segunda-feira, 17 de agosto de 2015

AMY ELLIOTT DUNNE O DIA DO


Sabe como descobri? Eu os vi. Meu marido é idiota a esse ponto. Certa noite de neve em
abril, eu me senti muito só. Estava tomando amaretto quente com Bleecker e lendo, deitada no
chão enquanto a neve caía, escutando velhos discos arranhados, como Nick e eu costumávamos
fazer (essa anotação foi verdade). Tive um surto de alegria romântica: vou surpreendê-lo n’O
Bar, vamos tomar uns drinques e vagar pelas ruas vazias juntos, mãos enluvadas uma na outra.
Vamos caminhar pelo centro silencioso da cidade, ele vai me apertar contra um muro e me beijar
sob uma neve que parecerá nuvens de açúcar. Isso mesmo, eu o queria de volta de tal forma que
estava disposta a recriar aquele momento. Estava disposta a fingir ser outra pessoa mais uma vez.
Lembro-me de pensar: Ainda podemos encontrar um jeito de fazer dar certo. Fé! Eu o segui até
o Missouri porque ainda acreditava que, de algum modo, ele iria me amar novamente, me amar
daquele jeito intenso e espesso de antes, o jeito que tornava tudo bom. Fé!
Cheguei lá bem a tempo de vê-lo saindo com ela. Eu estava no maldito estacionamento, seis
metros atrás dele, e ele nem sequer me notou, eu era um fantasma. Ele não estava tocando nela,
ainda não, mas eu sabia. Sabia porque ele estava muito consciente dela. Eu os segui, e de repente
ele a apertou contra uma árvore — no meio da cidade — e a beijou. Nick está me traindo,
pensei estupidamente, e antes que pudesse me obrigar a dizer algo, eles estavam subindo para o
apartamento dela. Esperei por uma hora, sentada no degrau da porta, então ficou frio demais —
unhas azuis, dentes batendo — e fui para casa. Ele nunca soube que eu sabia.
Eu tinha uma nova persona, que eu não escolhera. Eu era a Mulher Idiota Comum Casada com
o Homem Escroto Comum. De um golpe, ele tirara o que havia de exemplar na Amy Exemplar.
Conheço mulheres cujas personas inteiras são criadas a partir de uma mediocridade benigna.
Suas vidas são uma lista de deficiências: o namorado que não as aprecia, os cinco quilos a mais,
o patrão indiferente, a irmã mau-caráter, o marido desgarrado. Sempre pairei acima de suas
histórias, concordando com um gesto de cabeça solidariamente e pensando em como essas
mulheres são tolas de deixar que essas coisas aconteçam, como são indisciplinadas. E agora ser
uma delas! Uma das mulheres com histórias intermináveis que fazem as pessoas concordarem
com um gesto de cabeça solidariamente e pensar: pobre piranha burra.
Eu podia ouvir a narrativa, como todos iriam adorar contar: como a Amy Exemplar, a garota
que nunca fazia nada errado, permitiu ser arrastada, sem um centavo, para o meio do país, onde
seu marido a trocou por uma mulher mais nova. Quão previsível, quão perfeitamente comum,
quão engraçado. E o marido? Acabou mais feliz que nunca. Não. Não podia permitir isso. Não.
Nunca. Nunca. Ele não vai fazer isso comigo e ainda vencer, cacete. Não.
Eu mudei meu nome por aquele merda. Registros históricos foram alterados — de Amy
Elliott para Amy Dunne —, como se não fosse nada. Não, ele não vai vencer.
Então comecei a pensar em uma história diferente, uma história melhor, que destruiria Nick
por fazer isso comigo. Uma história que restabeleceria minha perfeição. Faria de mim a heroína
impecável e adorada.
Porque todo mundo adora a Garota Morta.
