de gozo na escola. As três miúdas partilhavam um armário e meio de roupa,
Michelle andava com as camisolas de lã velhas dele, Debby usava o que podia de Michelle
e Libby vestia o que sobrava: jeans azuis de rapaz remendados, camisolas de basebol
velhas e sujas, vestidos de malha baratos que a barriga de Debby alargara. Era essa a
diferença em relação a Krissi. Todas as roupas dela tinham estilo. As de Diondra também,
com os seus jeans perfeitos. Se Diondra usava jeans desbotados, era por estarem na
moda; se tivessem salpicos de lixívia, era por os ter comprado com salpicos de lixívia.
Diondra recebia uma mesada choruda, já o levara às compras algumas vezes, segurando
nas peças de encontro ao corpo dele como se Ben fosse uma criança, mandando-o sorrir.
Dizendo-lhe que ele era capaz e, depois, piscava o olho. Ele não sabia muito bem se um
rapaz devia deixar uma rapariga comprar-lhe roupa, não sabia se era fixe ou não. O senhor
O’Malley, o professor que fazia a chamada todas as manhãs, estava sempre a gozar com
as camisas novas que a mulher o obrigava a usar, mas o senhor O’Malley era casado. De
qualquer maneira, Diondra gostava que ele se vestisse de preto e Ben não tinha dinheiro
para comprar nada. A porra da Diondra arranjaria maneira de ter o que queria, como
sempre.
Essa era mais uma razão para ele gostar tanto de estar com Krissi: ela partia do
princípio de que ele era fixe só porque tinha quinze anos e, para ela, quinze anos parecia
uma idade extremamente adulta. Ela não era como Diondra, que gozava com ele em
momentos esquisitos. Ele perguntava-lhe: «Qual é a graça?» e ela ria-se de boca fechada
e disparava: «Nada. És giro.» A primeira vez que tentaram ter relações, ele atrapalhara-se
tanto com o preservativo que ela desatara a rir e ele perdera o tesão. Da segunda vez, ela
tirara-lhe o preservativo das mãos e lançara-o para a outra ponta do quarto, dizendo que
se lixe e enfiara-o dentro dela.
Ficou com tesão só de pensar nisso. Estava a pôr o bilhete na caixa de Krissi, com o
pau duro como o diabo, e eis que entrou a senhora Darksilver, a professora do segundo
ano.
— Olá, Ben, o que é que estás a fazer aqui? — sorriu ela. Levava uns jeans vestidos,
uma camisola de lã e uns mocassins, e avançou para ele com passinhos curtos, segurando
num placar de cortiça e num metro de fita axadrezada.
Ele virou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta que dava para o liceu.
— Oh, nada, vim só pôr uma coisa na caixa da minha irmã.
— Não fujas, vem dar-me um abraço, ao menos. Desde que és crescido e entraste para
o liceu, nunca te vejo.
Ela continuou a andar em direção a ele, com os mocassins a ressoarem no cimento e
aquele seu grande sorriso cor-de-rosa na cara e a franja cortada a direito. Quando era
miúdo, ele tinha tido uma paixoneta por ela, por aquela franja de cabelo preto tão direita.
Virou-lhe completamente as costas e tentou encaminhar-se, meio a coxear, para a porta,
com o pau espetado na perna das calças, mas, no instante em que se virou, teve
consciência de que ela tinha percebido o que se passava. O sorriso desapareceu-lhe dos
lábios e uma careta de nojo e constrangimento espalhou-se-lhe pela cara toda. Nem sequer
disse mais nada, foi por isso que ele percebeu que ela tinha visto. Ela estava a olhar para
a caixa que se encontrava mesmo à frente dele: a de Krissi Cates e não a da irmã.
Ben sentiu-se como um animal a fugir, coxo, um veado que tinha de ser abatido. Calate
e dispara. Às vezes, via imagens de armas, um cano de espingarda encostado à cabeça.
Num dos seus cadernos, tinha escrito uma frase de Nietzsche que encontrara enquanto
estava a folhear um livro de citações, um dia, à espera que os jogadores de futebol
saíssem do edifício para ele poder limpar:
A ideia do suicídio é uma grande consolação;
Ajuda a suportar muitas noites más.
Na verdade, Ben nunca se mataria. Não queria ser a aberração trágica que punha as
miúdas a chorar em direto nas notícias, embora elas nunca lhe dirigissem a palavra na
vida real. Não sabia porquê, mas isso parecia-lhe mais patético do que a sua vida já era.
Ainda assim, à noite, quando as coisas estavam mesmo mal e ele se sentia
completamente encurralado e sem tomates, era uma ideia reconfortante: ir ao armário
onde a mãe guardava as armas (código 5-12-69, o aniversário de casamento dos pais,
atualmente uma piada), sentir o peso agradável do metal nas mãos, enfiar umas balas na
câmara, uma coisa tão fácil de fazer como espremer pasta de dentes, encostar a arma à
cabeça e disparar de imediato. Era preciso disparar logo, com a arma encostada, o dedo no
gatilho, senão ainda se mudava de ideias. Tinha de ser de um gesto só e, depois, uma
pessoa caía no chão como roupa que escorrega de um cabide. Assim... zás. Caía redonda
no chão e, para variar, outra pessoa qualquer que resolvesse o problema.
Não planeava fazer nada disto, mas, quando precisava de descarregar e não conseguia
bater uma punheta, ou quando já tinha batido uma e continuava a precisar de descarregar,
era nisso que geralmente pensava. No chão, de lado, como se o seu corpo fosse uma pilha
de roupa suja à espera que alguém a apanhasse.
Saiu porta fora e ficou sem tesão, como se o facto de passar para o lado do liceu o
tivesse castrado. Pegou no balde, arrastou-o para o seu cubículo e lavou as mãos com
sabão e pedra-pomes.
Desceu as escadas em direção à porta dos fundos e um bando de finalistas passou por
ele a caminho do parque de estacionamento. Sentia o escalpe quente por baixo do cabelo
preto e pôs-se a imaginar o que eles estariam a pensar — aberração, exatamente como o
treinador —, mas não disseram nada, na verdade nem sequer olharam para ele. Trinta
segundos depois de passarem, Ben abriu as portas com estrondo, vendo o sol incidir na
neve ofuscante. Se aquilo fosse um vídeo, agora entrava o solo de guitarra, o tremolo...
Buiiiirrrr!
Lá fora, os tipos enfiaram-se numa carrinha e foram-se embora, a exibirem-se aos
ziguezagues até ao fundo do parque de estacionamento. Ben tirou o cadeado da bicicleta,
com a cabeça a latejar, e uma gota de sangue caiu em cima do guiador. Esfregou-a com a
ponta de um dedo, passou-a pela ferida da testa e, sem pensar, levou o dedo à boca, como
se fosse um bocado esquecido de doce.
Precisava de descarregar. Cerveja e eventualmente um charro, descontrair-se um
bocado. O único sítio onde podia tentar fazê-lo era em casa de Trey. Na realidade, a casa
não era de Trey, Trey nunca disse onde é que vivia, mas, quando Trey não estava em casa
de Diondra, estava quase sempre no Complexo, ao fundo de uma comprida estrada de
terra batida que partia da Autoestrada 41, ladeada de laranjeiras-de-osage e, a seguir,
havia uma grande clareira desbastada, com um armazém feito de um material qualquer
duro, tipo lata. Aquilo tudo chocalhava em dias de vento. No inverno, um gerador zumbia lá
dentro, fornecendo eletricidade suficiente só para ligar uns aquecedores e uma televisão
com má receção. Espalhados pelo chão de terra estavam dúzias de amostras de alcatifa
em coloridos retalhos malcheirosos e uns quantos sofás velhos e feios que tinham sido
dados. As pessoas sentavam-se a fumar à volta dos aquecedores como se fossem
fogueiras. Toda a gente tinha cerveja — deixavam as latas na geada, do lado de fora da
porta — e toda a gente tinha charros. Geralmente, a dada altura, alguém ia à loja de
conveniência e, quem quer que fosse, voltava com umas dúzias de burritos, alguns
aquecidos no micro-ondas, outros ainda congelados. Se houvesse burritos a mais,
enfiavam-nos na neve ao lado da cerveja.
Ben nunca lá tinha ido sem Diondra, era o grupo dela, mas para onde é que havia de ir,
se não para lá? Aparecer no Complexo com a cabeça partida de certeza que lhe daria
direito a um aceno de cabeça relutante e a uma lata de Beast. Podiam não ser simpáticos
— Trey nunca era propriamente simpático —, mas não fazia parte do código de conduta
deles mandar alguém embora. Ben de certeza que era o mais novo, embora já lá tivesse
visto um miúdo mais novo do que ele: uma vez, um casal aparecera com um puto
pequeno, todo nu, só de jeans. Enquanto toda a gente apanhava uma moca, o miúdo ficara
sentado no sofá, sem fazer barulho, a chupar no dedo, de olhos postos em Ben. A maior
parte das pessoas, no entanto, tinha uns vinte, vinte e um, vinte e dois anos, aquela idade
em que deviam ter ido para a faculdade se não tivessem desistido do liceu. Ben ia lá dar
um salto e podia ser que gostassem dele e, assim, Diondra parava de lhe chamar
Emplastro sempre que o levava lá. Pelo menos, deixavam-no sentar-se a um canto e beber
cerveja durante umas horas.
Talvez fosse mais inteligente ir para casa, mas que se fodesse.
Quando Ben finalmente chegou ao armazém, as paredes de lata chocalhavam, vibrando
ao som de um solo improvisado de guitarra. Às vezes, os tipos levavam amplificadores e
treinavam o tremolo até furarem os tímpanos de toda a gente. Quem quer que estivesse a
tocar era muito bom: uma música qualquer dos Venom, perfeita para o estado de espírito
dele. Ramadamdamram! Era o barulho de cavaleiros a aproximarem-se, saqueadores e
incendiários. O barulho do caos.
Deixou a bicicleta cair na neve e esticou as mãos, estalou o pescoço. Doía-lhe a
cabeça, uma espécie de dor vibrante, mais difícil de ignorar do que uma simples moinha.
Estava esganado de fome. Tinha andado para cima e para baixo na autoestrada, a tentar
convencer-se a seguir o desvio para o armazém. Precisava de arranjar uma boa história
para justificar o corte na cara, uma coisa que não desse azo a merdas do estilo ohhhh, o
bebé caiu da bicicleta. Desejou que Diondra ou Trey aparecessem de carro mesmo a
tempo de o acompanhar até lá dentro, tudo na boa, só sorrisos e álcool a toda a volta
quando ele entrasse.
Mas, não, ia ter de entrar sozinho. Conseguia ver tudo à sua volta num raio de
quilómetros de neve e não havia um único carro à vista. Puxou a coberta de lona para
cima com a bota e entrou no armazém, sentindo a guitarra ressoar nas paredes como um
animal encurralado. Ben conhecia de vista o tipo que estava a tocar. Dizia que tinha sido
roadie dos Van Halen, mas nunca entrava em pormenores sobre como era a vida na
estrada com uma banda rock. Olhou para Ben de relance, mas nem o viu, o seu olhar
estava concentrado num público imaginário. Quatro rapazes e uma rapariga, todos de
carapinha, todos mais velhos, partilhavam um charro, espalhados pelos quadrados de
alcatifa. Mal olharam para ele. O tipo mais feio tinha as mãos nas ancas da rapariga, que
estava estendida sobre ele como um gato. Ela tinha o nariz atrofiado e a cara vermelha de
pústulas de acne e parecia completamente pedrada.
Ben atravessou o armazém — havia um espaço vazio enorme entre a porta e os
quadrados de alcatifa — e sentou-se num retalho fino de alcatifa verde, a um metro e
pouco do grupo, olhando para eles pelo canto do olho para os poder cumprimentar com um
aceno de cabeça. Ninguém estava a comer, não havia comida para cravar. Se fosse Trey,
teria feito um aceno de cabeça na direção deles e dito «Arranjem-me um, ‘tá?», e pelo
menos estaria a fumar com eles.
O guitarrista, Alex, por acaso até era bastante bom. Outra coisa que Ben queria ter era
uma Floyd Rose Tremolo. Tinha dedilhado uma em Kansas City, quando ele e Diondra
foram a uma loja de guitarras, e a sensação tinha sido fixe, uma coisa que provavelmente
ele podia aprender a fazer bem. Pelo menos, aprender o suficiente para tocar umas
canções baris, para voltar ao armazém e fazê-lo estremecer. Toda a gente que ele
conhecia tinha jeito para qualquer coisa, nem que fosse para gastar dinheiro, como
Diondra. Sempre que ele lhe falava em coisas que queria aprender, coisas que queria fazer,
ela ria-se e dizia que aquilo de que ele precisava era de um salário decente.
«As compras de supermercado são caras, a eletricidade é cara, tu não entendes», dizia
ela. Era verdade que Diondra pagava muitas das contas da casa, uma vez que os pais
estavam sempre fora, mas pagava-as com a porra do dinheiro dos pais. Ben não estava
convencido de que ser capaz de passar um cheque fosse uma coisa assim tão
extraordinária como isso. Perguntou-se que horas seriam e pensou que devia era ter ido
para casa dela e esperado que ela chegasse. Agora, ia ter de ficar ali uma hora ou mais,
para não pensarem que se ia embora só porque ninguém tinha falado com ele. Ainda tinha
as calças molhadas da água do balde e sentia o cheiro a atum rançoso no peito da camisa.
