domingo, 16 de agosto de 2015

AMY ELLIOTT DUNNE O DIA DO



Estou muito mais feliz agora que estou morta.
Tecnicamente, desaparecida. Em breve, considerada morta. Mas para simplificar, digamos
morta. São apenas horas, mas já me sinto melhor: articulações soltas, músculos relaxados. Em
dado momento desta manhã me dei conta de que meu rosto parecia estranho, diferente. Olhei pelo
retrovisor — a horrenda Carthage setenta quilômetros atrás de mim, meu marido autossuficiente
fazendo hora em seu bar pegajoso enquanto a tragédia balança em uma fina corda de piano logo
acima de sua cabeça alienada de merda — e percebi que estava sorrindo. Rá. Isso é novidade.
Minha lista de tarefas para hoje — uma das muitas listas que fiz no último ano — está no
banco do carona, uma gota de sangue ao lado do item 22: me cortar. Mas Amy tem medo de
sangue, dirão os leitores do diário. (O diário, sim! Vamos chegar ao meu brilhante diário.) Não,
não tenho, nem um pouco, mas no último ano fiquei dizendo que tinha. Disse a Nick
provavelmente meia dúzia de vezes como tinha medo de sangue, e quando ele falou “Não me
lembro de você ter tanto medo de sangue”, retruquei: “Eu disse a você, disse tantas vezes!” Nick
tem uma memória tão ruim para os problemas dos outros que simplesmente supôs que era
verdade. Desmaiar no centro de doação de plasma foi um belo toque. Eu realmente fiz aquilo,
não simplesmente escrevi que fiz. (Não se preocupe, vamos esclarecer isto: a verdade, a não
verdade, e o que pode muito bem ser verdade.)
O item 22, me cortar, está na lista há muito tempo. Agora é real, e meu braço dói. A pessoa
precisa ter uma disciplina muito especial para se cortar além da camada do corte de papel, até o
músculo. Você quer muito sangue, mas não a ponto de fazer você desmaiar, e ser encontrada
horas depois em uma piscina infantil de sangue com muitas explicações a dar. Primeiro levei um
estilete ao pulso, mas olhando para aquela rede de veias eu me senti como uma especialista em
bombas em um filme de ação: corte a linha errada e você morre. Acabei me cortando na parte
interna do braço, mordendo um pano para não gritar. Um bom corte comprido e fundo. Sentei de
pernas cruzadas no chão da cozinha por dez minutos, deixando o sangue escorrer até fazer uma
poça densa e bela. Depois limpei tão mal quanto Nick teria feito depois de esmagar minha
cabeça. Queria que a casa contasse uma história de conflito entre verdadeiro e falso; a cena na
sala de estar parece forjada, mas o sangue foi limpo: não pode ser Amy!
Então a automutilação valeu. Ainda assim, horas depois, o corte queima sob a manga, abaixo
do torniquete. (Item 30: faça um curativo com cuidado, garantindo que nenhum sangue pingou
onde não deveria. Enrole o estilete e guarde no bolso para jogar fora depois.)
Item 18: Forjar a cena na sala de estar. Virar divã. Confere.
Item 12: Embrulhar a primeira pista em sua caixa e a colocar fora do caminho para que a
polícia a encontre antes que o marido tonto pense em procurar por ela. Ela tem de fazer parte do
registro policial. Quero que ele seja obrigado a iniciar a caça ao tesouro (seu ego fará com que
termine). Confere.
Item 32. Vestir roupas comuns, enfiar cabelos em um chapéu, descer a margem do rio e andar
rapidamente pela beirada, a água batendo centímetros abaixo, até chegar ao limite do
condomínio. Fazer isso embora saiba que os Teverer, únicos vizinhos com vista para o rio,
estarão na igreja. Fazer isso porque nunca se sabe. Você sempre dá o passo a mais que os outros
não dão, você é assim.
Item 29: Dizer adeus a Bleecker. Sentir seu halitozinho fedido de gato pela última vez. Encher
sua tigela de comida para o caso de as pessoas se esquecerem de alimentá-lo quando tudo
começar.
Item 33: Cair fora.
Confere, confere, confere.
* * *
Posso contar mais sobre como fiz tudo, mas antes quero que você me conheça. Não a Amy do
Diário, que é uma obra de ficção (e Nick disse que eu não era escritora de verdade, por que um
dia o escutei?), mas eu, a Verdadeira Amy. Que tipo de mulher faria tal coisa? Deixe-me contar
uma história para você, uma história de verdade, para que comece a compreender.
