JOHNNY ME CONTOU da namorada de Nova York naquela noite. O nome dela era Raquel. Johnny
até a conhecia. Ele morava em Nova York, como Gat, mas mais ao sul da cidade, com Carrie e
Ed, enquanto Gat morava no norte com sua mãe. Johnny disse que Raquel fazia aula de dança
moderna e usava roupas pretas.
O irmão de Mirren, Taft, me disse que Raquel tinha mandado para Gat um pacote de
brownies caseiros. Liberty e Bonnie me contaram que Gat tinha fotos dela no celular.
Gat não mencionou nada sobre ela, mas não conseguia me olhar nos olhos.
Na primeira noite, chorei, roí as unhas e tomei vinho roubado da despensa de Clairmont.
Girei impetuosamente céu adentro, furiosa, golpeando estrelas em seu ancoradouro,
rodopiando e vomitando.
Bati o punho na parede do chuveiro. Lavei a vergonha e a raiva em água fria, muito fria.
Depois fiquei tremendo na cama como o cachorro abandonado que era, pele tremendo sobre
os ossos.
Na manhã seguinte e em todos os dias desde então, agi normalmente. Ergui meu queixo
quadrado.
Velejamos e acendemos fogueiras. Ganhei o torneio de tênis.
Fizemos sorvete e tomamos sol.
Uma noite, nós quatro organizamos um piquenique na praia pequena. Mariscos no vapor,
batata e milho. Os empregados que prepararam. Eu nem sabia o nome deles.
Johnny e Mirren desceram com a comida em assadeiras. Comemos em volta das chamas da
fogueira, deixando pingar manteiga na areia. Depois Gat fez sanduíche de marshmallow com
bolacha de três andares para todos. Olhei para suas mãos à luz do fogo, colocando
marshmallows em um longo graveto. Onde antes havia nossos nomes escritos, agora ele tinha
começado a escrever títulos de livros que gostaria de ler.
Naquela noite, na esquerda: O ser e. Na direita: o nada.
Eu tinha escrito nas mãos também. Uma citação de que gostava. Na esquerda: Viva o. Na
direita: hoje.
— Querem saber o que estou pensando? — Gat perguntou.
— Sim — eu disse.
— Não — disse Johnny.
— Estou me perguntando como podemos dizer que o avô de vocês é dono dessa terra. Não
legalmente, mas de fato.
— Por favor, não vai começar a falar dos crimes dos peregrinos — resmungou Johnny.
— Não. O que estou perguntando é: como podemos dizer que a terra pertence a qualquer
pessoa? — Gat fez um gesto englobando a areia, o mar, o céu.
Mirren deu de ombros.
— As pessoas compram e vendem terra o tempo todo.
— Não podemos falar de sexo ou assassinato? — Johnny perguntou.
Gat o ignorou.
— Talvez ninguém devesse ser proprietário de terra. Ou talvez devessem existir limites de
propriedade. — Ele se inclinou para a frente. — Quando fui para a Índia, no inverno, como
voluntário, construímos banheiros. Porque as pessoas de lá, daquela vila, não tinham.
— Todo mundo já sabe que você foi para a Índia — Johnny afirmou. — Você já disse, tipo,
umas quarenta e sete vezes.
Essa é uma coisa que eu adoro no Gat: ele é tão empolgado, tão extremamente interessado
no mundo, que tem problemas em imaginar que outras pessoas possam ficar entediadas com o
que ele está dizendo. Mesmo quando lhe dizem abertamente. Mas, também, ele não gosta de
facilitar para nós. Quer nos fazer pensar — mesmo quando não estamos com vontade.
Gat cutucou as brasas com um graveto.
— Só estou dizendo que devíamos conversar sobre isso. Nem todo mundo tem ilhas
particulares. Algumas pessoas trabalham nelas. Algumas trabalham em fábricas. Algumas não
têm trabalho. Outras não têm o que comer.
— Pare de falar agora — disse Mirren.
— Pare de falar para sempre — disse Johnny.
— Em Beechwood, temos uma visão distorcida da humanidade — Gat afirmou. — Acho
que vocês não percebem isso.
— Cala a boca — eu disse. — Eu te dou mais chocolate se ficar quieto.
E ele ficou, mas seu rosto se contorceu. Levantou de repente, pegou uma pedra na areia e a
atirou com toda a força. Tirou o moletom e os sapatos. Então entrou no mar de calça jeans.
Zangado.
Observei os músculos de seus ombros ao luar, a água espirrando conforme ele avançava.
Gat mergulhou e eu pensei: se eu não for atrás dele agora, aquela Raquel vai ficar com ele. Se
eu não o seguir agora, ele vai se afastar. Dos Mentirosos, da ilha, de nossa família, de mim.
Tirei o suéter e segui Gat mar adentro de vestido. Caí na água, nadando até onde ele estava
boiando de costas. O cabelo molhado estava para trás, mostrando a fina cicatriz em uma das
sobrancelhas.
Encostei em seu braço.
— Gat.
Ele se assustou. Ficou em pé com o mar na altura da cintura.
— Desculpe — sussurrei.
— Eu não mando você calar a boca, Cady — ele disse. — Nunca te disse isso.
— Eu sei.
Ele ficou em silêncio.
— Por favor, não cale a boca — eu disse.
Senti os olhos dele percorrerem meu corpo coberto pelo vestido molhado.
— Eu falo demais — ele reconheceu. — Transformo tudo em política.
— Gosto quando você fala — eu disse, porque era verdade. Quando parava para escutar,
realmente gostava.
— É que tudo me faz… — ele parou. — As coisas estão muito erradas no mundo, só isso.
— É.
— Talvez fosse melhor eu… — Gat pegou minhas mãos e as virou para olhar as palavras
escritas no dorso. — Talvez fosse melhor eu “viver o hoje” e não ficar debatendo o tempo
todo.
Minha mão estava em sua mão molhada.
Estremeci. Seus braços estavam descobertos e úmidos. Costumávamos ficar de mãos dadas
o tempo todo, mas ele não tinha me tocado o verão inteiro.
— É bom que você enxergue o mundo dessa forma — eu disse a ele.
Gat me soltou e voltou a flutuar na água.
— Johnny quer que eu cale a boca. Estou deixando você e Mirren entediadas.
Olhei para o perfil dele. Não era apenas Gat. Era contemplação e entusiasmo. Ambição e
café forte. Tudo aquilo estava lá, nas pálpebras de seus olhos castanhos, em sua pele macia,
no lábio inferior protuberante. Havia uma espiral de energia lá dentro.
— Vou te contar um segredo — sussurrei.
— O quê?
Estiquei o braço e o toquei novamente. Ele não recuou.
— Quando falamos “Cala a boca, Gat”, não é isso que queremos dizer.
— Não?
— Significa que te amamos. Você nos lembra de que somos uns cretinos egoístas. Você não
é um de nós, nesse sentido.
Ele baixou os olhos. Sorriu.
— É isso que você quer dizer, Cady?
— É — respondi a ele. Deixei meus dedos percorrerem seu braço, que boiava esticado.
— Não acredito que vocês estão nessa água! — Johnny estava parado com água até os
tornozelos, a barra da calça dobrada. — É o Ártico. Meus dedos estão congelando.
— Você acostuma depois que entra — Gat gritou em resposta.
— Sério?
— Não seja molenga! — berrou Gat. — Vire homem e entre logo na água.
Johnny riu e entrou correndo. Mirren foi atrás.
E foi… extraordinário.
A noite avultante sobre nós. O sussurro do mar. O som das gaivotas.
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