— Ei — disse a rapariga. — Ei, puto.
Ele levantou os olhos para ela e o cabelo preto caiu-lhe para um dos olhos.
— Não devias estar na escola? — disse ela, soltando as palavras aos grumos, pedrada.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou de férias.
— Ele diz que está de férias — disse ela ao namorado. O tipo, mal-amanhado e de cara
chupada, com um contorno de bigode, levantou a cabeça.
— Conheces alguém aqui? — perguntou o namorado.
Ben apontou para Alex.
— Conheço-o a ele.
— Ei, Alex, conheces este puto?
Alex parou de tocar, fincou as pernas no chão, abertas numa pose de roqueiro, e olhou
para Ben, encolhido no chão. Abanou a cabeça.
— Não, meu, não me dou com putos de liceu.
Este era o tipo de merda que ele tinha de ouvir sempre no armazém. Ben pensava que
o cabelo preto ajudaria, lhe daria um ar mais velho, mas os tipos adoravam gozar com ele
ou ignorá-lo. Devia ser qualquer coisa na sua estrutura física, ou na maneira de andar, ou
qualquer coisa que lhe estava no sangue. Ele era sempre a quarta ou quinta escolha em
qualquer jogo de equipa: o miúdo de quem se lembravam à última hora, antes dos
verdadeiros nabos. Os rapazes apercebiam-se disso à primeira vista; estavam
constantemente a atirar-se a Diondra à frente dele. Como se soubessem que a pila dele
murchava um bocado sempre que entrava numa sala. Pois que se fodessem, estava farto
disso.
— Vai levar no cu — murmurou Ben.
— Ohhhhh! O puto está chateado!
— Parece que andou à pancada — comentou a rapariga.
— Ei, meu, andaste à pancada? — A música tinha parado por completo. Alex encostara
a guitarra a uma parede gelada e estava a fumar ao pé dos outros, com um sorriso na
cara e a abanar a cabeça para cima e para baixo. As vozes deles embateram no teto e
troaram como fogo de artifício.
Ben fez um aceno de cabeça.
— Foi? Com quem?
— Ninguém que tu conheças.
— Oh, eu conheço toda a gente. Diz lá, a ver se eu conheço ou não. Quem foi, o teu
maninho mais pequeno? Levaste uma coça do maninho?
— O Trey Teepano.
— Estás a mentir — ripostou Alex. — O Trey dava-te uma coça dos diabos.
— Andaste à pancada com aquele cabrão índio? O Trey não é meio índio? — disse o
namorado, ignorando Alex.
— Que merda tem isso a ver com o caso, Mike? — perguntou um dos amigos. Aspirou
um bocado de erva usando uma pinça de cabelo e a pena rosa-vivo adejou ao frio. A
rapariga acabou o charro, apagou-o e voltou a enfiar a pinça no cabelo. Um caracol fininho
ficou espetado.
— Ouvi dizer que o gajo anda metido numas merdas bué de assustadoras — disse
Mike. — Merdas à séria, satânicas.
Aos olhos de Ben, Trey era um exibicionista. Falava em encontros especiais à meianoite
em Wichita, onde se derramava sangue em diferentes rituais. Tinha aparecido uma
noite em casa de Diondra, em outubro, passado com metanfetaminas, sem camisa e sujo
de sangue. A jurar que ele e uns amigos tinham matado umas reses nos arredores de
Lawrence. Disse que pensaram em ir ao campus universitário raptar um estudante
qualquer para o sacrificar também, mas em vez disso tinham apanhado uma moca das
grandes. Talvez essa fosse verdade, porque, no dia seguinte, a notícia estava em todo o
lado: quatro vacas mortas a golpe de machete e as entranhas tinham desaparecido. Ben
vira as fotografias: todas elas deitadas de lado, uns corpos grandes e reboludos, com
umas patas escanzeladas. Era muito difícil matar uma vaca, não era à toa que davam uma
pele de tão boa qualidade. Claro está que Trey treinava musculação umas horas por dia,
Ben já o vira a malhar no ferro e a espremer-se todo e a soltar pragas. Trey era um
monte de músculos bronzeado e gingão, e provavelmente conseguia matar uma vaca com
um machete, e provavelmente era suficientemente louco para o fazer por puro gozo. Mas
quanto à parte dos rituais satânicos? Ben achava que o Diabo estaria interessado em
coisas mais úteis do que entranhas de vaca. Ouro. Ou quem sabe um puto. Para mostrar
lealdade, como quando os gangues obrigam um tipo novo a dar um tiro em alguém.
— E anda — disse Ben. — Andamos. Fazemos umas merdas muita sinistras.
— Não acabaste de dizer que andaste à pancada com ele? — disse Mike e, finalmente,
finalmente!, levou a mão a uma geladeira de esferovite e deu uma Olympia Gold gelada a
Ben. Ben bebeu-a de um trago, estendeu a mão para receber outra e ficou surpreendido
quando Mike lhe deu uma segunda cerveja em vez de o brindar com um monte de merdas.
— Andamos à pancada. Quando fazemos as merdas que fazemos, é claro que
acabamos à pancada. — Isto parecia tão vago como as histórias de roadie que Alex
contava.
— Foste um dos tipos que matou as vacas? — perguntou a rapariga.
Ben fez que sim com a cabeça.
— Tivemos de as matar. Foi uma ordem.
— Estranha ordem, meu — disse o tipo mais calado, que estava a um canto. —
Mataram o meu hambúrguer.
Riram-se, toda a gente se riu, e Ben tentou pôr um ar discreto mas duro. Abanou a
cabeça para o cabelo lhe cair para os olhos e sentiu a cerveja arrepiá-lo. Duas cervejas
rápidas num estômago vazio e ficou zonzo, mas não queria dar parte de fraco.
— Porque é que mataram as vacas? — perguntou a rapariga.
— Sabe bem, satisfaz uns quantos requisitos. Não se pode entrar simplesmente para o
clube, é preciso fazer umas coisas.
Ben já tinha ido caçar montes de vezes, o pai levara-o uma vez e depois a mãe fizera
questão de o levar sempre com ela. Para criarem laços entre eles. Ela não percebeu como
era embaraçoso para Ben ir caçar com a mãe. Mas foi a mãe que fez dele um bom
atirador, ensinou-o a lidar com o coice, quando premir o gatilho, como esperar e ser
paciente durante horas no mato. Ben já abatera dúzias de animais a tiro, desde coelhos
até veados.
De repente, lembrou-se de ratos. Um dia, o gato da mãe desenterrara um ninho e
engolira dois ou três ratitos recém-nascidos e viscosos e depois despejara a restante meia
dúzia nos degraus dos fundos da casa. Runner tinha acabado de se ir embora — pela
segunda vez —, por isso coube a Ben acabar com o sofrimento deles. Estavam a
contorcer-se silenciosamente, como enguias cor-de-rosa, com os olhos ainda fechados
com secreções e, quando ele voltara para junto deles, depois de ir a correr duas vezes ao
celeiro a tentar decidir o que fazer, já eles estavam cobertos de formigas. Acabara por
pegar numa pá e esmagá-los, saltaram-lhe bocados de carne para os braços, e a cada
pazada sentia-se mais irritado e furioso. Achas que sou um mariquinhas, Runner, achas
que sou um mariquinhas! Quando acabou, só restava uma mancha pegajosa no chão.
Estava suado e, ao levantar os olhos, viu que a mãe o observava por trás da porta de rede.
Passara o jantar muito calada, nessa noite, a olhar para ele com uma cara preocupada, os
olhos tristes. Teve vontade de se virar para ela e dizer: Às vezes, sabe bem lixar qualquer
coisa. Em vez de estarem sempre a lixar-nos a nós.
— Que coisas? — insistiu a rapariga.
— Coisas do tipo... olha, às vezes tem de haver mortes. Temos de matar qualquer
coisa. Assim como Jesus precisa de sacrifícios, Satanás também precisa.
Disse a palavra Satanás como se fosse o nome de um gajo qualquer. Não lhe pareceu
uma treta e não teve medo. Pareceu-lhe normal, como se soubesse mesmo do que estava
a falar. Satanás. Quase o conseguia imaginar ali, um tipo de rosto comprido e chifres, com
uns olhos de bode arregalados.
— Acreditas mesmo nessa merda... como é que te chamas, diz lá outra vez?
— Ben. Day.
— Ben Gay?
— Pois, nunca tinha ouvido essa. — Ben tirou outra cerveja da geladeira sem pedir
licença, aproximara-se uns palmos desde que tinham começado a falar e, à medida que o
álcool o descontraía, tudo o que dizia, todas as merdas que lhe saíam pela boca fora
pareciam incontestáveis. Podia tornar-se um tipo incontestável, estava a ver que podia,
mesmo depois daquela última piada, o próprio gajo que a mandou percebeu que a piada ia
passar ao largo de Ben e cair em saco roto.
Acenderam mais um charro, a rapariga tirou outra vez a pinça do cabelo e a madeixa
pateta e simpática voltou ao lugar e ela perdeu o ar giro sem o caracol espetado. Ben
inspirou fundo, inalou uma quantidade grande, mas — não tussas, não tussas — não foi o
suficiente, por isso ficou com uma impressão na garganta. Aquela merda era erva de beira
da estrada, daquelas que davam uma pedrada das más. Um gajo ficava paranoico e
falador, em vez de descontraído. Ben tinha a teoria de que todos os desperdícios químicos
de todas as quintas se entranhavam no solo e eram sugados por aquelas plantas vorazes e
beras. Infetava-as: todos aqueles pesticidas e fertilizantes verdes berrantes estavam a
instalar-se nos sulcos dos seus pulmões e no seu cérebro.
A rapariga tinha os olhos postos nele, com aquele ar atordoado com que Debby ficava
depois de ver demasiada televisão, como se precisasse de dizer alguma coisa mas
estivesse demasiado preguiçosa para abrir a boca. Ben tinha fome.
O Diabo nunca tem fome. Foi isso que ele pensou naquela altura, assim, sem mais
nem menos, as palavras surgiram-lhe no cérebro como uma prece.
Alex estava a dedilhar a guitarra outra vez, Van Halen, AC/DC, uma música dos Beatles
e, de repente, pôs-se a tocar «O Little Town of Bethlehem», e as cordas aos saltos
aumentaram ainda mais as dores de cabeça de Ben.
— Ei, músicas de Natal, não, o Ben não gosta disso — gritou Mike.
— Foda-se, ele está a sangrar! — exclamou a rapariga.
O corte na testa reabrira e o sangue escorria-lhe agora abundantemente pela cara e
pingava para as calças. A rapariga tentou dar-lhe um guardanapo de papel, mas ele fez que
não com a mão e espalhou o sangue pelo rosto como se fosse uma pintura de guerra.
Alex parara de tocar e ficaram todos especados a olhar para Ben, com sorrisos
constrangidos e os ombros tensos, ligeiramente afastados dele. Mike estendeu-lhe o charro
como se fosse uma oferenda, com as pontas dos dedos para evitar tocar-lhe. Ben não
queria o charro, mas voltou a inspirar fundo e o fumo acre queimou-lhe ainda mais tecido
dos pulmões.
Foi então que a porta de lona se agitou e Trey entrou no armazém. Cruzou os braços,
fincou os pés no chão numa pose descontraída e, varrendo o espaço com os olhos, atirou a
cabeça para trás como se Ben fosse um peixe podre.
— O que é que estás aqui a fazer? A Diondra está cá?
— Está em Salina. Passei por cá só para fazer tempo. Eles estiveram a distrair-me.
— Ouvimos dizer que andaste à pancada — disse a rapariga, desfeita em sorrisos de
esguelha, os lábios como finos crescentes. — E que te meteste numas coisas beras.
Trey, com o seu cabelo preto comprido e escorrido e a cara angulosa, era
imperscrutável. Olhou para o grupo sentado no chão e para Ben agachado junto deles, e
por uma vez na vida pareceu à toa, sem saber como lidar com a situação.
— Pois, o que é que ele esteve para aqui a contar? — Manteve os olhos postos em Ben
e tirou uma cerveja das mãos da rapariga sem sequer olhar para ela. Ben perguntou-se se
eles já teriam ido para a cama um com o outro, porque Trey tinha o mesmo ar de desdém
com que Ben o vira uma vez olhar para uma ex-namorada: Não estou irritado nem triste
nem feliz por te ver. Estou-me a cagar. Não me aqueces nem arrefeces.
— Umas merdas sobre o Diabo e as coisas que vocês fazem para... o ajudar — disse
ela.
Trey abriu a cara num sorriso e sentou-se à frente de Ben. Ben evitou olhar para ele.
— Ei, Trey? — disse Alex. — És índio, não és?
— Sou, queres que te arranque o escalpe?
— Mas não és cem por cento índio, pois não? — disse a rapariga abruptamente.
— A minha mãe é branca. Não saio com miúdas índias.