* * *
É bastante radical incriminar seu marido pelo seu assassinato. Quero que você saiba que sei
disso. Todos os que fazem “tsc, tsc” vão dizer: Ela devia simplesmente ter ido embora, juntado
o que restava de sua dignidade. Sair por cima! Dois erros não produzem um acerto! Todas
essas coisas que mulheres frouxas dizem, confundindo suas fraquezas com moralidade.
Não vou me divorciar dele porque é exatamente o que ele gostaria que eu fizesse. E não vou
perdoá-lo porque não gosto de oferecer a outra face. Posso deixar mais claro? Não vou achar
isso um final satisfatório. O vilão vence? Ele que se foda.
Por mais de um ano eu senti o cheiro da boceta dela nos dedos dele quando ele se deitava na
cama ao meu lado. Eu o observei se admirando no espelho, se arrumando como um babuíno
excitado para os encontros dos dois. Escutei suas mentiras, mentiras, mentiras — de mentirinhas
simplistas de criança até elaboradas invenções delirantes. Senti gosto de caramelo em seus
lábios de beijos secos, um sabor persistente que nunca estivera lá antes. Toquei em suas
bochechas a barba por fazer de que ele sabe que não gosto, mas aparentemente ela sim. Sofri a
traição com todos os cinco sentidos. Por mais de um ano.
Então talvez tenha ficado um pouco louca. Sei que implicar seu marido em seu assassinato é
além dos limites do que uma mulher comum faria.
Mas é tão necessário. Nick precisa aprender uma lição. Ele nunca aprendeu uma lição! Ele
desliza pela vida com aquele seu sorriso de Nicky, o encantador, sua posição de filho querido,
suas mentiras e irresponsabilidades, suas deficiências e seu egoísmo, e ninguém cobra nada dele.
Acho que essa experiência o tornará uma pessoa melhor. Ou, pelo menos, uma pessoa mais
arrependida. Babaca.
* * *
Sempre achei que eu poderia cometer o assassinato perfeito. As pessoas que são pegas são
pegas porque não têm paciência; elas se recusam a planejar. Sorrio novamente enquanto engreno
a quinta marcha em meu carro de fuga vagabundo (Carthage agora está a cento e vinte e cinco
quilômetros na poeira) e me preparo para um caminhão em alta velocidade — o carro parece
pronto para decolar sempre que um caminhão passa. Mas sorrio, porque este carro mostra como
sou inteligente: comprado por mil e duzentos dólares em dinheiro a partir de um anúncio no
Craigslist, cinco meses atrás, de modo que a lembrança não estará fresca na cabeça de ninguém.
Um Ford Festiva 1992, o menor e mais esquecível carro do mundo. Encontrei os vendedores à
noite, no estacionamento de um Walmart em Jonesboro, Arkansas. Peguei o trem com um bolo de
dinheiro na bolsa — oito horas para ir e oito horas para voltar, enquanto Nick estava em uma
viagem com os rapazes. (E com viagem com os rapazes eu quero dizer trepando com a piranha.)
Comi no vagão-restaurante do trem um punhado de alface com tomates-cereja que o cardápio
descrevia como salada. Estava sentada junto a um fazendeiro melancólico voltando para casa
após visitar a netinha pela primeira vez.
O casal que vendeu o Ford parecia tão interessado em discrição quanto eu. A mulher
permaneceu no carro o tempo todo, um bebê de chupeta no colo, observando enquanto dinheiro
por chaves eram trocados entre mim e seu marido. (Essa é a gramática certa, sabe: entre mim e
seu marido.) Então ela saiu e eu entrei. Rápido assim. Vi pelo retrovisor o casal entrando no
Walmart com o dinheiro. Tenho estacionado o carro em vagas alugadas em St. Louis. Vou até lá
duas vezes por mês e estaciono em algum lugar novo. Pago em dinheiro. Uso um boné de
beisebol. Simples assim.