Para início de conversa: eu nunca deveria ter nascido.
Minha mãe teve cinco abortos e dois bebês natimortos antes de mim.
Um por ano, no outono, como se fosse uma tarefa da estação, como rotação de culturas. Todas
meninas; todas chamadas Esperança. Tenho certeza de que foi sugestão do meu pai — seu
impulso otimista, sua seriedade descolorida: Não podemos perder a esperança, Marybeth. Mas
perder a Esperança foi exatamente o que eles fizeram, repetidamente.
Os médicos ordenaram que meus pais parassem de tentar; eles se recusaram. Não são pessoas
que desistem. Tentaram e tentaram, e então vim eu. Minha mãe não esperava que eu sobrevivesse,
não conseguia pensar em mim como um bebê real, uma criança viva, uma garota que poderia ir
para casa. Eu teria sido Esperança 8 caso as coisas tivessem dado errado. Mas vim ao mundo
berrando, rosa-néon, elétrica. Meus pais ficaram tão surpresos que se deram conta de que não
haviam discutido um nome, não um nome de verdade, para uma criança de verdade. Durante meus
dois primeiros dias no hospital eles não me deram um nome. Toda manhã minha mãe ouvia a
porta do quarto se abrir e sentia a enfermeira esperando no umbral (sempre a imaginei vintage,
com saias brancas sacudindo e um daqueles chapéus dobrados parecidos com caixa de comida
chinesa). A enfermeira ficava ali esperando, e minha mãe perguntava sem nem sequer erguer os
olhos: “Ela ainda está viva?”
Quando permaneci viva, eles me chamaram de Amy, porque era um nome comum de garota,
um nome popular de garota, um nome que mil outros bebês receberam naquele ano, de modo que
talvez os deuses não percebessem aquele pequeno bebê aninhado entre os outros. Marybeth disse
que se fosse refazer tudo, teria me chamado de Lydia.
Cresci me sentindo especial, orgulhosa. Eu era a garota que lutara contra o esquecimento e
vencera. As chances eram de um por cento, mas eu consegui. No processo, arruinei o útero de
minha mãe — minha própria terra pré-natal arrasada. Marybeth nunca teria outro filho. Quando
criança, eu sentia um grande prazer com isso: apenas eu, apenas eu, só eu.
Minha mãe tomava chá quente nos dias dos nascimentos-mortes das Esperanças, sentada em
uma cadeira de balanço com um cobertor, e dizia estar apenas “passando um tempo comigo
mesma”. Nada dramático, minha mãe é sensível demais para cantar lamentos, mas ficava
pensativa, se distanciava, e eu não aceitava isso, coisinha carente que eu era. Subia no colo dela,
enfiava um desenho a lápis de cor no rosto dela, ou a lembrava de uma autorização para a escola
que precisava de atenção imediata. Meu pai tentava me distrair, tentava me levar ao cinema ou
me comprar com doces. Não importava qual fosse o artifício, não funcionava. Eu não daria à
minha mãe aqueles poucos minutos.
Sempre fui melhor que as Esperanças, eu era aquela que conseguira.
Mas também sempre fui ciumenta, sempre — sete princesas dançantes mortas. Elas podem
ser perfeitas sem nem ao menos tentar, sem nem ao menos enfrentar um momento de existência,
enquanto eu estou presa aqui na Terra, e todo dia devo tentar, e todo dia é uma chance de ser
menos que perfeita.
É uma forma exaustiva de viver. Vivi assim até os trinta e um anos.
E então, por uns dois anos, tudo ficou bem. Por causa de Nick.
Nick me amava. Um tipo de amor com oito as: ele me amaaaaaava. Mas ele não amava a
mim, eu mesma. Nick amava uma garota que não existe. Eu estava fingindo, como muitas vezes
fazia, fingindo ter uma personalidade. Não consigo evitar, foi o que sempre fiz: assim como
algumas mulheres trocam de estilo regularmente, eu troco de personalidade. Qual persona parece
boa, qual é cobiçada, qual está em voga? Acho que a maioria das pessoas faz isso, apenas não
admite, ou se acomoda em uma persona porque é preguiçosa ou burra demais para mudar.
