terça-feira, 18 de agosto de 2015

AMY ELLIOTT DUNNE OITO DIAS SUMIDA


Estou encharcada dos barcos bate-bate; tivemos mais tempo do que o que cinco dólares
compram porque as duas adolescentes torradas de sol preferiam folhear revistas de fofocas e
fumar cigarros a tentar nos tirar da água. Então passamos bons trinta minutos em nossos barcos
movidos a motor de cortador de grama, batendo uns nos outros e fazendo curvas fechadas, e então
ficamos entediados e saímos por vontade própria.
Greta, Jeff e eu, uma turma esquisita em um lugar estranho. Greta e Jeff se tornaram bons
amigos em apenas um dia, que é o que as pessoas fazem aqui, onde não há mais nada a fazer.
Acho que Greta está decidindo se fará de Jeff outra de suas escolhas desastrosas de parceiro
sexual. Jeff gostaria disso. Ele a prefere. Ela é muito mais bonita do que estou neste momento,
neste lugar. Bonita barata. Está vestindo o sutiã do biquíni e shorts jeans, com uma camisa extra
enfiada no bolso de trás para quando quiser entrar em uma loja (camisetas, talhas em madeira,
pedras decorativas) ou restaurante (hambúrguer, churrasco, doces). Ela quer que tiremos fotos ao
estilo Velho Oeste, mas isso não acontecerá por razões além do fato de que eu não quero piolhos
de caipiras do lago.
Acabamos nos contentando com algumas tacadas em um campo de minigolfe decrépito. A
grama artificial está arrancada em alguns pontos, os jacarés e moinhos que um dia se moveram
mecanicamente estão imóveis. Então Jeff faz o trabalho, girando o moinho, abrindo e fechando os
maxilares dos répteis. Alguns buracos são simplesmente inalcançáveis, a grama enrolada como
um tapete, a casa de fazenda com seu buraco de rato convidativo desmoronada. Então
percorremos o campo sem nenhuma ordem. Ninguém nem sequer está contando os pontos.
Isso teria incomodado profundamente a Velha Amy: a aleatoriedade de tudo, a gratuidade.
Mas estou aprendendo a vagar, e faço isso bastante bem. Estou me superando na falta de
propósito. Sou uma ociosa tipo A, fêmea alfa, a líder de uma gangue de jovens de corações
partidos, percorrendo essa solitária sequência de diversões, cada um de nós sofrendo com as
traições da pessoa amada. Flagro Jeff (corneado, divorciado, acordo de custódia complicado)
franzindo a testa quando passamos por um Teste do Amor: aperte a barra de metal e veja a
temperatura subir de “caso passageiro” para “alma gêmea”. A estranha equação — um aperto
esmagador significa amor verdadeiro — me faz lembrar da pobre Greta espancada, que com
frequência coloca o polegar sobre o hematoma no peito como se fosse um botão que pudesse
apertar.
— Sua vez — me diz Greta.
Ela está enxugando sua bola nos shorts — por duas vezes ela caiu na fossa de água suja.
Eu me coloco em posição, balanço uma ou duas vezes e lanço minha bola vermelho-brilhante
direto na abertura da casa de passarinho. Ela desaparece por um segundo, depois reaparece
saindo de uma rampa e entrando no buraco. Desaparecer, reaparecer. Sinto uma onda de
ansiedade — tudo reaparece em algum momento, até mesmo eu. Estou ansiosa porque acho que
meus planos mudaram.
Até agora só mudei de plano duas vezes. A primeira foi a arma. Eu ia conseguir uma arma e
depois, na manhã em que desaparecesse, ia atirar em mim mesma. Em nenhum lugar perigoso: na
canela ou no pulso. Deixaria para trás uma bala com minha carne e meu sangue nela. Uma luta
havia ocorrido! Amy fora baleada! Mas então me dei conta de que isso era meio machão demais
até para mim. Doeria por semanas, e não morro de amor por dor (meu braço cortado está melhor
agora, muito obrigada). Mas eu ainda gostava da ideia da arma. Dava um belo MacGuffin. Não
Amy levou um tiro, mas Amy estava com medo. Então me arrumei toda e fui até o shopping no
Dia dos Namorados, para ser lembrada. Não consegui uma, mas isso não era problema, dada a
mudança de planos.