— Porquê? — perguntou ela, enfiando e tirando a pinça do cabelo, emaranhando os
dentes de metal nos caracóis.
— Porque Satanás gosta de coninhas brancas. — Sorriu e inclinou a cabeça, fitando-a, e
ela começou a rir-se, mas, como ele não mudou de expressão, ela calou-se e o namorado
feio voltou a pôr o braço na anca dela.
Tinham gostado do paleio de Ben, mas Trey metia mais medo. Ele sentou-se quase de
pernas cruzadas, olhando para eles de uma maneira que parecia simpática à superfície,
mas na verdade não possuía um pingo de simpatia. E embora ele tivesse o corpo numa
posição descontraída, tinha os braços e as pernas dobrados em ângulos pronunciados e
tensos. Havia qualquer coisa profundamente antipática nele. Ninguém se ofereceu para
voltar a passar o charro.
Ficaram sentados em silêncio durante uns minutos, a disposição de Trey deixando-os a
todos enervados. Geralmente ele era um bebedolas de cerveja, barulhento, armado em
esperto e sempre pronto para andar à pancada, mas, quando se irritava, era como se
tivesse centenas de dedos invisíveis e insistentes que empurravam os ombros de toda a
gente para baixo. Enterrava toda a gente.
— Então, vamos? — perguntou ele, de repente, a Ben. — Trouxe a minha carrinha e
tenho as chaves de casa da Diondra. Podemos ir para casa dela até ela voltar, tem
televisão por cabo. É melhor do que ficar aqui nesta espelunca gelada.
 Ben fez que sim com a cabeça, disse adeus, nervoso, ao grupo e foi atrás de Trey, que
já estava lá fora a atirar a cerveja para a neve. Ben estava decididamente pedrado. As
palavras engrumavam-se-lhe na garganta e, quando entrou na carrinha, tentou gaguejar
uma desculpa qualquer a Trey. Trey que acabara de lhe salvar a pele, por uma razão
qualquer que ele não sabia qual era. Porque é que ele é que tinha as chaves de casa de
Diondra? Provavelmente porque lhas pedira. Ben não insistira para que ela lhas desse.
— Espero que estejas pronto para dar provas daquelas merdas que disseste lá dentro
— avisou Trey, metendo a marcha-atrás. A carrinha GMC era um tanque e Trey conduziu-a
em cheio através do terreno da quinta, passando por cima de hastes de milho e valas de
irrigação, obrigando Ben a agarrar-se ao apoio de braços para não trincar a língua. Trey
lançou uma olhadela às mãos de Ben, fincadas com força no apoio.
— Sim, claro.
— Talvez hoje à noite te tornes um homem. Talvez.
Trey ligou o leitor de cassetes. Iron Maiden, a meio de uma canção, fogo, meu, claro
que sim, as palavras sibilando aos ouvidos de Ben: 666... Satanás... Sacrifício...
Ben revolveu a música na cabeça, com o cérebro a fervilhar, sentindo uma raiva
frenética, como sentia sempre que ouvia heavy metal, o dedilhar constante da guitarra,
sem nunca abrandar, deixando-o cada vez mais tenso, com a cabeça aos embates, a
bateria a subir-lhe pela espinha acima, a música toda um frenesim de raiva que não o
deixava pensar com calma, mantendo-o num transe cerrado. Tinha a sensação de que todo
o seu corpo era um punho fechado com força, pronto para soltar um murro.

LIBBY DAY TEMPO PRESENTE


Sonhadora como uma miúda pequena, fui para casa de carro a pensar em Ben. Desde
os sete anos de idade que me lembrava dele em imagens fugazes de casa assombrada:
Ben, de cabelo preto, rosto macio, com as mãos fincadas num machado, a precipitar-se
pelo corredor fora contra Debby, emitindo um zumbido por entre os lábios cerrados. O
rosto de Ben salpicado de sangue, aos uivos, a espingarda pousada no ombro.
Esquecera-me do Ben que existira em tempos, tímido e sério, com aquelas suas
estranhas e inquietantes explosões de mau humor. Simplesmente o Ben, meu irmão, que
nunca teria sido capaz de fazer o que disseram que fez. O que eu disse que ele fez.
Num semáforo, com o sangue a ferver, levei a mão atrás do banco e peguei no
envelope que tinha uma fatura antiga. Por cima da janela de plástico, escrevi: Suspeitos,
Depois escrevi: Runner. Depois parei. Alguém que tivesse alguma coisa contra o Runner?
Escrevi. Alguém a quem o Runner devesse dinheiro? Runnerrunnerrunner. Tudo remetia
para Runner. Aquela voz masculina, aos gritos em nossa casa naquela noite, podia ter sido
Runner ou um inimigo de Runner, da mesma maneira que podia ter sido Ben. Eu precisava
que isto fosse verdade, e comprovável. Fui assolada por uma rajada de pânico: não posso
viver com isto, com Ben preso, com esta culpa em aberto. Precisava que isto acabasse.
Precisava de saber. Eu, eu, eu. Continuava previsivelmente egoísta.
Quando passei pelo cruzamento que dava para a nossa quinta, recusei-me a olhar para
lá.
Parei numa loja de conveniência nos arredores de Kansas City, enchi o depósito,
comprei uma barra de queijo processado Velveeta, uma Coca-Cola, pão branco e comida
para o meu velho gato esfaimado. Depois, dirigi-me para minha casa no Meio de Nenhures,
subi a encosta, saí do carro e cravei os olhos nas duas velhas do outro lado da rua que se
recusavam a olhar para mim. Estavam sentadas na cadeira de baloiço do alpendre, como
sempre, apesar do frio, com as cabeças muito direitas e hirtas, não fosse eu estragar-lhes
a vista. Fiquei de pé, com as mãos nas ancas, no cimo da minha colina, e esperei até que
uma delas cedeu finalmente. Depois, fiz um aceno majestoso, uma espécie de aceno do
Faroeste. A velhota enrugada fez-me um aceno de cabeça e eu entrei em casa e dei de
comer ao coitado do Buck, sentindo uma onda de triunfo.
Enquanto ainda tinha forças, barrei uma fatia de pão branco com mostarda amarelovivo,
empilhei pedaços grossos e macios de Velveeta e engoli a sanduíche, enquanto pedia
a três telefonistas diferentes, todas elas entediadas, para ligarem para o Asilo Masculino
de Bert Nolan. É mais uma hipótese a acrescentar à minha lista de potenciais empregos
para dar ao velho Jim Jeffreys: telefonista. Quando era miúda, esse era um dos empregos
que as meninas queriam ter quando fossem crescidas, telefonista, mas não me lembrava
porquê.
Com uma fina camada de pão colada ao céu da boca, fui finalmente atendida por uma
voz no Asilo de Bert Nolan e fiquei surpreendida ao saber que era o próprio Bert Nolan ao
telefone. Partira do princípio de que qualquer pessoa que tivesse um abrigo com o seu
nome já teria morrido. Disse-lhe que precisava de falar com Runner Day e ele fez uma
pausa.
— Bom, ele nunca cá está a tempo inteiro, no passado mês esteve mais tempo fora do
que cá, mas eu dou-lhe o recado — respondeu Bert Nolan, numa voz que parecia uma
velha buzina de automóvel. Dei-lhe o meu nome, sem qualquer sinal de reconhecimento da
parte dele, e comecei a indicar o meu número de telefone quando Nolan me interrompeu.
— Oh, ele não vai poder fazer telefonemas interurbanos, aviso-a já. Os homens que
aqui estão costumam ser grandes correspondentes, mas por carta, entende? Um selo não
chega a cinquenta cêntimos e uma pessoa não tem de fazer fila para usar o telefone.
Quer deixar a sua morada?
Não, não queria. Estremeci só de pensar em Runner a subir os meus degraus da
entrada com as suas botas demasiado pesadas, as mãos gordurosas na cinturinha,
sorrindo como se me tivesse derrotado num jogo qualquer.
— Se quiser, posso anotar o recado e a menina dá-me a sua morada em privado —
sugeriu Bert Nolan, sensatamente. — E quando o Runner me der uma carta para si, eu
ponho-a no correio e ele nem sequer fica a saber o seu código postal. Há muitos
familiares que optam por esta solução. É uma coisa triste, mas necessária. — Ao fundo,
ouvi uma máquina de refrigerantes a chocalhar e a despejar uma garrafa, alguém a
perguntar a Nolan se ele também queria uma e ele a responder: Não, obrigado, estou a
tentar reduzir, numa voz simpática de médico de província. — Quer fazer isso, menina?
Caso contrário, será difícil contactá-lo. Como eu disse, ele não é do tipo de ficar sentado
ao lado do telefone à espera que lhe liguem.
— E não há um e-mail para onde eu possa escrever?
Bert Nolan soltou um resmungo.
— Não, infelizmente não há nenhum e-mail.
Nunca pensei que Runner fosse propriamente fã de escrever cartas, mas é verdade que
ele sempre mantivera contacto mais por correio do que por telefone, por isso achei que
essa seria a melhor solução; fora isso, só mesmo ir de carro até Oklahoma e deitar-me
num dos beliches de Bert Nolan à espera de Runner.
— Importa-se de lhe dizer que preciso de falar com ele sobre o Ben e aquela noite?
Posso ir aí visitá-lo, se ele marcar um dia.
— Está bem... disse: o Ben e aquela noite?
— Sim, foi isso mesmo.
Sabia que Lyle ia ficar muito convencido por causa da minha mudança de opinião — ou
melhor, da minha potencial e semipossível mudança de opinião — sobre Ben. Já o estava a
ver a falar com os tipos do Kill Club, vestido com um dos seus estranhos casacos justos,
a explicar-lhes que me tinha convencido a ir visitar Ben. «No princípio, ela não queria ir,
acho que tinha medo do que poderia descobrir sobre o Ben... e sobre si própria.» E aquelas
caras todas a olharem para ele, admirativas, tão contentes com o que ele tinha feito. Isso
irritou-me.
Com quem eu queria falar era com a tia Diane. Diane que tomara conta de mim
durante sete dos meus onze anos, enquanto eu era uma órfã menor de idade. Foi ela a
primeira pessoa que me recolheu, enfiando-me na sua rulote com a minha mala de
pertences. Roupas, livro preferido, mas nada de brinquedos. Michelle arrebanhava todas as
bonecas à noite, dizia que era uma festa de pijama, e fez chichi para cima delas quando
foi estrangulada. Ainda me lembro de um livro de autocolantes que Diane nos deu no dia
dos crimes — flores, unicórnios e gatinhos — e sempre me perguntei se estaria naquela
pilha de destroços.
Diane não tinha meios para comprar uma casa. Todo o dinheiro do seguro de vida da
minha mãe foi gasto num bom advogado para Ben. Diane disse que era o que a minha mãe
quereria, mas disse-o com uma cara abatida, como se tivesse vontade de puxar as orelhas
à minha mãe. Portanto, não recebemos um tostão. Como era franzina, fiquei a dormir
numa despensa onde teria cabido apenas uma máquina de lavar e secar roupa. Diane até a
pintou para mim. Ela trabalhava horas extras, levava-me de carro a Topeka para as
sessões de acompanhamento psicológico, tentava ser carinhosa para mim, mas eu
percebia que a magoava abraçar-me, eu era uma criatura intratável que lhe lembrava o
assassinato da irmã. Os braços dela rodeavam-me como um arco, como se fosse um jogo
pô-los à minha volta mas tocando-me o mínimo possível. Todas as manhãs, porém, dizia
que me amava.
Nos dez anos que se seguiram, dei cabo do carro dela duas vezes, parti-lhe o nariz
outras duas, roubei e vendi os cartões de crédito dela e matei-lhe o cão. Foi o cão que
acabou por a vergar. Ela tinha comprado Gracie, um rafeiro de pelo comprido, pouco depois
dos crimes. Ladrava muito e era do tamanho do antebraço de Diane e ela gostava mais
dele do que de mim, ou pelo menos era isso que eu sentia. Durante anos tive ciúmes
daquele cão, de ver Diane escovar Gracie, com as suas manápulas masculinas a pegarem
num pente de plástico cor-de-rosa, de a ver pôr um gancho no pelo comprido de Gracie, de
a ver tirar da carteira uma fotografia de Gracie e não de mim. O cão estava obcecado
com o meu pé, o pé mutilado, só com dois dedos, o segundo e o pequenino, umas coisas
magricelas e nodosas. Gracie andava sempre a cheirá-lo, como se soubesse que tinha
qualquer coisa de errado, o que não a tornou particularmente querida aos meus olhos.
Eu tinha sido castigada por uma coisa qualquer no verão entre o décimo primeiro e o
décimo segundo ano do liceu e, enquanto Diane trabalhava, sentei-me na rulote quente a
sentir-me cada vez mais irritada com o cão e o cão cada vez mais agressivo comigo.
Como me recusei a levá-lo à rua, ele desatou a correr às voltas, frenético, do sofá para a
cozinha e daí para a despensa, ladrando o tempo todo e mordiscando-me os pés. Quando
me enrosquei, alimentando a minha fúria, fingindo ver uma telenovela mas em vez disso
deixando o meu cérebro ficar negro de raiva, Gracie parou a meio de uma das suas voltas
e mordeu-me o dedo pequenino do pé mutilado, agarrou nele com os caninos e sacudiu.