Naquela noite da festa no Brooklyn eu estava interpretando a garota que tem estilo, a garota
que um homem como Nick quer: a Garota Legal. Os homens sempre dizem isso como o elogio
definidor, não é? Ela é uma garota legal. Ser a Garota Legal significa que eu sou uma mulher
gostosa, brilhante, divertida, que adora futebol, pôquer, piadas indecentes e arrotos, que joga
video game, bebe cerveja barata, adora ménage à trois e sexo anal e enfia cachorros-quentes e
hambúrgueres na boca como se fosse anfitriã da maior orgia gastronômica do mundo ao mesmo
tempo em que de alguma forma mantém um manequim 36, porque Garotas Legais são acima de
tudo gostosas. Gostosas e compreensivas. Garotas Legais nunca ficam com raiva. Apenas sorriem
de uma forma desapontada e amorosa e deixam seus homens fazerem o que quiserem. Vá em
frente, me sacaneie, não ligo, sou a Garota Legal.
Os homens realmente acham que essa garota existe. Talvez se deixem enganar porque muitas
mulheres estão dispostas a fingir ser essa garota. Durante muito tempo a Garota Legal me
ofendeu. Eu costumava ver homens — amigos, colegas de trabalho, estranhos — babarem por
essas medonhas mulheres fingidas, e eu queria sentar com esses homens e dizer calmamente:
Você não está saindo com uma mulher, você está saindo com uma mulher que viu filmes
demais escritos por homens socialmente estranhos que gostariam de acreditar que esse tipo de
mulher existe e poderia beijá-los. Tinha vontade de agarrar o pobre coitado pela lapela ou
mochila e dizer: A piranha na verdade não gosta tanto de cachorros-quentes com chili —
ninguém gosta tanto de cachorros-quentes com chili! E as Garotas Legais são ainda mais
patéticas: elas nem sequer fingem ser a mulher que querem ser, fingem ser a mulher que um
homem quer que elas sejam. Ah, e se você não é uma Garota Legal, imploro que você não
acredite que seu homem não quer a Garota Legal. Pode ser uma versão ligeiramente diferente —
talvez ele seja vegetariano, então a Garota Legal adora carne de soja e é ótima com cachorros; ou
talvez seja um artista de vanguarda, de modo que a Garota Legal é uma nerd tatuada e de óculos
que adora revistas em quadrinhos. Há variações na fachada, mas, acredite em mim, ele quer a
Garota Legal, que é basicamente a garota que gosta das mesmas merdas que ele e nunca reclama.
(Como você sabe que não é a Garota Legal? Porque ele diz coisas como “gosto de mulheres
fortes”. Se ele diz isso a você, em algum momento irá trepar com outra. Porque “gosto de
mulheres fortes” é código para “odeio mulheres fortes”.)
Esperei pacientemente — anos — para que o pêndulo oscilasse para o outro lado, para que
os homens começassem a ler Jane Austen, aprendessem a tricotar, fingissem amar a revista
Cosmopolitan, organizassem festas de scrapbooks e dessem uns amassos entre si enquanto nós
assistíamos, babando. E então diríamos: É, ele é um Cara Legal.
Mas isso nunca aconteceu. Em vez disso, mulheres de todos os Estados Unidos conspiraram
para nossa degradação! Em pouco tempo a Garota Legal se tornou a garota-padrão. Os homens
acreditaram que ela existia — não era apenas uma garota dos sonhos em um milhão. Toda garota
tinha que ser essa garota, e, se você não era, então havia algo de errado com você.
Mas é tentador ser a Garota Legal. Para alguém como eu, que gosta de vencer, é tentador
querer ser a garota que todo cara deseja. Quando conheci Nick, soube imediatamente que era o
que ele queria e, por ele, acho que estava disposta a tentar. Aceito minha parcela de culpa. A
questão é que inicialmente fiquei louca por ele. Eu o achei perversamente exótico, um bom e
velho garoto do Missouri. Era muito gostoso tê-lo por perto. Ele despertava em mim coisas que
eu não sabia que existiam: uma leveza, um humor, um relaxamento. Era como se ele me
esvaziasse e depois me enchesse de penas. Ele me ajudou a ser a Garota Legal — não poderia ter
sido a Garota Legal com mais ninguém. Não teria querido. Não posso dizer que não gostei de
parte daquilo: comi biscoitos recheados de marshmallow, andei descalça, parei de me
preocupar. Assisti a filmes idiotas e comi comidas cheias de aditivos químicos. Não pensei dois
lances à frente em relação a tudo, esse foi o segredo. Bebia uma coca e não me preocupava em
como reciclar a lata ou com o ácido fermentando em minha barriga, um ácido tão forte que era
capaz de limpar uma moeda. Assistíamos a um filme idiota e eu não me preocupava com o
sexismo ofensivo ou a falta de minorias nos papéis principais. Nem sequer me preocupava se o
filme fazia sentido. Não me preocupava com nada que vinha depois. Nada tinha consequência, eu
estava vivendo o momento, e podia sentir que ficava mais superficial e burra. Mas também feliz.