A outra foi consideravelmente mais radical. Decidi que não vou morrer.
Tenho a disciplina para me matar, mas não posso suportar a injustiça. Não é justo que eu
tenha de morrer. Não morrer de verdade. Não quero. Não fui eu quem fez algo errado.
Mas o problema agora é dinheiro. É risível que, de todas as coisas, seja o dinheiro que se
torne uma dificuldade para mim. Mas só tenho uma quantia finita — nove mil cento e trinta e dois
dólares a esta altura. Vou precisar de mais. Esta manhã fui conversar com Dorothy, como sempre
segurando um lenço para não deixar digitais (eu disse a ela que ele pertencia à minha avó —
tento dar a ela uma vaga impressão de riqueza sulista dilapidada, muito Blanche DuBois). Eu me
apoiei na escrivaninha enquanto ela me contava com grandes detalhes burocráticos sobre um
afinador de sangue que não tem dinheiro para comprar — a mulher é uma enciclopédia de
produtos farmacêuticos negados —, e então disse, só para testar a situação:
— Entendo o que você quer dizer. Não sei bem como vou conseguir dinheiro para pagar o
aluguel do meu chalé daqui a mais uma ou duas semanas.
Ela piscou para mim, e piscou de volta para o aparelho de televisão, um game show em que
pessoas gritavam e choravam muito. Ela desenvolveu um interesse de avó por mim, certamente
me deixará ficar, indefinidamente. Metade dos chalés estava desocupada, sem problema.
— Então é melhor arrumar um trabalho — disse Dorothy, sem desviar os olhos da TV.
Uma concorrente fez uma escolha ruim, o prêmio foi perdido, um efeito sonoro de buáááá
transmitiu sua dor.
— Um trabalho como o quê? Que tipo de trabalho posso conseguir aqui?
— Faxineira, babá.
Basicamente, eu tinha de ser uma dona de casa remunerada. Ironia suficiente para um milhão
de cartazes de gatinhos.
É verdade que mesmo em nosso humilde estado do Missouri eu nunca tive realmente de
poupar. Não podia sair e comprar um carro novo só porque queria, mas nunca tive de pensar nas
coisas do cotidiano, recortar cupons, comprar produtos genéricos e saber de cor o preço do leite.
Meus pais nunca se deram o trabalho de me ensinar isso, então me deixaram despreparada para o
mundo real. Quando Greta, por exemplo, reclamou que a loja de conveniência da marina cobrara
cinco dólares por um galão de leite, eu levei um susto, porque o garoto de lá sempre me cobrava
dez dólares. Achei que era demais, mas não havia me ocorrido que o adolescentezinho espinhoso
simplesmente chutara um número para ver se eu pagaria.
Então estou dentro do orçamento, mas meu orçamento — garantido, segundo a internet, para
me sustentar por seis a nove meses — claramente está errado. Então eu estou errada.
* * *
Quando terminamos com o golfe — eu venci, claro que venci, sei porque estou contando os
pontos na minha cabeça — vamos para a barraca de cachorro-quente almoçar, e me coloco no
canto para mexer em meu cinto de dinheiro com zíper sob a camisa, e quando olho para trás
Greta me seguiu e me flagra pouco antes que consiga enfiar a coisa de volta.
— Já ouviu falar de uma bolsa, Sra. Dinheirama? — brinca ela.