Lembro-me de pensar: Se este cão me arranca um dos meus últimos dedos do pé... e de
ficar furibunda por ser uma figurinha ridícula: na mão esquerda, tinha um coto onde
nenhum homem poria uma aliança e o meu pé direito, sem apoio suficiente, dava-me um
andar de marinheiro de pernas bambas. Na escola, as miúdas chamavam ao meu dedo
«espiga». Isso era pior, parecia uma coisa ao mesmo tempo exótica e grotesca, uma
coisa de que uma pessoa se ri e depois se apressa a desviar os olhos. Um médico tinhame
dito, havia pouco tempo, que as amputações provavelmente nem tinham sido
necessárias: «Foi o ato de um médico de província demasiado ambicioso.» Agarrei em
Gracie pela barriga, sentindo as costelas dela, aquele tremer frio de criatura pequena. Os
tremores deixaram-me ainda mais irritada e, de repente, dei por mim a arrancá-la do meu
dedo do pé — arrancando a pele, ao mesmo tempo — e a atirá-la com toda a força em
direção à cozinha. Ela bateu na esquina do balcão, afiada como uma picareta, e caiu,
desfeita em espasmos, a sangrar pelo linóleo fora.
A minha intenção não era matá-la, mas ela morreu, não tão depressa como eu teria
gostado, mas no espaço de dez minutos enquanto eu andava de um lado para o outro da
rulote, a tentar decidir o que fazer. Quando Diane chegou a casa, com uma oferenda de
frango frito, Gracie ainda estava deitada no chão e a única coisa que me saiu pela boca
foi: «Ela mordeu-me.»
Tentei dizer mais qualquer coisa, explicar porque é que não tinha tido culpa, mas Diane
limitou-se a espetar um dedo trémulo: Não abras a boca. Chamou a melhor amiga, Valerie,
um mulher que tinha tanto de delicado e maternal como Diane de corpulenta e bruta. Diane
ficou debruçada sobre a pia, a olhar pela janela, enquanto Valerie embrulhava Gracie num
cobertor especial. Depois, reuniram-se no quarto à porta fechada e, quando saíram de lá,
Valerie ficou parada em silêncio ao lado de Diane, chorosa e a torcer as mãos, enquanto
Diane me mandava arrumar as minhas coisas. Em retrospetiva, depreendo que Valerie
devia ser namorada de Diane; todas as noites, Diane metia-se na cama e falava com ela
ao telefone até adormecer. Discutiam tudo e mais alguma coisa e até tinham exatamente
o mesmo corte de cabelo penugento de lavar e andar. Na altura, eu estava-me nas tintas
para o papel que ela representava na vida de Diane.
Nos meus dois últimos anos de liceu, vivi com um casal educado, em Abilene, que me
era qualquer coisa em segundo grau e que eu só torturei ligeiramente. A partir daí, de
tantos em tantos meses, Diane telefonava. Eu sentava-me a falar com ela, ouvindo o
zumbido do telefone e a respiração de fumadora de Diane. Imaginava a metade inferior da
boca dela pendurada do auscultador, a penugem aveludada do queixo e o sinal empoleirado
no lábio, uma pinta cor de carne que uma vez ela me disse, com uma gargalhada, que
realizaria os meus sonhos se eu a esfregasse. Eu ouvia um rangido ao fundo e sabia que
Diane estava a abrir o armário do meio da cozinha da rulote. Eu conhecia aquela casa
melhor do que a quinta. Diane e eu fazíamos barulhinhos desnecessários, fingindo que
espirrávamos ou tossíamos, e depois Diane dizia: «Espera um instante, Libby»,
escusadamente, uma vez que nenhuma das duas tinha estado a falar. Geralmente Valerie
estava lá em casa e elas murmuravam entre si, a voz de Valerie motivadora, a de Diane
um rezingo, e depois Diane dava-me mais cerca de vinte segundos de conversa e arranjava
uma desculpa para desligar.
Parou de atender as minhas chamadas quando saiu Um Novo Dia
1
. As suas únicas
palavras foram: Que raio te passou pela cabeça para fazeres uma coisa daquelas?, o que
foi muito contido para Diane, mas teve um efeito muito mais doloroso do que três dúzias
de vai-tefoder.
Eu sabia que Diane ainda devia estar a viver no mesmo lugar, ela nunca havia de mudar
de casa; a rulote estava presa a ela como uma carapaça. Passei vinte minutos a remexer
nas minhas pilhas de coisas, à procura do meu antigo caderno de endereços, o que eu
tinha desde a escola básica, com uma miúda ruiva de puxinhos na capa que alguém deve
ter achado que era parecida comigo. Excetuando o sorriso. O número de Diane estava
anotado em T, de Tia Diane, com o nome escrito a marcador roxo na minha letra aos
balões.
Que tom devia eu adotar? E como explicar aquele meu telefonema? Por um lado, eu
queria simplesmente ouvir a respiração asmática dela ao telefone, a sua voz de treinador
de futebol a berrar-me ao ouvido: Então, porque é que demoraste este tempo todo para
me ligar? Por outro lado, queria saber o que é que ela pensava realmente de Ben. Nunca a
ouvi dizer mal de Ben, sempre teve cuidado com a maneira como falava sobre ele, mais
uma coisa pela qual lhe devia um agradecimento retroativo.
Marquei o número, com os ombros encolhidos até às orelhas, a garganta apertada,
contendo a respiração sem me aperceber, até que ao terceiro toque, quando a chamada foi
parar ao atendedor, dei por mim subitamente a soltar o ar dos pulmões.
Era a voz de Valerie no atendedor de chamadas, a pedir-me para deixar uma
mensagem para ela ou para Diane.
— Olá! É a Libby. Era só para dizer olá e dizer-vos que estou viva e... — Desliguei.
Voltei a marcar o número. — Ignorem a minha mensagem anterior. É a Libby. Telefonei
para pedir desculpa por... Oh, por muitas coisas. E gostava de falar... — Deixei a frase em
suspenso, caso alguém estivesse a filtrar as mensagens, depois deixei o meu número de
telefone, desliguei e sentei-me na beira da cama, pronta para me levantar, mas sem razão
para o fazer.
Levantei-me. Tinha feito mais coisas nesse dia do que num ano inteiro. Enquanto ainda
tinha o telefone na mão, obriguei-me a ligar a Lyle, na esperança de ir parar ao voice mail
mas, como sempre, ele atendeu. Antes que ele me conseguisse irritar, disse-lhe que o
encontro com Ben tinha corrido muito bem e que estava pronta para saber quem é que ele
achava que era o assassino. Disse isto tudo num tom muito preciso, como se estivesse a
dosear informações com uma colher medidora.
— Eu sabia que ia gostar dele, sabia que ia mudar de ideias — crocitou ele e, uma vez
mais, fiz um favor a mim própria e não lhe desliguei o telefone na cara.
— Eu não disse isso, Lyle, eu disse que estava pronta para outra missão, se quiser.
Voltámos a encontrar-nos na churrasqueira Tim Clark’s, onde pairava uma nuvem de
gordura. Mais uma empregada velha, ou então era a mesma com uma peruca ruiva,
enfiada nuns ténis esponjosos e uma minissaia adejante, que a fazia parecer uma antiga
tenista profissional. Em vez do gordo a admirar a jarra nova, estavam uns tipos com ar
todo estiloso a mostrarem uns aos outros cartas de jogar com mulheres nuas dos anos 70
e a gozarem com o matagal púbico das fulanas. Lyle estava sentado na mesa ao lado,
tenso, com a cadeira virada de costas para eles, numa posição forçada. Sentei-me e servime
de um copo de cerveja do jarro dele.
— Então, ele era como a Libby esperava? O que é que ele disse? — começou Lyle, a
dar à perna, nervoso.
Contei-lhe como foi, tirando a parte sobre o coelhinho de louça.
— Está a perceber agora o que a Magda quis dizer quando afirmou que ele era um caso
perdido?
Estava.
— Acho que ele se resignou à sentença de prisão — respondi, uma perspetiva que só
partilhei porque o tipo me tinha dado trezentos dólares e eu queria mais. — Ele acha que é
um castigo merecido por não ter conseguido proteger-nos ou uma coisa assim. Não sei.
Pensei que quando eu lhe falasse no meu depoimento, no facto de ter sido... exagerado, ele
reagisse de imediato, mas... nada.
— Em termos jurídicos, provavelmente já não serve de muito, passado tanto tempo —
disse Lyle. — A Magda diz que, se a Libby quer ajudar o Ben, devíamos reunir mais provas
e a Libby pode retratar-se quando dermos entrada ao pedido de habeas corpus. Vai causar
mais impacto. Nesta altura do campeonato, é mais uma questão política do que jurídica.
Muita gente deve a sua carreira de sucesso a este caso.
— Parece que a Magda sabe muita coisa.
— Ela está à frente de um grupo chamado Associação Libertem Ben Day, que faz de
tudo para tentar tirar o Ben da prisão. Às vezes, vou às reuniões, mas parece-me uma
coisa mais vocacionada para, hum, fãs. Mulheres.
— Alguma vez ouviu dizer que o Ben tivesse uma namorada séria? Uma dessas
mulheres da associação, chamada Molly ou Sally ou Polly? Ele tinha uma tatuagem.
— Nenhuma Sally. Polly parece o nome de um animal de estimação... a minha prima
tinha uma cadela chamada Polly. Há uma Molly, mas tem setenta e picos.
Um prato com batatas fritas apareceu à frente dele e a empregada era claramente
diferente da anterior, igualmente velha, mas muito mais simpática. Gosto de empregadas
que me tratem por querida ou amor e esta fê-lo.
Lyle comeu batatas fritas durante uns minutos: primeiro, espremeu uns pacotes de
ketchup para a beira do prato, depois deitou sal e pimenta no ketchup e, a seguir, molhou
cada batata individualmente, enfiando-a na boca com o zelo de uma menina.
— Vá, diga-me lá quem é que acha que foi — pedi finalmente.
— Quem foi o quê?
Revirei os olhos e encaixei a cabeça nas mãos, como se aquilo fosse demais para
mim, e quase era.
— Ah, sim. Acho que foi o Lou Cates, o pai da Krissi Cates. — Recostou-se na cadeira,
satisfeito, como se tivesse acabado de ganhar um jogo de Clue.
Krissi Cates, o nome dizia-me qualquer coisa. Tentei fazer bluff, mas não resultou.
— Sabe quem é a Krissi Cates, não sabe? — Como eu não disse nada, ele continuou,
assumindo um tom de voz melífluo e condescendente. — A Krissi Cates era uma miúda
que andava no quinto ano na vossa escola, na escola do Ben. No dia em que a sua família
foi assassinada, a polícia andava à procura do Ben para o interrogar... ela tinha-o acusado
de a ter molestado.
— O quê?
— É.
Ficámos especados a olhar um para o outro, com expressões idênticas de «só podes
estar doido».
Lyle abanou a cabeça.
— Quando diz que ninguém fala consigo sobre estas coisas, pelos vistos não está a
brincar.
— Ela não depôs contra o Ben... — comecei.
— Não, não. Foi a única coisa inteligente que a defesa do Ben fez, mostrar que as duas
acusações não estavam ligadas uma à outra em termos legais, a molestação e os
assassinatos. Mas o júri ficou contra ele. Toda a gente da região tinha ouvido dizer que o
Ben molestara uma miúda querida de boas famílias e que provavelmente fora isso que
levara aos «assassinatos satânicos». Sabe como funcionam os boatos.
— E esse caso da Krissi Cates chegou a ir a julgamento? — perguntei. — Alguém
provou que o Ben lhe fez alguma coisa de mal?
— Nunca foi para a frente... a polícia não oficializou a queixa — disse Lyle. — A família
Cates fez um acordo rápido com a direção distrital do ensino e depois mudou de região.
Mas quer saber o que eu acho? Acho que o Lou Cates foi a sua casa naquela noite
interrogar o Ben. Acho que o Lou Cates, que era um tipo corpulento, foi lá a casa à
procura de respostas e depois...
— Passou-se da cabeça e decidiu matar a família toda? Isso não faz sentido nenhum.
— Este tipo cumpriu três anos de prisão por homicídio involuntário quando era mais
novo, foi isso que eu descobri. Atirou com uma bola de bilhar com toda a força contra um
tipo e acabou por matá-lo. Tinha um feitio violento. Se o Lou Cates achou que a filha tinha
sido molestada, consigo imaginá-lo a ferver de raiva. Depois, pintou os pentagramas e
essas coisas só para despistar.
— Mmmm, não faz sentido. — Mas eu queria muito que fizesse.
— O seu irmão ser o assassino é que não faz sentido. É um crime louco,
completamente louco, há muita coisa que nunca fará sentido. Por isso é que as pessoas
ficam tão obcecadas por estes crimes. Se fizessem sentido, não seriam considerados um
mistério, pois não?
Fiquei calada. Era verdade. Comecei a mexericar no saleiro e no pimenteiro, que eram
surpreendentemente bonitos para uma espelunca daquelas.
