com uma garrafa de um bom vinho após um banho quente de banheira, enquanto gravava para
anotar as mentiras dele. Quero escrever cada exagero, meia verdade, mentirinha e calúnia que ele
disser, para que possa concentrar minha fúria contra ele. Ela diminuiu depois da entrevista no
blog — uma entrevista bêbada aleatória! —, e não posso permitir que isso aconteça. Não vou
amolecer. Não sou idiota.
Ainda assim, estou ansiosa para ouvir suas ideias sobre Andie agora que ela rompeu. Seu
ponto de vista.
Quero assistir sozinha, mas Desi fica perto de mim o dia todo, entrando e saindo de qualquer
aposento ao qual me recolho, como uma nuvem repentina no céu, impossível de evitar. Não posso
mandá-lo embora, pois a casa é dele. Já tentei isso, e não funciona. Ele diz que quer verificar o
encanamento do porão ou examinar a geladeira para ver que alimentos precisam ser comprados.
Isso vai continuar, penso. É assim que minha vida vai ser. Ele vai aparecer quando quiser
e ficar o tempo que quiser, vai perambular por perto puxando papo, e depois vai se sentar, e
me convidar a sentar, e vai abrir uma garrafa de vinho e de repente estaremos fazendo uma
refeição juntos, e não há como impedir isso.
— Estou realmente exausta — digo.
— Tolere seu benfeitor só mais um pouco — responde ele, e passa um dedo pelo vinco das
pernas da calça.
Ele sabe sobre a entrevista de Nick esta noite, então sai e volta com todas as minhas comidas
preferidas: queijo Manchego, trufas de chocolate, uma garrafa de Sancerre gelado e, com um
erguer de sobrancelha malicioso, apresenta até mesmo os salgadinhos no sabor chili e queijo nos
quais me viciei quando era Amy de Ozarks. Ele serve o vinho. Temos um acordo tácito de não
entrar em detalhes a respeito do bebê, ambos sabemos como há abortos em minha família, quão
medonho seria para mim ter de falar sobre isso.
— Estou interessado em ouvir o que aquele suíno tem a dizer em sua defesa — comenta ele.
Desi raramente fala um babaca ou um merda; ele diz suíno, que soa mais venenoso em seus
lábios.
Uma hora depois, já fizemos uma refeição leve que Desi preparou, e tomamos o vinho que
Desi trouxe. Ele me deu um pedaço de queijo e dividiu uma trufa comigo. Ele me deu exatamente
dez salgadinhos, depois escondeu o saco. Não gosta do cheiro; diz que o incomoda, mas o que
realmente não gosta é do meu peso. Agora estamos lado a lado no sofá, um cobertor macio sobre
nós, porque Desi colocou o ar-condicionado no máximo para que seja outono em julho. Acho que
fez isso para poder acender a lareira e nos obrigar a ficar juntos sob o cobertor; ele parece ter
uma visão de outubro de nós dois. Até me deu um presente — um suéter de gola rulê violeta —, e
percebo que combina tanto com o cobertor quanto com o suéter verde-escuro de Desi.
— Sabe, ao longo de todos os séculos, homens patéticos agrediram mulheres fortes que
ameaçavam sua masculinidade — Desi está dizendo. — Eles têm uma psique tão frágil que
precisam desse controle...
Estou pensando em um tipo diferente de controle. Estou pensando em controle disfarçado de
cuidados: eis um suéter para o frio, meu bem, agora vista-o e corresponda à minha visão.
Nick pelo menos não fazia isso. Nick me deixava fazer o que eu queria.
Só quero que Desi fique sentado imóvel e em silêncio. Ele está irrequieto e nervoso, como se
seu rival estivesse na sala conosco.
— Shhh — faço quando meu rosto bonito surge na tela, depois outra foto, e mais uma, como
folhas caindo, uma colagem de Amys.
“Ela era a garota que toda garota queria ser”, diz a voz de Sharon em off. “Linda, brilhante,
inspiradora, e muito rica.”
“Ele era o sujeito que todos os homens admiravam...”
— Não este homem — murmurou Desi.
“... bonito, engraçado, inteligente e encantador. Mas em cinco de julho, o mundo
aparentemente perfeito dos dois desmoronou quando Amy Elliott Dunne desapareceu no dia do
quinto aniversário de casamento deles.”
Recapitulando, recapitulando, recapitulando. Fotos minhas, de Andie, de Nick. Fotos de um
teste de gravidez e de contas atrasadas. Realmente fiz um belo trabalho. É como pintar um mural,
recuar e pensar: perfeito.