Esse vai ser um problema — uma pessoa que está fugindo precisa de muito dinheiro vivo,
mas uma pessoa que está fugindo por definição não tem onde guardar o dinheiro. Felizmente
Greta não insiste no assunto — ela sabe que ambas somos vítimas. Ficamos sentadas ao sol em
um banco de metal de piquenique e comemos cachorros-quentes, pães brancos enrolados em
volta de cilindros de fosfato com picles tão verdes que parecem tóxicos, e pode ser a melhor
coisa que já comi, pois sou Amy Morta e não me importo.
— Adivinhe o que Jeff encontrou no chalé dele para mim? — pergunta Greta. — Outro livro
do cara das Crônicas marcianas.
— Ray Bradburrow — diz Jeff.
Bradbury, eu penso.
— É, isso. Algo sinistro vem por aí — diz Greta — É bom.
Ela fala a última frase com animação, como se fosse tudo o que pudesse ser dito sobre um
livro. É bom ou ruim. Gostei ou não gostei. Nada de discussões sobre o estilo, os temas, as
nuances, a estrutura. Apenas bom ou ruim. Como um cachorro-quente.
— Eu li quando vim para cá — conta Jeff. — É bom. Assustador.
Ele me flagra olhando para ele e faz uma cara de duende, olhos alucinados e língua
maliciosa. Ele não é meu tipo — o pelo no rosto é áspero demais, ele faz coisas suspeitas com
peixe —, mas tem boa aparência. É atraente. Seus olhos são muito calorosos, não como os olhos
azul-gelados de Nick. Fico pensando se “eu” poderia gostar de ir para a cama com ele — uma
boa foda lenta com seu corpo apertado ao meu e sua respiração na minha orelha, os pelos em
minhas bochechas, não do modo solitário como Nick trepa, em que nossos corpos mal se
conectam: ângulo reto por trás, forma de L pela frente, e então ele sai da cama quase
imediatamente, para o chuveiro, me deixando pulsando em seu ponto molhado.
— O gato comeu sua língua? — pergunta Jeff.
Ele nunca me chama pelo nome, como se para deixar claro que ambos sabemos que menti.
Ele diz essa dama, ou mulher bonita, ou você. Fico pensando em como me chamaria na cama.
Gata, talvez.
— Só estou pensando.
— Oh-oh — diz, e sorri novamente.
— Estava pensando em um garoto, dá para ver — sugere Greta.
— Talvez.
— Achei que ficaríamos longe dos babacas por um tempo — fala ela. — Cuidar das nossas
galinhas.
Ontem à noite, depois de Ellen Abbott, eu estava agitada demais para ir para a casa, então
dividimos umas cervejas e imaginamos nossas vidas como garotas hétero reclusas no complexo
lésbico da mãe de Greta, criando galinhas e pendurando a roupa para secar ao sol. Alvos do
cortejo delicado e platônico de mulheres mais velhas com nós dos dedos envelhecidos e risos
tolerantes. Jeans, cotelê e tamancos, nunca nos preocupando com maquiagem, cabelos ou unhas,
tamanho de seios e quadris, ou tendo de fingir ser a esposa compreensiva, a namorada
companheira que adora tudo o que seu homem faz.
— Nem todos os caras são babacas — afirma Jeff.
Greta faz um ruído de quem não se compromete.
Voltamos aos nossos chalés de pernas bambas. Sinto-me como um balão de água deixado ao
sol. Tudo o que quero é me sentar sob meu ar-condicionado barulhento e deixar o frescor bater
em minha pele enquanto assisto à TV. Descobri um canal de reprises que só passa velhos
programas dos anos setenta e oitenta, Quincy, O barco do amor, Oito é demais, mas primeiro
Ellen Abbott, meu novo programa preferido!
Nenhuma novidade, nenhuma novidade. Ellen não tem medo de especular, acredite em mim,
ela convidou um bando de estranhos do meu passado que juram ser meus amigos, e todos dizem
coisas adoráveis a meu respeito, mesmo aqueles que nunca gostaram muito de mim. Afeto pósvida.