Até Nick, eu nunca me sentira como uma pessoa de verdade, porque sempre fui um produto.
Amy Exemplar tinha de ser brilhante, criativa, gentil, atenciosa, esperta e feliz. Só queremos que
você seja feliz. Rand e Marybeth diziam isso o tempo todo, mas nunca explicaram como. Tantas
lições, oportunidades e vantagens, e eles nunca me ensinaram como ser feliz. Lembro-me de
sempre ficar perplexa com as outras crianças. Eu ia para uma festa de aniversário, via as outras
crianças rindo e fazendo caretas, e tentava fazer também, mas não entendia por quê. Ficava
sentada ali com o elástico do chapéu de aniversário apertando meu queixo, com a cobertura
granulada do bolo deixando meus dentes azuis, e tentava entender por que aquilo era divertido.
Com Nick, finalmente entendi. Porque ele era muito divertido. Era como namorar uma lontra
marinha. Foi a primeira pessoa naturalmente feliz que conheci do meu nível. Era brilhante,
deslumbrante, engraçado, encantador e encantado. As pessoas gostavam dele. As mulheres o
adoravam. Eu achava que seríamos a união perfeita: o casal mais feliz do pedaço. Não que o
amor seja uma competição. Mas não entendo a razão de estar junto se não for para serem os mais
felizes.
Provavelmente fui mais feliz naqueles poucos anos — fingindo ser outra pessoa — do que
jamais fui antes ou depois. Não consigo decidir o que isso significa.
Mas aquilo tinha de terminar, porque não era real, não era eu. Não era eu, Nick! Achei que
você soubesse. Achei que fosse uma brincadeira. Achei que fosse um jogo implícito de
piscadelas, de não pergunte, não diga. Tentei muito ser relaxada. Mas era insustentável. E na
verdade ele também acabou não conseguindo sustentar o lado dele: as provocações inteligentes,
os jogos espertos, o romance, o galanteio. Tudo começou a implodir. Odiei Nick por ficar
surpreso quando me tornei eu. Odiei-o por não saber que aquilo tinha de terminar, por realmente
acreditar que havia se casado com essa criatura, esse fruto da imaginação de um milhão de
homens masturbadores, com dedos cobertos de sêmen. Ele realmente pareceu chocado quando
pedi que me escutasse. Não conseguiu acreditar que eu não adorava depilar minha boceta com
cera e pagar boquete quando solicitado. Que eu me importava, sim, quando ele não aparecia para
os drinques com meus amigos. Aquela grotesca anotação em diário? Eu não preciso de patéticas
cenas de macacos amestrados para repetir para minhas amigas; fico satisfeita deixando que
ele seja ele mesmo.
Aquilo era pura baboseira de Garota Legal burra. Que estúpida do caralho. Mais uma vez,
não entendo: se você deixa um homem desmarcar compromissos ou se recusar a fazer coisas para
você, você perde. Não consegue o que quer. É evidente. Sim, ele pode ficar feliz, pode dizer que
você é a garota mais legal que já existiu, mas está dizendo isso porque conseguiu o que ele
queria. Está chamando você de Garota Legal para enganar você! É o que os homens fazem:
tentam dar a impressão de que você é a Garota Legal para que faça as vontades deles. Como um
vendedor de automóveis dizendo Quanto quer pagar por esta belezinha? quando você ainda não
concordou em comprá-la. Aquela frase medonha que os homens usam: “Quer dizer, sei que você
não se importaria se eu...” Sim, eu me importo. Simplesmente diga isso. Não perca, sua imbecil de merda.
Então aquilo tinha de parar. Entregar-me a Nick, me sentir segura com Nick, ser feliz com
Nick me fez perceber que havia uma Amy Real ali dentro, e ela era muito melhor, mais
interessante, complexa e desafiadora do que a Amy Legal. Mesmo assim, Nick queria a Amy
Legal. Você consegue imaginar, finalmente revelar seu verdadeiro eu ao seu cônjuge, à sua alma
gêmea, e ele não gostar de você? E foi assim que o ódio começou. Pensei muito nisso, e foi
quando começou, acho.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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