— Não acha que, pelo menos, vale a pena explorar esta hipótese? — insistiu Lyle. —
Esta alegação enorme, horrível, que rebentou exatamente no mesmo dia em que a sua
família foi assassinada?
— Acho que sim. Você é que manda.
— Então, eu digo que até encontrar o Runner, veja se consegue que alguém da família
Cates fale consigo. Quinhentos dólares se for a Krissi ou o Lou. Só quero saber se eles
continuam a contar a mesma história sobre o Ben. Se conseguem viver com isso na
consciência, entende? É que só pode ser mentira. Certo?
Eu estava a sentir-me a tremer outra vez. A minha fé não precisava de ser posta à
prova naquele preciso momento. Ainda assim, agarrei-me a uma estranha certeza
reconfortante: o Ben nunca me tinha molestado. Se realmente era um molestador de
crianças, não teria começado por atacar uma menina dentro de sua própria casa?
— Certo.
— Certo — repetiu Lyle.
— Mas não sei se terei mais sorte do que se fosse o Lyle a tentar. No fim de contas,
sou irmã do tipo que eles acusam de a ter molestado.
— Bom, eu tentei e não consegui nada — disse Lyle, encolhendo os ombros. — Não
tenho jeito para esse tipo de coisa.
— Que tipo de coisa?
— Subtileza.
— Ah, por acaso eu tenho muito jeito para isso.
— Ótimo. E se conseguir marcar um encontro, eu gostava de a acompanhar.
Encolhi os ombros em silêncio e levantei-me, planeando deixar a conta para ele pagar,
mas Lyle gritou o meu nome antes de eu ter conseguido dar três passos.
— Libby, tem noção de que meteu o saleiro e o pimenteiro no bolso?
Detive-me um segundo e pensei em fazer-me de surpreendida: oh, meu Deus, sou tão
distraída. Em vez disso, fiz que sim com a cabeça e saí porta fora. Precisava do saleiro e
do pimenteiro.
Lyle tinha localizado a mãe de Krissi Cates em Emporia, no Kansas, onde vivia com o
segundo marido, com quem tivera uma segunda filha quase vinte anos depois da primeira.
Lyle deixara-lhe várias mensagens no ano passado, mas ela nunca lhe telefonara. E ele
ficara-se por aí.
Nunca deixem uma mensagem a uma pessoa com quem queiram mesmo falar. Não, o
melhor é ligar e ligar até que alguém atenda — por raiva, curiosidade ou medo — e,
depois, dizer rapidamente o que for preciso para a pessoa não desligar.
Telefonei à mãe da Krissi umas doze vezes até ela atender e, depois, à pressa, disse:
— Fala Libby Day, a irmã mais nova do Ben Day, lembra-se do Ben Day?
Ouvi uns lábios molhados entreabrirem-se ruidosamente e uma vozinha murmurou:
— Sim, lembro-me do Ben Day. De que é que se trata, por favor? — Como se eu fosse
uma operadora de televendas.
— Gostava de falar consigo ou com alguém da sua família sobre as acusações que a
sua filha Krissi fez contra o Ben.
— Nós não falamos disso... como é que disse que se chamava? Lizzy? Voltei a casarme
e tenho muito pouco contacto com a minha família anterior.
— Sabe como é que posso contactar o Lou ou a Krissi?
Ela soltou um suspiro como se fosse uma baforada de fumo.
— O meu palpite é que o Lou deve estar num bar qualquer, algures no estado do
Kansas. Quanto à Krissi... Meta pela I-70 e rume a oeste. Quando passar por Columbia,
vire à esquerda para os bares de striptease. Não volte a ligar.
1 O original A Brand New Day também pode ser traduzido por Uma Day Novinha em Folha.
(N. da T.)

PATTY DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 11h31


Enfiara-se na casa de banho quando Len se fora embora, o sorriso amarelo dele ainda
presente na sua mente, a oferecer-lhe qualquer coisa de desagradável, um tipo de ajuda
que ela sabia que não queria. As meninas tinham saído em catadupa do quarto assim que
ouviram a porta a fechar e, depois de um rápido conluio sussurrado à porta da casa de
banho, decidiram deixá-la em paz e voltar para a frente da televisão.
Patty pousou as mãos na barriga adiposa, sentindo que o seu suor se tornara frio. A
quinta dos seus pais, falida. Sentiu a pontada de culpa no estômago que sempre fizera dela
uma menina tão bem-comportada, o medo constante de desiludir os pais, por favor, por
favor, Deus, não deixes que eles descubram. Eles tinham-lhe confiado aquela casa e ela
ficara aquém das expectativas. Imaginou-os nas nuvens do Céu, os braços do pai à volta
da mãe, olhando ambos para ela, abanando a cabeça: O que é que te passou pela cabeça
para fazeres uma coisa dessas? O ralhete preferido da mãe.
Teriam de se mudar para uma terra completamente diferente. Kinnakee não tinha
edifícios de apartamentos e eles iam ter de se encafuar num apartamento qualquer e ela
seria obrigada a arranjar um emprego num escritório; se conseguisse, claro. Sempre tivera
pena de quem vivia em apartamentos, sujeito a ouvir os arrotos e discussões dos vizinhos.
As pernas cederam e, de repente, Patty deu por si sentada no chão. Não tinha energia para
abandonar a quinta, jamais. Gastara o pouco que lhe restava nesses últimos anos. Alguns
dias de manhã nem sequer conseguia sair da cama, não era fisicamente capaz de tirar as
pernas de debaixo das cobertas, as meninas tinham de a arrastar, puxando-a com os
calcanhares fincados no chão, e, enquanto lhes preparava o pequeno-almoço e as ajudava a
arranjar-se para irem à escola, sonhava acordada com a sua própria morte. Uma coisa
rápida, um ataque cardíaco durante a noite ou uma súbita colisão com um veículo. Mãe de
quatro filhos atropelada por autocarro. E os filhos entregues aos cuidados de Diane, que
não os deixaria passar o dia inteiro de pijama e os levaria ao médico quando estivessem
doentes, e os apressaria para que terminassem o que quer que tivessem para fazer. Patty
era uma mulher franzina, frágil e trémula, que se deixava arrastar facilmente pelo
otimismo, mas ainda mais facilmente pelo desânimo. Era Diane quem devia ter herdado a
quinta. Mas ela não quisera ter nada a ver com o assunto, saíra de casa aos dezoito anos,
uma trajetória alegre, tipo bumerangue, que a fizera aterrar como rececionista num
consultório médico a uns escassos, mas cruciais, cinquenta quilómetros de distância, em
Schieberton.
Os pais tinham encarado a partida de Diane com estoicismo, como se sempre tivesse
estado nos planos. Patty lembrava-se de, nos tempos do liceu, eles terem ido vê-la fazer o
seu espetáculo de cheerleader numa húmida noite de outubro. Sujeitaram-se a um trajeto
de três horas de automóvel, até ao interior do Kansas, quase no Colorado, e durante o jogo
todo caiu uma chuva ligeira, mas persistente. No fim (Kinnakee perdeu), os seus pais
grisalhos e a sua irmã, três ovais robustas enfiadas em casacos de lã áspera, correram
para o campo para se juntarem a ela, todos sorrindo com tanto orgulho e gratidão que
qualquer pessoa julgaria que Patty tinha descoberto a cura para o cancro, os olhos deles
franzidos de riso por detrás de três pares de óculos manchados de chuva.
Ed e Ann Krause estavam mortos agora, tinham morrido cedo, mas não de maneira
inesperada, e Diane era agora gerente do mesmo consultório médico de sempre e vivia
numa rulote, num parque de atrelados decente, bordejado de flores.
«Para mim, esta vida chega-me», costumava ela dizer. «Não me consigo imaginar a
querer outra diferente.»
Diane era assim. Competente. Era ela que se lembrava dos pequenos mimos de que as
meninas gostavam, nunca se esquecia de lhes comprar todos os anos as t-shirts a dizer
Kinnakee, o Coração da América! Diane inventara que Kinnakee significava «mulherzinha
mágica» em índio e as meninas ficaram tão contentes com isso que Patty nunca tivera
coragem de lhes contar que Kinnakee significava rocha ou corvo ou uma coisa qualquer
desse género.
A buzina do carro de Diane intrometeu-se nos seus pensamentos com o seu habitual
pipipi! festivo.
— Diane! — guinchou Debby, e Patty ouviu as três meninas precipitarem-se para a
porta da rua, conseguiu visualizar a amálgama de puxinhos e rabiosques e, depois,
imaginou-as a correr direitas ao carro e Diane a ir embora com elas e a deixá-la naquela
casa onde Patty reduziria tudo ao silêncio.
Obrigou-se a levantar-se e limpou o rosto com uma toalha bafienta. Tinha sempre o
rosto vermelho, os olhos raiados de sangue, por isso era impossível perceber-se se tinha
estado a chorar, a única vantagem de parecer constantemente um rato esfolado. Quando
abriu a porta, a irmã já estava a desensacar três carregamentos de comida enlatada e a
mandar as meninas ao carro buscar o resto. Patty começara a associar o cheiro dos sacos
de papel pardo a Diane, havia tanto tempo que ela lhes trazia comida. Era o exemplo
perfeito da vida imperfeita que Patty levava: vivia numa quinta, mas nunca tinha o
suficiente para comer.
— Comprei-lhes um daqueles livros de autocolantes — anunciou Diane, pondo-o em
cima da mesa.
— Oh, estás a estragá-las com mimos, D.
— Só lhes comprei um, por isso vão ter o partilhar. E isso é bom, não é? — Riu-se e
começou a fazer café. — Importas-te?
— Claro que não, eu já devia ter o café pronto.
Patty foi ao armário buscar a caneca de Diane; ela preferia uma caneca pesada e
enorme, do tamanho da cara, que pertencera ao pai. Patty ouviu o previsível esguicho e
virou-se, dando uma pancada na maldita máquina do café que empancava sempre depois
da terceira cuspidela.
As meninas entraram na cozinha, carregando os sacos para a mesa e, a mando de
Diane, começaram a arrumar as compras.
— Onde é que está o Ben? — perguntou Diane.
— Mmmm — fez Patty, pondo três colheres de chá de açúcar na caneca de Diane. Fez
um sinal às filhas, que já estavam a abrandar a arrumação das latas nos armários e a
olhar para cima, em diferentes poses de indiferença.
— Ele meteu-se em sarilhos — explodiu Michelle, alegremente. — Outra vez.
— Conta-lhe o que ele fez ao... tu sabes o quê — incitou Debby, dando uma cotovelada
à irmã.
Diane virou-se para Patty com uma careta, claramente à espera de uma história sobre
contratempos ou mutilações.
— Meninas, a tia D trouxe-vos um livro de autocolantes...
— Vão brincar com ele no vosso quarto para eu poder conversar com a vossa mãe. —
Diane falava sempre com as meninas num tom mais rude do que Patty: era Diane a imitar
a maneira de ser pretensamente abrupta de Ed Krause, que troava e resmungava com elas
com um cansaço tão exagerado que elas sabiam, mesmo em miúdas, que ele estava a
brincar. Patty acrescentou um olhar suplicante na direção de Michelle.
— Oh, que bom, um livro de autocolantes! — anunciou Michelle, com um entusiasmo
apenas um nadinha forçado. Michelle estava sempre disposta a ser cúmplice em qualquer
esquema dos adultos. E assim que Michelle fingia querer qualquer coisa, Libby punha-se
logo a ranger os dentes e a esticar as mãos. Libby nascera no Natal, o que significava que
nunca recebia a quantidade certa de prendas. Patty punha uma prenda de parte — e
Parabéns, Libby! —, mas todos sabiam a verdade: Libby estava a ser roubada. E era raro
Libby não sentir que estava a ser roubada.
Patty sabia estas coisas sobre as filhas, mas estava sempre a esquecer-se. O que é
que se passava de errado com ela, se estes pedaços das personalidades das suas filhas
estavam sempre a surpreendê-la?
— Queres ir para a garagem? — perguntou Diane, dando uma palmadinha nos cigarros
que levava no bolso do peito.
— Oh — foi a única coisa que Patty disse em resposta. Desde os trinta que Diane
deixava de fumar e voltava a fumar pelo menos duas vezes por ano, todos os anos. Agora
tinha trinta e sete (e estava em muito pior estado do que Patty, com a pele do rosto aos
losangos como uma cobra) e havia muito que Patty aprendera que a melhor maneira de a
apoiar era calando-se simplesmente e levando-a para a garagem. Exatamente como a mãe
costumava fazer com o pai. Escusado será dizer que ele morreu de cancro do pulmão
pouco depois de fazer cinquenta anos.
Patty seguiu a irmã, obrigando-se a respirar, preparando-se para contar a Diane que a
quinta estava falida, à espera de ver se ela desatava aos gritos sobre o esbanjamento
irresponsável de Runner e a maneira como Patty permitira o esbanjamento irresponsável
de Runner, ou se pura e simplesmente ficava calada e fazia um mero aceno de cabeça.