“Agora, com exclusividade, Nick Dunne quebra o silêncio não apenas sobre o
desaparecimento da esposa, mas sobre sua infidelidade e todos os boatos.”
Sinto uma onda de carinho para com Nick, pois está usando minha gravata preferida, que
comprei para ele, que ele acha, ou achava, ser brilhante e feminina demais. É um roxo-pavão que
deixa seus olhos quase violeta. Ele perdeu sua pança de babaca satisfeito no último mês: a
barriga desapareceu, o excesso de carne no rosto sumiu, o queixo está menos fendido. Seus
cabelos foram aparados, mas não cortados — tenho uma imagem de Go dando um jeito nele
pouco antes de ele aparecer na frente da câmera, assumindo o papel de Mama Mo, cuidando dele,
passando o dedo molhado de saliva em algum ponto perto do queixo. Ele está usando minha
gravata, e quando ergue a mão para fazer um gesto, vejo que está usando meu relógio, o Bulova
Spaceview antigo que comprei para ele no seu aniversário de trinta e três anos, que nunca usou
porque não era o estilo dele, embora fosse totalmente o estilo dele.
— Ele está maravilhosamente bem-cuidado para um homem que acha que a esposa está
desaparecida — comenta Desi. — Que bom que não deixou de ir à manicure.
— Nick nunca iria a uma manicure — digo, olhando para as unhas brilhantes de Desi.
“Vamos direto ao ponto, Nick”, diz Sharon. “Você tem algo a ver com o desaparecimento de
sua esposa?”
“Não. Não. De modo algum, cem por cento não”, diz Nick, mantendo um contato visual bem
treinado. “Mas permita-me dizer, Sharon, estou longe de ser inocente ou irrepreensível, ou um
bom marido. Se eu não estivesse com tanto medo por Amy, diria que de certa forma foi uma coisa
boa o desaparecimento dela...”
“Desculpe-me Nick, mas acho que muitas pessoas acharão difícil de acreditar que você
acabou de dizer isso quando sua esposa está desaparecida.”
“É o sentimento mais medonho e horrível do mundo, e eu a quero de volta mais que qualquer
coisa. Só estou dizendo que isso foi uma forma brutal de me fazer abrir os olhos. A gente odeia
acreditar que é um homem tão medonho que é preciso algo como isto para arrancá-lo de sua
espiral de egoísmo e despertá-lo para o fato de que é o babaca mais sortudo no mundo. Quero
dizer, eu tinha uma mulher que era minha igual, melhor que eu, em todos os sentidos, e deixei que
minhas inseguranças, sobre perder o emprego, sobre não ser capaz de prover para minha família,
sobre envelhecer, encobrissem tudo.”
— Ah, por favor — começa Desi, e eu o faço calar.
O fato de Nick admitir para o mundo todo que não é um bom sujeito é uma pequena morte, e
não do tipo petite mort.
“E Sharon, preciso dizer. Preciso dizer agora mesmo: eu a traí. Desrespeitei minha esposa.
Eu não queria ser o homem que me tornara, mas em vez de dar um jeito em mim, escolhi a saída
fácil. Eu a traí com uma jovem que mal me conhecia. Para que eu pudesse fingir ser o grande
homem. Para poder fingir ser o homem que eu desejava ser: inteligente, confiante e bemsucedido.
Porque essa jovem não sabia do contrário. Essa jovem não havia me visto chorar com
o rosto na toalha, no banheiro, no meio da noite, porque eu tinha perdido o emprego. Não
conhecia todas as minhas fraquezas e deficiências. Eu era um tolo que acreditava que, se não
fosse perfeito, minha esposa não me amaria. Eu queria ser o herói de Amy, e, quando perdi meu
emprego, perdi meu amor-próprio. Não podia mais ser aquele herói. Sharon, sei a diferença entre
certo e errado. E eu simplesmente... Eu simplesmente fiz o errado.”
“O que você diria à sua esposa caso ela esteja em algum lugar, capaz de ver e ouvir você esta
noite?”
“Eu diria: Amy, eu amo você. Você é a melhor mulher que já conheci. Você é mais do que eu
mereço, e, se você voltar, passarei o resto da minha vida me redimindo. Encontraremos um jeito
de deixar todo esse horror para trás, e serei o melhor homem do mundo para você. Por favor,
volte para casa, volte para mim, Amy.”
Por um segundo, ele coloca a ponta do indicador na covinha em seu queixo, nosso velho
código secreto, aquele que criamos no passado para jurar que não estávamos enganando um ao
outro — o vestido realmente estava bem, aquela matéria realmente estava boa. Estou sendo
absolutamente, cem por cento sincero neste instante — quero seu bem, e não vou sacanear você.