Batida na porta, e sei que serão Greta e Jeff. Desligo a TV e eles estão à minha porta,
desocupados.
— Tá fazendo o quê? — pergunta Jeff.
— Lendo — minto.
Ele coloca uma embalagem com seis cervejas em meu balcão, Greta entrando atrás.
— Ah, achei que tínhamos ouvido a TV ligada.
Três é uma multidão nesses chalés pequenos. Eles bloqueiam a porta por um segundo,
causando em mim um tremor de nervosismo — por que estão bloqueando a porta? — e então
continuam a se mover, bloqueando minha mesinha de cabeceira. Dentro da mesinha de cabeceira
está meu cinto de dinheiro com oito mil dólares em espécie. Notas de cem, cinquenta e vinte
dólares. O cinto de dinheiro é hediondo, cor de pele e rechonchudo. Não tenho como vestir todo
o meu dinheiro de uma vez — deixo um pouco espalhado pelo chalé —, mas tento levar a maior
parte comigo, e, quando faço isso, tenho tanta consciência dele quanto uma garota na praia com
um absorvente gigantesco. Uma parte perversa de mim gosta de gastar dinheiro, porque sempre
que saco um bolo de notas de vinte, é menos dinheiro para esconder, com que me preocupar que
seja roubado ou perdido.
Jeff liga a TV e Ellen Abbott — e Amy — entram em foco. Ele confirma com um gesto de
cabeça, sorri consigo mesmo.
— Quer ver... Amy? — pergunta Greta.
Não sei dizer se ela usou uma vírgula: Quer ver, Amy? Ou Quer ver Amy?
— Não. Jeff, por que você não pega seu violão e vamos nos sentar na varanda?
Jeff e Greta trocam olhares.
— Ahhh... Mas é isso que você estava vendo, não é? — pergunta Greta.
Ela aponta para a tela, e sou eu e Nick em um evento beneficente, eu de longo, o cabelo preso
em um coque, e se parece mais como estou agora, com o cabelo curto.
— É chato — digo.
— Ah, não acho nada chato — arremata Greta, e se joga na minha cama.
Penso em como sou tola por ter deixado aquelas duas pessoas entrarem. Por ter suposto que
conseguiria controlá-las, quando são criaturas selvagens, pessoas acostumadas a dar golpes,
explorar as fraquezas, sempre precisando, enquanto eu sou nova nisso. Em precisar. Aquelas
pessoas que criam pumas no quintal e chimpanzés na sala de estar — deve ser assim que elas se
sentem quando seus adoráveis animais de estimação as estripam.
— Na verdade, será que vocês se importariam...? Estou me sentindo meio mal. Sol demais,
acho.
Eles parecem surpresos e um pouco ofendidos, e me pergunto se entendi errado — se eles
são inofensivos e estou apenas paranoica. Gostaria de acreditar nisso.
— Certo, certo, claro — concorda Jeff.
Eles se arrastam para fora do meu chalé, Jeff agarrando sua cerveja no caminho. Um minuto
depois, ouço Ellen Abbott rosnando no chalé de Greta. As perguntas acusatórias. Por quê? Por
que não? Como explicar?
Por que me permiti fazer amizade com alguém aqui? Por que não fiquei no meu canto? Como
explicar minhas ações se for encontrada?
Não posso ser descoberta. Se um dia for encontrada, serei a mulher mais odiada do planeta.
Passarei da bela, gentil, condenada vítima grávida de um marido egoísta e traidor à piranha
amarga que explorou o bom coração de todos os cidadãos dos Estados Unidos. Ellen Abbott
dedicaria programas diários a mim, espectadores raivosos telefonando para dar vazão ao seu
ódio: “Isso é só mais um exemplo de uma riquinha mimada fazendo o que quer, quando quer, sem
pensar nos sentimentos dos outros, Ellen. Acho que ela deveria desaparecer pelo resto da vida
— na cadeia!” Assim, seria assim. Li na internet informações divergentes sobre as penas por
simular uma morte ou incriminar o cônjuge por tal morte, mas sei que a opinião pública seria
violenta. Não importaria o que eu fizesse depois disso — alimentar órfãos, cuidar de leprosos
—, quando eu morresse, seria conhecida como Aquela Mulher que Simulou a própria Morte e
Incriminou o Marido, Como se Lembram.