— Então, o que é que se passa com o «tu-sabes-o-quê» do Ben? — perguntou Diane,
instalando-se numa cadeira de jardim que rangia, com duas das tiras partidas e
penduradas. Acendeu um cigarro e apressou-se a abanar a mão para afastar o fumo de
Patty.
— Oh, não é nada de estranho, não é isso. Quer dizer, estranho é, mas... ele pintou o
cabelo de preto. O que é que isso significa?
Esperou que Diana soltasse uma gargalhada em resposta, mas Diane ficou calada.
— Como é que o Ben anda, Patty? Em geral, como é que ele te parece?
— Não sei... instável.
— Ele sempre foi de humor instável. Já em bebé parecia um gato. Num instante era
todo meiguinho e, no instante seguinte, olhava para nós como se não fizesse ideia de
quem éramos.
Era verdade, Ben, com dois anos, era uma coisa espantosa. Exigia carinho sem rodeios,
agarrava um peito ou um braço, mas assim que recebia uma dose suficiente de afeto, o
que acontecia depressa, ficava completamente inerte, fazia-se de morto até uma pessoa o
largar. Ela levara-o ao médico e Ben sentara-se, hirto e de lábios cerrados, um menino
estoico de camisola de gola alta, com uma capacidade extraordinária para conter as
emoções. Até o médico pareceu assustado, deu ao garoto um chupa-chupa barato e
mandou-a voltar daí a seis meses se ele estivesse na mesma. Ele estava sempre na
mesma.
— Bom, ter um humor instável não é crime — disse Patty. — O Runner era assim.
— O Runner é um idiota, não é a mesma coisa. O Ben sempre teve aquele ar
desligado.
— Ele tem quinze anos — começou Patty, e deixou a frase em suspenso. Os seus
olhos pousaram num frasco de pregos que estava na prateleira, um frasco em que
provavelmente nunca ninguém tinha mexido desde o tempo em que o seu pai era vivo.
Tinha uma etiqueta de fita adesiva a dizer Pregos escrito na sua longa caligrafia vertical.
A garagem tinha um chão de cimento com manchas de óleo, que estava ainda mais
frio do que o ar. A um canto, um velho jarro de quase quatro litros de água congelara e
rebentara com as costuras de plástico. O fumo de tabaco de Diane misturava-se com o
hálito delas e, pairava, pesado, no ar. Apesar disso, Patty sentia-se estranhamente
satisfeita ali, entre aquelas velhas ferramentas que ela conseguia imaginar nas mãos do
pai: ancinhos com dentes vergados, machados de todos os comprimentos, prateleiras
apinhadas de frascos cheios de parafusos, pregos e anilhas. Havia, inclusive, uma velha
geladeira de metal, com a base manchada de ferrugem, onde o pai costumava guardar as
cervejas enquanto ouvia os relatos da bola no rádio.
Irritou-a o facto de Diane estar tão calada, uma vez que Diane gostava de dar a sua
opinião sempre que podia, mesmo quando não tinha opinião. Irritou-a ainda mais o facto de
Diane estar tão parada, de não ter visto naquela situação uma oportunidade para
implementar um projeto, qualquer coisa para endireitar ou consertar, uma vez que Diane
era uma pessoa de atos, nunca ficava quieta só a falar.
— Patty, tenho de te contar uma coisa que ouvi. E a minha reação inicial foi não te
dizer nada, porque é óbvio que não é verdade. Mas tu és mãe e deves saber e... c’os
diabos, não sei, mas acho que deves saber.
— Está bem.
— O Ben alguma vez brincou com as meninas de uma maneira que pudesse deixar
uma pessoa confusa?
Patty ficou especada a olhar para ela.
— De uma maneira que as pessoas pudessem interpretar mal... sexualmente?
Patty quase se engasgou.
— O Ben detesta as meninas! — Ficou surpreendida com o alívio que sentiu. — Dá-se
o mínimo possível com elas.
Diane acendeu outro cigarro e fez um aceno tenso com a cabeça.
— Bom, está bem, ótimo. Mas não é só isso. Uma amiga minha disse-me que anda por
aí um boato de que houve queixas na escola por causa do Ben, de que umas quantas
meninas, da idade da Michelle, mais ou menos, disseram que o tinham beijado ou que ele
lhes tocou, ou uma coisa dessas. Talvez pior. O que ouvi era pior.
— O Ben? Tens noção de que isso é perfeitamente absurdo! — Patty levantou-se, sem
saber o que fazer com os braços nem com as pernas. Virou-se para a direita e depois
para a esquerda demasiado depressa, como um cão distraído, e sentou-se outra vez. Uma
das correias da cadeira partiu-se.
— Eu sei que é absurdo. Ou um equívoco qualquer.
Era a pior palavra que Diane podia ter usado. Assim que ela a disse, Patty soube que
tinha estado com pavor disso mesmo. Dessa quota de possibilidade — um equívoco — que
podia transformar tudo numa questão grave. Uma festinha na cabeça podia ser uma
carícia nas costas que podia ser um beijo na boca que podia ser a casa a vir abaixo.
— Um equívoco? O Ben não se equivocaria em relação a um beijo. Nem a uma carícia.
Nem a uma menina. Ele não é um tarado. É um miúdo estranho, mas não tem uma mente
perversa. Não é louco. — Patty passava o seu tempo a jurar que Ben não era estranho, era
um miúdo normal. Mas, agora, não se importava nada com o adjetivo estranho. De repente,
tomou consciência das coisas, como uma descarga súbita e desenfreada, como quando
uma pessoa leva com os cabelos na cara enquanto conduz.
— Dizes-lhes que ele não faria uma coisa dessas? — perguntou Patty, e as lágrimas
assolaram-na em catadupa, de repente tinha as faces molhadas.
— Posso dizer a toda a gente de Kinnakee, a toda a gente no estado do Kansas, que ele
não faria uma coisa dessas e, ainda assim, as pessoas podem continuar a falar. Não sei.
Não sei. Ouvi o boato ontem à tarde, mas parece que está a tornar-se... maior. Quase me
meti no carro e vim cá. Depois, passei o resto da noite a convencer-me de que não era
nada. E, hoje de manhã, acordei e percebi que era.
Patty conhecia essa sensação, uma ressaca de um sonho, como quando acordava
sobressaltada e em pânico, às duas da manhã, e tentava convencer-se de que estava tudo
bem com a quinta, que nesse ano os negócios correriam de feição, e depois se sentia
ainda pior quando acordava ao som do despertador, umas horas depois, culpada e
ludibriada. Era surpreendente a maneira como uma pessoa podia passar horas a meio da
noite a fingir que estava tudo bem e, em trinta segundos de luz diurna, tomar consciência
de que isso pura e simplesmente não era verdade.
— Quer dizer que vieste até cá trazer compras de mercearia e um livro de
autocolantes quando, na realidade, a tua intenção era contar-me esta história sobre o Ben.
— Como eu disse... — Diane encolheu os ombros, num gesto solidário, e abriu os
dedos, exceto os que seguravam no cigarro.
— Bom, o que é que vai acontecer agora? Sabes os nomes das meninas? Alguém me
vai telefonar ou falar comigo, ou falar com o Ben? Preciso de encontrar o Ben.
— Onde é que ele está?
— Não sei. Tivemos uma discussão. Por causa do cabelo dele. Ele foi-se embora de
bicicleta.
— Afinal que história é essa de ele ter pintado o cabelo?
— Não sei, Diane! Mas, pelo amor de Deus, que importância tem isso agora?
Mas era óbvio que Patty sabia que tinha importância. Tudo agora seria filtrado e
peneirado em busca de um significado qualquer.
— Bom, isto não me parece uma emergência — disse Diane baixinho. — Não acho que
tenhamos de o mandar voltar para casa imediatamente, a menos que queiras que ele volte
imediatamente.
— Quero que ele volte imediatamente para casa.
— Está bem, então vamos começar a fazer telefonemas. Dá-me uma lista de amigos
dele e eu começo a telefonar.
— Já nem sequer sei quem são os amigos dele — disse Patty. — Hoje de manhã,
apanhei-o a conversar com alguém ao telefone, mas não me disse quem era.
— Então, vemos qual foi o último número que ele marcou.
A irmã resmungou, apagou o cigarro com uma bota, puxou Patty para fora da cadeira e
conduziu-a para dentro de casa. Diane ralhou com as meninas para que não saíssem do
quarto, quando a porta delas estalou, dirigiu-se para o telefone e carregou com ar
determinado na tecla de remarcação com um dedo másculo. O auscultador emitiu uma
cantilena de ruídos numéricos — bipbipbipbipbipbupbip — e, antes mesmo que tocasse,
Diane desligou.
— É o meu número.
— Ah, pois é. Liguei-te a seguir ao pequeno-almoço para te perguntar a que horas
vinhas.
As duas irmãs sentaram-se à mesa e Diane serviu mais umas canecas de café. O
brilho da neve incidiu no interior da cozinha como uma luz estroboscópica.
— Temos de trazer o Ben para casa — disse Patty.

LIBBY DAY TEMPO PRESENTE


   Portanto, eu ia conhecer o meu irmão, já crescido. Depois do meu encontro com Lyle,
voltei para casa e peguei no livro da Barb Eichel, A Sua Família na Prisão: Supere as
Grades! Depois de ler uns quantos capítulos confusos sobre a administração do sistema
penitenciário no estado da Florida, folheei as páginas amareladas até encontrar o
copyright: 1985. Que livro tão incrivelmente inútil. Fiquei com medo de receber mais
encomendas sem sentido de Barb: panfletos sobre parques aquáticos defuntos no
Alabama, brochuras sobre hotéis de Las Vegas desfeitos em estilhaços, avisos sobre o
vírus do milénio.
Acabei por pedir a Lyle para tratar de tudo. Disse-lhe que não conseguia entrar em
contacto com a pessoa certa, que me sentia esmagada por aquilo tudo, mas a verdade é
que pura e simplesmente não me apetecia lidar com as questões práticas. Não tenho
estofo para isso: marcar números, esperar em linha, falar, esperar em linha, depois ser
muito simpática para uma mulher qualquer mal-humorada, com três filhos para criar e a
resolução anual de retomar os estudos, uma mulher qualquer mortinha para que lhe demos
uma desculpa para nos desligar o telefone na cara. É uma cabra, sem dúvida, mas não lhe
podemos chamar nomes, senão, de repente, temos de voltar à estaca zero como no jogo
das escadas e serpentes. E o castigo é termos de ser ainda mais simpáticos quando
ligarmos de novo. Lyle que lidasse com isso.
A prisão de Ben fica mesmo à saída de Kinnakee e foi construída em 1997, depois de
mais uma leva de fusões de quintas. Kinnakee fica quase no centro do Kansas, não muito
longe da fronteira com o Nebrasca e, em tempos, autoproclamou-se o centro geográfico
dos quarenta e oito Estados Unidos contíguos. O coração da América. Foi uma história
levada muito a sério nos anos 80, quando todos éramos patrióticos. Outras cidades do
Kansas rivalizaram pelo título, mas os kinnakeenses ignoraram-nas, teimosamente,
orgulhosamente. Este era o único foco de interesse da cidade. A Câmara do Comércio
vendia posters e t-shirts com o nome da terra escrito em letras cursivas dentro de um
coração. Todos os anos, Diane comprava-nos uma t-shirt nova, por um lado, porque
gostávamos de tudo o que tivesse a forma de coração e, por outro, porque Kinnakee é
uma palavra índia antiga que significa «mulherzinha mágica». Diane sempre tentou
convencer-nos a sermos feministas. A minha mãe dizia, a brincar, que não se depilava
muito e que isso já era um começo. Não me lembro de ela o dizer, mas lembro-me de
Diane, corpulenta e furibunda, como andava sempre depois dos crimes, a fumar um cigarro
na rulote, a beber chá gelado por um copo de plástico com o nome dela escrito em letras
a imitar troncos, a contar-me a história.
Afinal, estávamos enganados. Lebanon, Kansas, é o centro oficial dos Estados Unidos.
Kinnakee partira de pressupostos errados.
Pensei que ia demorar meses a conseguir autorização para ver Ben, mas parece que o
Estabelecimento Prisional de Kinnakee Kansas é rápido a conceder passes de visita.
(«Acreditamos que a interação com a família e amigos é uma atividade benéfica para os
reclusos, ajudando a preservar as suas relações sociais e o contacto com a realidade
exterior.») Burocracias e tretas e, depois, passei os poucos dias de interregno a analisar
os ficheiros de Lyle, a ler a transcrição do julgamento de Ben, o que nunca tinha tido
coragem de fazer.
Fez-me suar. O meu testemunho era um labirinto de recordações infantis confusas
(Acho que o Ben trouxe uma bruxa para casa e ela matou-nos, disse eu, ao que o
advogado de acusação respondeu simplesmente: Mmmm, falemos agora do que realmente
aconteceu) e diálogo ensaiado (Vi o Ben quando estava parada à beira do quarto da minha
mãe, ele estava a ameaçar a mãe com a nossa caçadeira). Quanto ao advogado de defesa
de Ben, só lhe faltou embrulhar-me em papel de seda e pousar-me numa cama de penas,
de tão delicado que foi comigo (Não estará um pouquinho confusa em relação ao que viu,
Libby? Tem a certeza, a certeza absoluta, de que era o seu irmão, Libby? Não estará a
dizer-nos aquilo que acha que queremos ouvir? Ao que respondi: Não Sim Não). Ao fim do
dia, respondi a todas as perguntas com um Acho que sim, a minha maneira de dizer que já
chegava.