Desi coloca-se na minha frente para romper meu contato visual com a tela e pega o Sancerre.
— Mais vinho, querida? — oferece.
— Shhh.
Ele dá pausa no programa.
— Amy, você é uma mulher de bom coração. Sei que é suscetível a... apelos. Mas tudo o que
ele diz é mentira.
Nick está dizendo exatamente o que eu quero ouvir. Finalmente.
Desi muda de posição, de modo a me encarar, obstruindo completamente minha visão.
— Nick está fazendo cena. Ele quer passar uma imagem de cara bonzinho e arrependido.
Admito que está fazendo um bom trabalho. Mas isso não é real: ele nem sequer mencionou que
batia em você, violentava você. Não sei que tipo de controle esse cara tem sobre você. Deve ser
uma coisa tipo Síndrome de Estocolmo.
— Eu sei — concordo. Sei exatamente o que devo dizer a Desi. — Você tem razão. Está
coberto de razão. Há muito tempo que não me sinto tão segura, Desi, mas ainda estou... Eu o vejo
e... Estou lutando contra isso, mas ele me machucou... durante anos.
— Talvez não devêssemos assistir ao resto — reflete ele, brincando com meus cabelos,
chegando perto demais.
— Não, deixe ligado. Preciso encarar isso. Com você. Consigo fazer isso com você — digo,
colocando minha mão na dele. Agora cale a porra da boca.
* * *
Só quero que Amy volte para que eu possa passar o resto da minha vida me redimindo,
tratando-a como ela merece.
Nick me perdoa — eu fodi com a sua vida, você fodeu com a minha, vamos fazer as pazes.
E se o código dele for verdade? Nick me quer de volta. Nick me quer de volta para poder me
tratar direito. Para poder passar o resto de sua vida me tratando do modo como deveria. Isso soa
bastante encantador. Poderíamos voltar para Nova York. As vendas dos livros Amy Exemplar
dispararam desde meu desaparecimento — três gerações de leitores se lembraram de como me
amam. Meus pais gananciosos, idiotas e irresponsáveis finalmente podem devolver meu pecúlio.
Com juros.
Porque quero voltar para minha antiga vida. Ou minha antiga vida com meu antigo dinheiro e
meu Novo Nick. O Nick Amar-Honrar-Obedecer. Talvez ele tenha aprendido a lição. Talvez
volte a ser como antes. Porque eu tenho sonhado acordada — presa em meu chalé em Ozarks,
presa na mansão de Desi, tenho muito tempo para sonhar acordada, e eu tenho sonhado acordada
com aquele Nick dos primeiros tempos. Achei que iria sonhar acordada mais com Nick sendo
enrabado na cadeia, mas na verdade não, não muito, ultimamente. Penso naqueles primeiros,
primeiros tempos, quando deitávamos na cama um ao lado do outro, carne nua sobre algodão
fresco, ele apenas olhando para mim, um dedo acompanhando meu maxilar do queixo à orelha,
me dando arrepios, aquela cócega leve no lóbulo, e depois pelos caracóis de minha orelha, no
alto da testa, e então ele segurava um cacho, como fez na primeira vez em que nos beijamos, e o
alisava até a ponta e puxava duas vezes, de leve, como se tocasse um sino. E dizia: “Você é
melhor que qualquer livro, você é melhor que qualquer coisa que alguém pudesse inventar.”
Nick me prendia à Terra. Nick não era como Desi, que me trazia coisas que eu queria
(tulipas, vinho) para me levar a fazer as coisas que ele queria (amá-lo). Nick queria apenas que
eu fosse feliz, apenas isso, muito puro. Talvez eu tenha confundido isso com preguiça. Só quero
que você seja feliz, Amy. Quantas vezes ele disse isso e eu entendi como: Só quero que você seja
feliz, Amy, porque é menos trabalhoso para mim. Mas talvez eu fosse injusta. Bem, não injusta,
mas confusa. Eu nunca amara ninguém que não tivesse segundas intenções. Como poderia saber?
Era mesmo verdade. Foi preciso essa situação medonha para que nós percebêssemos. Nick e
eu nos completamos. Sou um pouco de mais, e ele é um pouco de menos. Sou um espinheiro,
eriçado pelo excesso de atenção de meus pais, e ele é um homem de um milhão de pequenos
ferimentos paternos, e meus espinhos se encaixam perfeitamente em suas feridas.
Preciso voltar para casa, para ele.
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