Então, esse é apenas um exemplo. De paciência, planejamento e engenhosidade. Estou
satisfeita comigo mesma; tenho mais três horas antes de chegar ao meio do planalto de Ozarks,
Missouri, e a meu destino, um pequeno arquipélago de chalés na floresta que aceita pagamento
em dinheiro para aluguel semanal e tem TV a cabo, uma necessidade; planejo me esconder lá
durante a primeira semana, ou as duas primeiras; não quero estar na estrada quando a notícia
correr, e é o último lugar onde Nick achará que eu estou escondida quando se der conta de que
estou me escondendo.
Este trecho da rodovia é particularmente feio. Flagelo do meio dos Estados Unidos. Após
mais trinta e dois quilômetros vejo, na rampa de saída, os restos de um posto de gasolina
solitário, vazio mas não trancado, e quando encosto o carro vejo a porta do banheiro feminino
escancarada. Entro — nada de eletricidade, mas há um espelho metálico torto, e a água ainda
corre. À luz do sol da tarde e no calor de sauna, tiro da minha bolsa tesouras de metal e tintura
para cabelo na cor castanho. Corto volumosos pedaços do meu cabelo. Todo o louro vai para um
saco plástico. O ar bate na minha nuca, e minha cabeça parece leve, como um balão — eu a giro
algumas vezes para desfrutar. Passo a tinta, confiro o relógio e espero no umbral, fitando
quilômetros de planície salpicada de lanchonetes e redes de motéis. Quase dá para ouvir um
índio chorando. (Nick odiaria essa piada. Derivativa! E depois acrescentaria: “embora a palavra
derivativa como crítica seja em si derivativa.” Tenho de tirá-lo de minha cabeça — ele ainda
atrapalha minhas falas a cento e sessenta quilômetros de distância.) Lavo o cabelo na pia, a água
quente me fazendo suar, e depois volto ao carro com o saco de cabelos e o lixo. Coloco um par
de óculos fora de moda com armação de metal, olho no retrovisor e sorrio novamente. Nick e eu
nunca teríamos nos casado se eu tivesse essa aparência quando nos conhecemos. Tudo isso
poderia ter sido evitado se eu fosse menos bonita.
Item 34: Mudar aparência. Confere.
* * *
Não sei muito bem como ser Amy Morta. Estou tentando descobrir o que isso significa para
mim, quem devo me tornar nos próximos meses. Qualquer pessoa, imagino, exceto pessoas que já
fui: Amy Exemplar. Patricinha Rica dos Anos Oitenta. Natureba Jogadora de Frisbee, Ingênua
Ruborizada, Perspicaz Sofisticada Estilo Hepburn. Garota Irônica Inteligente e Gata Ecológica (a
versão mais recente de Natureba Frisbee). Garota Legal, Esposa Amada, Esposa Não Amada,
Esposa Desprezada Vingativa. Amy do Diário.
Espero que você tenha gostado da Amy do Diário. A intenção era que ela fosse amável. Que
alguém como você gostasse dela. É fácil gostar dela. Nunca entendi por que isso é considerado
um elogio — que qualquer um possa gostar de você. Não importa. Achei que as anotações
ficaram boas, e não foi fácil. Tive de sustentar uma persona afável, embora um tanto ingênua, uma
mulher que amava seu marido e podia ver algumas de suas falhas (do contrário seria uma besta),
mas era sinceramente devotada a ele — o tempo todo levando o leitor (neste caso, os policiais,
estou muito ansiosa para que o encontrem) à conclusão de que Nick de fato planejava me matar.
Tantas pistas para desvendar, tantas surpresas pela frente!