O advogado de defesa de Ben insistira naquela mancha de sangue na colcha da Michelle
e no misterioso sapato de cerimónia que deixara uma pegada no sangue da minha família,
mas não conseguiu apresentar uma teoria alternativa convincente. Talvez tivesse estado
mais alguém lá em casa, mas não havia pegadas nem marcas de pneus no exterior para o
provar. Na manhã do dia 3 de janeiro, a temperatura aumentou seis graus, derretendo a
neve e transformando todas as suas impressões numa lama primaveril.
Além do meu depoimento, Ben tinha contra ele: arranhões na cara que ele não foi
capaz de explicar, uma história sobre um homem cabeludo que, a princípio, ele disse que
tinha matado toda a gente — história essa que se apressou a substituir pela defesa
«passei a noite fora, não sei de nada» —, um grande tufo de cabelo de Michelle
encontrado no chão do quarto dele e o seu comportamento tresloucado naquele dia. Tinha
pintado o cabelo de preto, o que toda a gente considerou suspeito. Fora visto a andar pelos
corredores da escola «sorrateiramente», testemunharam vários professores. Perguntaramse
se ele teria ido buscar os restos de animais que guardava no cacifo (restos de
animais?) ou se estaria a recolher objetos pessoais de outros alunos para uma missa
satânica. Mais tarde, nesse mesmo dia, parece que foi a um antro qualquer da passa e se
vangloriou dos seus sacrifícios demoníacos.
Ben não fez nada para se ajudar a si próprio: não tinha álibi para os crimes; tinha uma
chave de casa, cuja porta não foi arrombada; tinha tido uma discussão com a minha mãe
nesse dia de manhã. E, além disso, fez uma figura de merda em tribunal. Quando os
advogados de acusação afirmaram que era um assassino adorador do Diabo, Ben
respondeu discutindo entusiasticamente os rituais de adoração do Diabo, em especial
canções que lhe lembravam o submundo e o grande poder do satanismo. (Incentiva-nos a
fazermos aquilo que nos apetece, porque no fundo somos todos animais.) A dada altura, o
advogado de acusação pediu a Ben para «parar de mexer no cabelo e assumir uma postura
séria, não percebe que isto é um assunto grave?».
«Percebo que, aos seus olhos, é grave», respondeu Ben.
Nem sequer parecia uma resposta do Ben de que eu me lembrava, o meu irmão
sossegado e metido consigo. Lyle incluíra umas quantas fotografias novas do julgamento:
Ben com o cabelo preto apanhado num rabo de cavalo (porque é que os advogados de
defesa não o obrigaram a cortá-lo?), enfiado num fato desalinhado, sempre com um
sorriso idiota ou completamente indiferente.
Portanto, Ben não mexeu uma palha a seu favor, mas a transcrição do julgamento fezme
corar. Ao mesmo tempo, aquilo tudo ajudou-me um bocadinho a sentir-me melhor. Se
Ben estava na cadeia, a culpa não era exclusivamente minha (se realmente ele era
inocente, se realmente o era). Não, toda a gente tinha tido um pouquinho de culpa.
Uma semana depois de ter aceitado visitar Ben, ali estava eu, a caminho. Ia ao volante
do carro, em direção à minha terra natal, onde não punha os pés há pelo menos doze anos,
a minha terra que se tornara uma cidade-prisão sem o meu aval. Aconteceu tudo tão
depressa que até fiquei enjoada. Só consegui meter-me no carro dizendo a mim mesma
sem parar que não ia propriamente a Kinnakee e que não ia descer aquela comprida
estrada de terra que me levaria a casa, não, isso não. Não que ainda fosse a minha casa:
alguém comprara a propriedade anos antes, demolira a casa por completo, destruindo
paredes que a minha mãe tinha embelezado com posters baratos de flores, partindo
janelas de encontro às quais nós respirávamos, enquanto esperávamos para ver quem é
que vinha a descer o caminho de acesso à casa, partindo a moldura da porta onde a minha
mãe tinha escrito a lápis as diferentes alturas de Ben e das minhas irmãs, mas não as
minhas, porque estava demasiado cansada para me medir (eu só tive direito a uma
marca: Libby 96 cm).
Fiz as três horas de caminho até ao Kansas, subindo e descendo os montes Flint,
depois atravessando as planícies, vendo placas a convidarem-me para visitar o Museu da
Greyhound, o Museu da Telefonia, o Maior Novelo de Guita. Uma vez mais, senti uma
pontada de lealdade: devia ir visitar tudo, nem que fosse para irritar os viajantes irónicos.
Saí finalmente da autoestrada, dirigindo-me para norte e oeste e norte e oeste em
estradas secundárias tipo puzzle, os terrenos agrícolas reduzidos a pintas verdes,
amarelas e castanhas, pontilhismo pastoral. Debrucei-me sobre o volante, a fazer zapping
no rádio, passando de canções country lamechas para rock cristão e ruído de estática. O
sol esforçado de março conseguiu aquecer o carro, pôs as minhas grotescas raízes ruivas
em chamas. O calor e a cor fez-me pensar novamente em sangue. No banco do
passageiro, estava uma minigarrafa de vodca que eu tencionava emborcar assim que
chegasse à prisão, uma dose automedicada de entorpecimento. Precisei de uma força de
vontade invulgar para não a despejar goela abaixo pelo caminho, com uma mão no volante
e a cabeça inclinada para trás.
Como um passe de magia, no instante em que pensei Estou quase a chegar, uma placa
minúscula apareceu no horizonte amplo e plano. Soube exatamente o que estaria escrito
nela: Bem-vindo a Kinnakee, o Coração da América! em letras cursivas dos anos 50. E
assim era, e consegui distinguir uma saraivada de buracos de bala no canto inferior
esquerdo, no sítio onde Runner a atingiu umas décadas atrás, ao passar de carrinha.
Depois, aproximei-me e percebi que os buracos de bala eram imaginação minha. Esta placa
era nova e estava intacta, mas as letras eram iguais às antigas: Bem-vindo a Kinnakee, o
Coração da América! Mantiveram a mentira, fizeram bem. Passei pela placa e surgiu
outra: Estabelecimento Prisional de Kinnakee Kansas, próxima à esquerda. Segui a
indicação, rumando para oeste em terras que em tempos pertenceram à quinta dos Evelee.
Aha, bem feito para vocês, Evelee, pensei, mas não me conseguia lembrar porque é que os
Evelee eram maus. Só me lembrava que eram.
Abrandei enquanto descia aquela estrada nova, nos confins da orla da povoação.
Kinnakee nunca tinha sido uma terra próspera, não passava de um aglomerado de quintas
em dificuldades e mansões otimistas de contraplacado derivadas de um boom petrolífero
escandalosamente curto. Agora era pior. A prisão não tinha salvado a terra. A rua estava
ladeada de lojas de penhores e casas decrépitas, ainda não tinham dez anos e já se
encontravam em mau estado. Vi crianças com ar atordoado paradas a meio de quintais
sujos. Havia montes de lixo em todos os cantos: embalagens de comida, palhinhas, pontas
de cigarro. Em cima de um passeio, alguém abandonara uma refeição inteira de takeaway:
caixa de esferovite, garfo de plástico, copo de esferovite. Na sarjeta, estava um punhado
de batatas fritas com ketchup. Até as árvores tinham um ar miserável: enfezadas,
mirradas e recusando-se teimosamente a florir. Ao fundo do quarteirão, um casal jovem e
mal-amanhado estava sentado ao frio, num banco da Dairy Queen, especado a olhar para o
trânsito como se estivesse a ver televisão.
Num poste telefónico ali perto, adejava uma fotocópia ampliada de uma adolescente
sisuda, desaparecida desde outubro de 2007. Mais dois quarteirões e uma folha que pensei
ser uma cópia do mesmo poster afinal era de outra miúda desaparecida, desta vez em
junho de 2008. Ambas as raparigas tinham um ar desleixado e mal-humorado, o que
explicava por que motivo não tinham direito ao tratamento que fora votado a Lisette
Stephens. Tomei nota mentalmente para tirar uma fotografia bonita e sorridente de mim
própria, na eventualidade de um dia eu desaparecer.
Mais uns minutos e a prisão surgiu no meio de uma grande clareira queimada pelo sol.
Era menos imponente do que eu imaginara, das poucas vezes em que tentara imaginá-
la. Tinha um ar de subúrbio em expansão, podia ser confundida com os escritórios
regionais de uma empresa de refrigeração, ou com a sede de uma empresa de
telecomunicações, não fosse o arame farpado que cercava os muros. Os rolos de arame
lembraram-me o fio do telefone sobre o qual Ben e a minha mãe andavam sempre a
discutir, o fio em que estávamos constantemente a tropeçar. Debby foi cremada com uma
pequena cicatriz em forma de explosão estelar no pulso por causa daquele maldito fio.
Tossi de propósito só para ouvir barulho.
Entrei no parque de estacionamento e o piso alcatroado e liso soube-me às mil
maravilhas depois de uma hora de estradas esburacadas. Estacionei e fiquei sentada,
especada a olhar, com o carro a balouçar por causa de tantas horas de trajeto. Do interior
dos muros chegava-me o murmúrio e os gritos de homens a apanharem ar no pátio. O
vodca desceu-me pela goela abaixo como um travo medicinal. Masquei um pedaço duro de
pastilha elástica de mentol, uma vez, duas vezes, depois cuspi-a para uma embalagem
vazia de sandes, sentindo as orelhas a aquecerem do álcool. A seguir, enfiei as mãos por
dentro da camisola e desapertei o sutiã, sentindo as mamas descaírem, grandes e moles,
ao som distante de assassinos a brincarem no pátio. Foi uma coisa que Lyle me
aconselhou, gaguejando e escolhendo as palavras a dedo: Só lhe dão uma oportunidade para
passar no detetor de metais. Não é como nos aeroportos, na prisão não têm aquela coisa
que parece uma varinha mágica. Por isso, deixe tudo o que for de metal no carro. Hum,
incluindo, hum, no caso das mulheres, ah, o, acho que têm arame por baixo? Os sutiãs?
Isso seria, poderia ser um problema.
Tudo bem. Enfiei o sutiã no porta-luvas e deixei as mamas balouçarem à solta.
Na prisão, os guardas eram todos muito educados, como se tivessem visto vários
vídeos pedagógicos sobre a delicadeza: sim, minha senhora, por aqui, minha senhora. A
maneira como olhavam para uma pessoa não tinha profundidade, a minha imagem fazia
ricochete neles e voltava para trás, eu que ficasse com a batata quente. Revista,
perguntas, sim minha senhora e uma longa espera. Portas abriram e fecharam, abriram e
fecharam, enquanto eu transpunha uma série delas, todas de tamanhos diferentes, como
um País das Maravilhas feito de metal. O chão fedia a lixívia e o ar cheirava a carne e a
humidade. Devíamos estar perto da cantina. Fui assolada por uma onda nauseada de
nostalgia, lembrando-me de mim e dos meus irmãos, os miúdos Day, e das nossas
refeições escolares subsidiadas pelo Estado: as mulheres de peito grande e cabelo húmido
do vapor da cozinha, a gritarem Almoço de graça! na direção da caixa registadora, quando
passávamos com um bocado de strogonoff e leite à temperatura ambiente.
Ben teve um bom sentido de oportunidade, pensei: a pena de morte no Kansas tinha
sido suspensa quando ocorreram os crimes (aqui, fiz uma pausa perante a minha
inquietante maneira nova de me exprimir: «quando ocorreram os crimes» em vez de
«quando Ben matou toda a gente»). Foi condenado a prisão perpétua. Pelo menos, não o
condenei à morte. Agora, estava parada à frente da porta lisa de metal, como a de um
submarino, da sala de visitas e o tempo a passar. «Não há nada a fazer senão fazê-lo, não
há nada a fazer senão fazê-lo.» O mantra de Diane. Tinha de parar de pensar em coisas
da família. O guarda que me acompanhou, um homem louro e hirto que me poupou a
conversa fiada, fez um gesto de faça favor.
Abri a porta e obriguei-me a entrar. Havia uma fila com cinco cubículos, um deles
ocupado por uma índia corpulenta a falar com o filho recluso. O cabelo preto da mulher
espetava-se-lhe nos ombros, com ar agressivo. Estava a murmurar monocordicamente
para o rapaz, que fazia espasmodicamente que sim com a cabeça, de telefone encostado
ao ouvido e olhos baixos.