Não posso permitir isso.
* * *
Horas depois, ainda estou acordada, pensando, no escuro, quando minha porta chacoalha,
uma batida suave, a batida de Jeff. Fico na dúvida, depois abro, pronta para me desculpar por
minha grosseria de antes. Ele está puxando a barba de leve, olhando para meu capacho, depois
ergue os olhos cor de âmbar.
— Dorothy disse que você estava procurando trabalho — falou.
— É. Acho que sim. Estou.
— Eu tenho uma coisa esta noite, pago cinquenta pratas.
Amy Elliott Dunne não sairia de seu chalé por cinquenta pratas, mas Lydia e/ou Nancy
precisa trabalhar. Tenho de dizer sim.
— Duas horas, cinquenta dólares — diz ele, dando de ombros. — Para mim não faz
diferença, só pensei em oferecer.
— Qual é o trabalho?
— Pescar.
* * *
Eu tinha certeza de que Jeff dirigiria uma picape, mas ele me guia até um Ford hatch
reluzente, um carro desolador, o carro de um rapaz recém-saído da faculdade com grandes planos
e orçamento modesto, não o carro que um homem adulto deveria dirigir. Estou usando meu traje
de banho sob o vestido leve, conforme fui orientada. (“Não o biquíni, o maiô, aquele com o qual
dá para nadar de verdade”, recitou Jeff; nunca o vira nem perto da piscina, mas ele conhecia meu
traje de banho, o que era ao mesmo tempo lisonjeiro e alarmante.)
Ele deixa as janelas abertas enquanto seguimos pelas colinas arborizadas, o pó de cascalho
cobrindo meu cabelo curto e grosso. Parece algo saído de um vídeo de música country: a garota
de vestido leve se debruçando para fora do carro para pegar a brisa de uma noite de verão de um
estado republicano. Posso ver estrelas. Jeff cantarola vez ou outra.
Ele estaciona a alguma distância de um restaurante construído sobre palafitas acima do lago,
um lugar de churrasco conhecido por seus enormes copos de lembrança de drinques com nomes
ruins: Gator Juice e Bassmouth Blitz. Sei disso pelos copos jogados fora que boiam nas margens
do lago, quebrados e em cores berrantes com o logotipo do restaurante: Catfish Carl’s. O Catfish
Carl’s tem um cais sobre a água — os fregueses podem encher as mãos com ração das máquinas
de manivela e jogar nas bocas abertas de centenas de bagres gigantes que esperam lá embaixo.
— O que exatamente vamos fazer, Jeff?
— Você os pega com a rede, eu os mato — orienta ele, saindo do carro, e eu o sigo para a
traseira, que está cheia de isopores. — Nós os colocamos aqui, no gelo, e revendemos.
— Revendemos? Quem compra peixe roubado?
Jeff dá seu sorriso de gato preguiçoso.
— Tenho uma clientela.
E então percebo: ele não é um Grizzly Adams tocador de violão, amante da paz e comedor de
granola. É um ladrão caipira que quer acreditar que é mais complexo que isso.
Ele tira uma rede, uma caixa de comida de gato e um balde plástico manchado.
Eu não tenho a menor intenção de fazer parte dessa ilícita economia píscea, mas “eu” estou
bastante interessada. Quantas mulheres podem dizer que participaram de uma quadrilha de
contrabando de peixe? “Eu” topo tudo. Voltei a topar tudo desde que morri. Todas as coisas de
que desgostava ou que temia, todos os limites que tinha, descolaram de mim. “Eu” posso fazer
praticamente qualquer coisa. Um fantasma tem essa liberdade.