Nick sempre debochou de minhas listas intermináveis. (“É como se você garantisse que nunca
está satisfeita, que sempre há algo mais a ser aperfeiçoado, em vez de simplesmente aproveitar o
momento.”) Mas quem vence, aqui? Eu venço, porque minha lista, a lista mestra intitulada Foder
Nick Dunne, era rigorosa — a mais completa e meticulosa lista que já foi concebida. Nela havia
Escrever anotações de diário de 2005 a 2012. Sete anos de anotações em diário, não todo dia,
mas pelo menos duas vezes por mês. Sabe quanta disciplina isso demanda? A Amy Garota Legal
seria capaz disso? Pesquisar os acontecimentos de cada semana, checar com minhas velhas
agendas para ter certeza de que não esqueci nada importante, depois reconstruir como a Amy do
Diário iria reagir a cada acontecimento? Foi divertido, na maior parte do tempo. Eu esperava que
Nick fosse para O Bar, ou saísse para encontrar a amante, a amante das mensagens de texto
constantes, dos chicletes, das unhas de acrílico e das malhas de ginástica com logotipos na bunda
(ela não é exatamente assim, mas poderia muito bem ser), e eu fazia café ou abria uma garrafa de
vinho, pegava uma de minhas trinta e duas canetas diferentes e reescrevia um pouco minha vida.
       É verdade que em certos momentos odiei menos Nick enquanto fazia isso. Uma frívola
perspectiva de Garota Legal causa isso. Algumas vezes Nick voltava para casa, fedendo a
cerveja ou ao desinfetante que usava para limpar o corpo pós-coito-com-amante (embora nunca
eliminasse totalmente o fedor — ela deve ter uma boceta fétida), e sorria culpado para mim,
ficava todo doce e tristonho comigo, e eu quase pensava: Não vou continuar com isso. E então o
imaginava com ela, pensava na calcinha fio dental de stripper dela, deixando que ele a
degradasse porque ela estava fingindo ser a Garota Legal, fingindo adorar boquetes e futebol e
ficar completamente bêbada. E eu pensava: Sou casada com um imbecil. Sou casada com um
homem que sempre irá escolher isso, e quando ele se cansar dessa vagabunda burra,
simplesmente encontrará outra garota que finge ser essa garota, e ele nunca terá de fazer algo
difícil na vida.
      Determinação fortalecida.
Cento e cinquenta e duas anotações no total, e acho que nunca perdi o tom. Eu a escrevi com
muito cuidado, a Amy do Diário. Ela é concebida para conquistar os policiais, conquistar o
público caso trechos sejam divulgados. Eles precisam ler esse diário como se fosse uma espécie
de tragédia gótica. Uma mulher maravilhosa, de bom coração — com toda a vida pela frente,
tudo a seu favor, o que quer que digam mais sobre mulheres que morrem —, escolhe o parceiro
errado e paga um grande preço. Eles têm de gostar de mim. Dela.
Meus pais estão preocupados, claro, mas como posso sentir pena deles, já que me fizeram ser
assim e depois me abandonaram? Eles nunca, jamais compreenderam plenamente o fato de que
estavam ganhando dinheiro com minha existência, que eu deveria estar recebendo direitos
autorais. E então, após terem tomado meu dinheiro, meus pais “feministas” deixaram que Nick
me empacotasse e levasse para o Missouri como se eu fosse uma espécie de bem móvel, uma
noiva por encomenda, uma troca de propriedade. Presentearam-me com uma porra de um cuco
para me lembrar deles. Obrigado por trinta e seis anos de serviços prestados! Eles merecem
achar que estou morta, porque esse é praticamente o estado ao qual me condenaram: sem
dinheiro, sem casa, sem amigos. Também merecem sofrer. Se vocês não conseguem cuidar de
mim enquanto estou viva, já me deixaram morta. Exatamente como Nick, que destruiu e rejeitou
meu verdadeiro eu pedacinho por pedacinho — você é séria demais, Amy, você é tensa demais,
Amy, você pensa demais nas coisas, você analisa demais, você não é mais divertida, você me
faz sentir inútil, Amy, faz com que me sinta mal, Amy. Ele arrancou fatias de mim com golpes
entediados: minha independência, meu orgulho, minha autoestima. Eu dei, e ele tirou sem parar.
Ele tirou minha existência, como se eu fosse sua própria Árvore Generosa.
Aquela piranha, ele escolheu aquela piranhazinha em vez de mim. Ele matou minha alma, algo
que deveria ser um crime. Na verdade é um crime. Na minha opinião, pelo menos.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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