Sentei-me duas cabinas mais à frente e estava a instalar-me, a inspirar fundo, quando
Ben entrou disparado porta adentro, como um gato a fugir para a rua. Era baixo, devia
medir 1,67 m, e o cabelo tinha adquirido um tom de ferrugem escura. Usava-o comprido, a
tocar nos ombros e enfiado menineiramente para trás das orelhas. Com uns óculos de
aros metálicos e um fato-macaco cor de laranja, parecia um mecânico diligente. A sala
era pequena, por isso ele chegou junto de mim em três passadas, sem parar de sorrir
discretamente. Um sorriso luminoso. Sentou-se, encostou uma mão ao vidro e fez-me
sinal com a cabeça para eu o imitar. Não consegui, não fui capaz de pressionar a palma da
minha mão de encontro à dele, húmida como um naco de fiambre. Em vez disso, dirigi-lhe
um sorriso tímido e peguei no telefone.
Do lado de lá do vidro, ele segurou no auscultador, pigarreou, depois baixou os olhos e
começou a dizer qualquer coisa, mas calou-se. Durante quase um minuto, a única coisa
que me deu a ver foi o cocuruto da cabeça. Quando a levantou, estava a chorar, duas
lágrimas corriam-lhe pelas faces abaixo. Enxugou-as com as costas da mão e sorriu, com
os lábios a tremerem.
— Meu Deus, estás igualzinha à mãe — disse ele abruptamente, deitando as palavras
cá para fora, e tossiu, limpou mais lágrimas. — Não sabia que eras assim. — Os olhos
dele saltitaram do meu rosto para as suas mãos. — Oh, meu Deus, Libby, como é que tu
estás?
Aclarei a garganta e disse:
— Estou bem. Achei que estava na hora de te vir visitar. — Por acaso, até acho que
sou parecida com a mãe, pensei. Sou mesmo. E depois pensei: o meu irmão mais velho, e
senti o mesmo orgulho no peito que sentia em miúda. Ele estava na mesma, o mesmo
rosto pálido, o mesmo nariz largo e arrebitado dos Day. Nem sequer tinha crescido muito
desde os crimes. Como se ambos tivéssemos ficado tolhidos naquela noite. O meu irmão
mais velho. E ele estava feliz por me ver. Ele sabe manipular-te, disse para mim própria, à
laia de aviso. A seguir, pus essa ideia de lado.
— Ainda bem, ainda bem — respondeu Ben, continuando de olhos postos na mão. —
Pensei muito em ti ao longo destes anos, a pensar no que seria feito de ti. É o que uma
pessoa faz aqui dentro... pensa e interroga-se. De vez em quando, recebo uma carta de
alguém a falar-me de ti, mas não é a mesma coisa.
— Pois não — concordei. — Tratam-te bem? — perguntei, estupidamente, de olhos
vítreos e, de repente, desatei a chorar e só me apetecia dizer desculpadesculpadesculpa.
Mas não disse nada, fiquei a olhar para uma constelação de acne que ele tinha à volta do
canto da boca.
— Estou bem, Libby. Libby, olha para mim. — Os meus olhos nos dele. — Estou bem. A
sério que estou. Acabei o liceu aqui dentro, o que provavelmente nunca teria feito lá fora,
e estou a tirar um curso universitário. Inglês. Ando a ler Shakespeare. — Fez o som
gutural que tentava fazer passar sempre por uma gargalhada. — Por Deus, macaquinho!
Não percebi o significado desta expressão, mas sorri, porque era o que ele esperava
que eu fizesse.
— Meu Deus, Libby, só me apetece olhar para ti. Não fazes ideia de como é bom verte.
Merda, desculpa. Estás mesmo parecida com a mãe, as pessoas não te dizem isso
constantemente?
— Quem? Não me dou com ninguém. O Runner foi-se embora, não sei para onde, a
Diane e eu não nos falamos. — Quis que ele tivesse pena de mim, que chapinhasse no
meu grande e vazio charco de piedade. Ali estávamos nós, os últimos Day. Se ele tivesse
pena de mim, teria mais dificuldade em recriminar-me. As lágrimas não paravam de me
vir aos olhos e acabei por deixá-las correr livremente. Duas cadeiras mais abaixo, a
mulher índia estava a despedir-se, desfeita num pranto que era tão grave como a voz.
— Quer dizer que estás completamente sozinha? Isso não é bom. Deviam ter tratado
melhor de ti.
— O que é que te aconteceu, algum renascimento espiritual? — disse eu, de supetão,
com o rosto molhado. Ben franziu o sobrolho, sem perceber. — Foi isso? Perdoas-me? Não
devias ser querido para mim. — Mas eu ansiava por isso, tinha urgência em sentir o alívio,
como quando pousamos um prato a escaldar.
— Não sou assim tão querido — disse ele. — Sinto muita raiva de muitas pessoas,
mas tu não és uma delas.
— Mas... — disse eu, e engoli um soluço como uma criança. — Mas o meu
testemunho... Eu acho que talvez tenha, não sei, não sei... — Só pode ter sido ele, lembrei
novamente a mim própria.
— Oh — disse ele, como se fosse um incómodo menor, um pequeno contratempo
numas férias de verão que mais valia esquecer. — Estou a ver que não lês as minhas
cartas, pois não?
Tentei explicar com um encolher de ombros inadequado.
— Bom, o teu testemunho... A única coisa que me espantou foi as pessoas terem
acreditado em ti. Não fiquei surpreendido com o que disseste. Estavas numa situação
completamente marada. E sempre foste uma mentirosazinha. — Ele riu-se outra vez e eu
imitei-o, gargalhadas rápidas e iguais, como se tivéssemos apanhado a mesma tosse. —
Não, agora a sério, o facto de eles terem acreditado em ti... Eles queriam-me aqui dentro,
iam meter-me aqui dentro, e o teu testemunho só lhes serviu de prova. Uma miúda de
sete anos. Meu Deus, eras tão pequenina... — Virou os olhos para a direita, perdido num
devaneio. Depois, recompôs-se. — Sabes do que me lembrei no outro dia, não sei porquê?
Lembrei-me do maldito coelho de porcelana, aquele que a mãe nos obrigava a pôr na
sanita.
Abanei a cabeça, sem fazer ideia do que ele estava a falar.
— Não te lembras disso, do coelhinho? Como a sanita estava meio estragada, se a
usássemos duas vezes no espaço de uma hora, a porcaria não escoava como devia. Por
isso, se um de nós cagasse quando o autoclismo não estava a funcionar, tinha de fechar o
tampo e pôr o coelhinho em cima, para que ninguém abrisse a sanita e visse o fundo cheio
de merda. Porque vocês desatavam aos gritos. Não acredito que não te lembres disso. Era
tão estúpido, deixava-me furioso. Furioso por ter de partilhar a casa de banho com vocês
todas, furioso por viver numa casa só com uma sanita que nem sequer funcionava bem,
furioso por causa do coelhinho. O coelhinho... — Ele soltou o seu riso contido. — Eu achava
o coelho, sei lá, humilhante. Como se me tirasse a virilidade. Aquilo para mim era uma
afronta pessoal. Achava que a mãe devia ter arranjado uma estatueta em forma de
automóvel ou de arma para eu usar. Deixava-me fulo da vida. Ficava parado a olhar para a
sanita, a pensar: «Recuso-me a pousar o raio do coelho no tampo» e, depois, quando já ia
a sair da casa de banho, pensava: «Foda-se, tenho de pôr o coelho, senão uma delas entra
aqui e desata aos gritos.» Vocês eram umas guinchonas, ainda por cima estridentes. E
como eu não queria ter de lidar convosco, punha a porra do coelho em cima da porra da
sanita. — Riu-se outra vez, mas a recordação afetou-o, ficou com o rosto corado e o nariz
suado. — É nesse tipo de coisa que uma pessoa pensa aqui dentro. Coisas estranhas.
Tentei desencantar o tal coelho na minha memória, tentei fazer o inventário da casa de
banho e das coisas dentro dela, mas não me consegui lembrar de nada, só uma mão-cheia
de água.
— Desculpa, Libby, é uma recordação estranha para eu atirar para cima de ti.
Aproximei a ponta de um dedo do fundo da janela de vidro e disse:
— Não faz mal.
Ficámos calados durante uns momentos, fingindo que estávamos a ouvir um barulho
que não existia. Ainda agora tínhamos começado, mas a visita já estava quase no fim.
— Ben, posso perguntar-te uma coisa?
— Acho que sim. — O rosto dele fechou-se, preparando-se para o que aí vinha.
— Não queres sair daqui?
— Claro que quero.
— Porque é que não dizes à polícia qual é o teu álibi para aquela noite? Não cabe na
cabeça de ninguém que tenhas dormido no celeiro.
— Porque não tenho um bom álibi, Libby. Pura e simplesmente, não tenho. Acontece.
— Porque estavam zero graus lá fora. Lembro-me muito bem. — Por baixo do balcão,
esfreguei o meu coto e mexi os dois dedos do pé direito.
— Eu sei, eu sei. Nem fazes ideia. — Virou o rosto. — Não fazes ideia das semanas,
anos, que passei aqui dentro a desejar ter feito tudo de maneira diferente. A mãe e a
Michelle e a Debby talvez não estivessem mortas, se eu tivesse... agido como um homem.
E não como um puto palerma. Escondido no celeiro, irritado com a mãe. — Uma lágrima
caiu no auscultador, fiquei com a sensação de a ter ouvido fazer ping! — Não faz mal
estar a ser castigado por aquela noite... sinto-me... bem com isso.
— Mas... não entendo. Porque é que foste tão pouco... prestável em relação à polícia?
Ben encolheu os ombros e, uma vez mais, o seu rosto tornou-se inexpressivo como
uma máscara fúnebre.
— Oh, sei lá. Eu era um puto tão inseguro. Fogo, Libby, eu tinha quinze anos. Quinze.
Não sabia o que era ser homem. O Runner não me ensinou nada. Eu era um puto para
quem ninguém olhava duas vezes e, de repente, as pessoas desataram a tratar-me como
se eu é que lhes metesse medo. De um instante para o outro, como que por magia, eu era
um homem importante.
— Um homem importante acusado de ter assassinado a família toda.
— Se me quiseres chamar estúpido, Libby, chama à vontade. Para mim, a coisa era
simples: eu disse que não era culpado, sabia que não era culpado e... não sei, chama-lhe
mecanismo de defesa?, mas não levei aquilo a sério como devia. Se tivesse reagido como
toda a gente esperava que eu reagisse, provavelmente não estaria aqui. À noite, chorava
desalmadamente com a cabeça na almofada, mas armava-me em durão à vista de toda a
gente. Lixei tudo, acredita que eu sei disso. Mas não se pode pôr um puto de quinze anos
no banco dos réus, num tribunal cheio de gente que ele conhece, e esperar um mar de
lágrimas. Eu pensava, como é óbvio, que ia ser ilibado e que depois toda a gente na escola
me ia admirar por ser um gajo mau. Até sonhava acordado com essa merda. Nunca me
passou pela cabeça que corria o risco de... de acabar assim. — Estava a chorar, agora, e
limpou novamente a bochecha. — Como vês, já não me importo que me vejam a chorar.
— Temos de remediar isto — disse eu, por fim.
— Não dá para remediar, Libby, a não ser que descubras quem foi o culpado.
— Precisas de novos advogados para tratarem do processo — raciocinei em voz alta.
— As coisas que eles conseguem fazer com o ADN, hoje em dia... — Para mim, o ADN era
uma espécie de coisa mágica, uma substância qualquer pegajosa e brilhante que estava
constantemente a tirar pessoas da cadeia.
Ben riu-se por entre os lábios cerrados, como fazia quando éramos miúdos, sem deixar
que desfrutássemos do riso.
— Pareces o Runner a falar — disse ele. — De dois em dois anos, recebo uma carta
dele: ADN! Precisamos de deitar a mão àquele ADN. Como se eu tivesse um cacifo cheio
de ADN, mas não o quisesse partilhar. A-D-N! — repetiu, imitando o aceno de cabeça de
Runner, de olhos tresloucados.
— Sabes onde está ele?
— A última carta trazia a morada do Asilo Masculino de Bert Nolan, algures em
Oklahoma. Ele pedia-me para lhe mandar quinhentos dólares, para poder continuar a fazer
investigações em meu nome. Seja quem for o tal Bert Nolan, já se deve ter arrependido do
dia em que deu guarida ao raio do Runner. — Coçou o braço, levantando a manga o
suficiente para que eu visse uma tatuagem com o nome de uma mulher. Terminava em
olly ou ally. Fiz questão de que ele me visse a olhar.
— Ah, isto? Uma velha paixão. Começámos por trocar cartas. Pensei que estava
apaixonado por ela, que me ia casar com ela, mas afinal ela não queria ficar presa a um
homem que estava condenado a prisão perpétua. Bem que me podia ter dito isso antes de
eu fazer a tatuagem.
— Deve ter doído.
— Nem cócegas fez.
— Eu estava a falar da rutura.
— Oh, foi uma merda.
O guarda fez-nos sinal a indicar que já só tínhamos três minutos e Ben revirou os
olhos:
— É difícil decidir o que dizer em três minutos. Em dois minutos, começa-se a fazer
planos para a próxima visita. Em cinco minutos, consegue-se acabar a conversa. Mas três
minutos? — Espetou os lábios para fora e fez um barulho de chupão. — Espero que me
venhas ver outra vez, Libby. Já não me lembrava das saudades que tinha de casa. Estás
igualzinha a ela.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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