Descemos a colina, vamos para baixo da plataforma do Catfish Carl’s e de lá para o cais, que
flutua ruidosamente nas ondas originadas por uma lancha de passagem, tocando Jimmy Buffett aos
berros.
Jeff me dá uma rede.
— Precisamos que seja rápido: você entra na água, passa a rede, pega os peixes e vira a rede
para mim. Mas ela estará pesada e sacudindo, então se prepare. E não grite nem nada.
— Não vou gritar. Mas não quero entrar na água. Posso fazer isso do cais.
— Você deveria pelo menos tirar o vestido, vai estragar.
— Estou bem.
Ele parece aborrecido por um momento — ele é o patrão, eu sou a empregada, e até agora
não o estou escutando —, mas então se vira timidamente, tira a camisa e me dá a caixa de comida
de gato sem me encarar, como se sentisse vergonha. Seguro a caixa de boca estreita acima da
água, e logo cem costas curvadas brilhantes vêm na minha direção, uma multidão de serpentes, as
caudas cortando a superfície furiosamente, e então as bocas estão abaixo de mim, os peixes
rolando uns sobre os outros para engolir os grãos e depois, como animais amestrados, erguendo
os rostos na minha direção para receber mais.
Passo a rede pelo meio do bando e sento com força no cais para ter apoio para erguer a
colheita. Quando puxo, a rede está cheia com meia dúzia de bagres bigodudos e escorregadios,
todos tentando freneticamente voltar para a água, seus lábios se abrindo e se fechando entre os
quadrados de nylon, o movimento coletivo fazendo a rede sacudir para cima e para baixo.
— Levante a rede, levante, garota!
Enfio um joelho sob o cabo da rede e a deixo balançando ali, Jeff se esticando, pegando um
peixe com as mãos em luvas de pano para dar firmeza. Ele escorrega as mãos em torno do rabo,
então balança o peixe como um porrete, esmagando sua cabeça na lateral do cais. Sangue jorra.
Um jorro fino dele cai sobre minhas pernas, um pedaço de carne dura acerta meu cabelo. Jeff
joga o peixe no balde e agarra outro com a facilidade de uma linha de montagem.
Trabalhamos grunhindo e bufando por meia hora, quatro redes cheias, até meus braços
ficarem molengos e os isopores com gelo estarem cheios. Jeff pega o balde vazio e o enche de
água do lago, derrama sobre as entranhas espalhadas que caem de volta dentro dos cercados dos
peixes. Os bagres engolem as tripas de seus irmãos caídos. O cais é deixado limpo. Ele joga
mais um balde de água sobre nossos pés ensanguentados.
— Por que você tem de esmagá-los? — pergunto.
— Não suporto ver sofrimento — diz ele. — Um mergulho?
— Estou bem — digo.
— Não no meu carro, não está; vamos lá, um mergulho rápido, você tem mais merda no corpo
do que acha.
Corremos do cais até a praia pedregosa ali perto. Enquanto entro na água até os tornozelos,
Jeff corre com enormes passos barulhentos e se joga para a frente, agitando os braços. Assim que
ele se afasta o bastante, solto meu cinto de dinheiro e dobro o vestido ao redor dele, deixando-os
à beira da água com os meus óculos em cima. Eu me abaixo até sentir a água quente chegar às
minhas coxas, minha barriga, pescoço, e então prendo a respiração e afundo.
Nado para longe e rápido, fico sob a água mais tempo do que deveria para lembrar qual seria
a sensação de me afogar — sei que poderia fazê-lo se precisasse — e quando volto à superfície
com um único arfar disciplinado, vejo Jeff se adiantando na direção da margem, e tenho de nadar
rápido como um boto de volta para meu cinto de dinheiro, e subo nas pedras pouco antes dele.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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