Natal. Por essa altura, o seu tornozelo sarara completamente e as suas
maneiras haviam melhorado muito. Durante esse tempo, a patroa visitou-a
freqüentemente e deu início ao seu plano de reforma, apelando para a sua
vaidade feminina através de roupas finas e lisonjas, ao que Cathy respondeu
prontamente. Assim, ao invés de vermos chegar uma pequena selvagem,
ofegante e descabelada, correndo para nos abraçar a todos, vimos pular, de
um belo pônei negro, uma jovem de aspecto digno, com lindos cachos
castanhos pendendo de um chapéu com plumas e uma longa roupa de
montaria, que ela era obrigada a suspender com ambas as mãos para poder
andar. Hindley ajudou-a a saltar do cavalo, exclamando, prazeroso: — Cathy,
mas você está uma beldade! Quase não a conhecia; você parece uma autêntica
dama. Isabella Linton não se pode comparar com ela, não acha, Frances? —
Isabella não tem tantos predicados naturais — respondeu sua esposa —, mas
Cathy tem de tomar cuidado para não se deixar negligenciar novamente. Ellen
— ordenou ela, dirigindo-se a mim —, ajude a Srta. Catherine a tirar a roupa
de montaria. . . Fique quietinha, querida, você assim desmancha os cachos. . .
deixe-me tirar-lhe o chapéu.
Tirei-lhe a roupa de montaria, e por debaixo dela apareceu,
esplendoroso, um belo vestido de seda escocesa, usado com culotes brancos e
sapatos de verniz. Embora os seus olhos brilhassem de alegria, ao ver os cães
virem correndo dar-lhe as boas-vindas, mal lhes tocou, com medo de que eles lhe estragassem a esplêndida toalete. Beijou-me muito de leve: eu estava
coberta de farinha do bolo de Natal e não convinha abraçar-me. Depois,
olhou em volta, à procura de Heathcliff. O Sr. e a Sra. Earnshaw estavam
ansiosos por ver como seria o encontro dos dois, pensando que através dele
poderiam avaliar as esperanças que havia quanto à separação dos dois amigos.
Não foi fácil descobrir Heathcliff. Se, antes da ausência de Catherine,
ele fora desleixado e ninguém se preocupara com o seu aspecto, desde então a
coisa piorara dez vezes mais. Ninguém, a não ser eu, se preocupava com
chamar-lhe a atenção para a sujeira e com pedir-lhe que se lavasse, pelo
menos uma vez por semana, pois os garotos daquela idade não costumam ter
mesmo gosto pela água e pelo sabão. Por conseguinte, sem mencionar já as
suas roupas, que havia três meses não mudava e estavam cobertas de pó e de
lama, e o seu cabelo grosso e desgrenhado, tanto o seu rosto como as suas
mãos estavam horrivelmente negros. Era bem desculpável que ele se tivesse
escondido atrás do sofá, ao ver chegar tão graciosa donzela, em vez da sua
contra-partida feminina, como esperara. — Heathcliff não está? — perguntou
ela, tirando as luvas e mostrando mãos maravilhosamente clareadas de não
fazer nada e de não andar pelos campos.
— Heathcliff, pode sair daí — exclamou o Sr. Hindley, divertindo-se
com a situação e satisfeito da má impressão que ele não deixaria de causar. —
Pode vir dar as boas-vindas à Srta. Catherine, como os outros criados.
Mas Cathy, vendo onde o amigo estava escondido, correu a abraçá-lo;
beijou-o sete ou oito vezes nas faces, até que parou e, recuando, soltou uma
risada: — Nossa, como você está preto! Que engraçado está, com esse ar zangado! Acho que estou demasiado acostumada a Edgar e Isabella Linton.
Então, Heathcliff, será que me esqueceu?
Tinha certa razão em fazer essa pergunta, pois a vergonha e o orgulho o
faziam permanecer imóvel.
— Dê-lhe a mão, Heathcliff — interferiu o Sr. Earnshaw,
condescendentemente. — Uma vez ou outra, isso é permitido.
— Não — replicou o rapaz, recuperando, finalmente, a fala. — Não
suporto que riam de mim. Não permito isso!
E teria corrido dali, se Cathy não o houvesse segurado.
— Eu não quis rir de você — disse ela. — Vamos, Heathcliff, dê-me a
mão! Por que é que você está tão ofendido? Achei-o engraçado, mas é porque
você não lavou o rosto e escovou o cabelo. Está tão sujo!
Dizendo isso, Cathy olhou para os dedos dele, que ela segurava na mão,
e depois para o seu vestido, que ela temia haver sujado.
— Você não precisava ter me tocado! — lançou ele, seguindo o olhar
dela e arrebatando a mão. — Estou sujo porque quero; gosto de estar sujo e quero estar sujo.
Com isso saiu da sala, em meio aos olhares divertidos do patrão e da
patroa e da consternação de Catherine, que não podia compreender por que
os seus comentários haviam produzido nele uma tal demonstração de fúria.
Depois de ter ajudado a recém-chegada, posto os meus bolos no forno
e tornado a cozinha e toda a casa alegre e confortável, com bons fogos, como
convém à noite de Natal, preparei-me para cantar as minhas canções natalinas,
não obstante as afirmações de Joseph, que considerava serem elas pouco
religiosas. Retirara-se para orar no seu quarto, e o Sr. e a Sra. Earnshaw estavam mostrando a Catherine os presentes que tinham comprado para ela
dar aos jovens Linton, em agradecimento pela acolhida. Tinham-nos
convidado a passar o dia de Natal no Morro dos Ventos Uivantes e o convite
fora aceito, com uma condição: a Sra. Linton pedira que os seus queridos
filhos não tivessem contato com "aquele rapaz horrível".
Nessas circunstâncias, fiquei só, sentindo o rico aroma dos bolos e
contemplando os brilhantes utensílios da cozinha, o relógio, enfeitado com
azevinho, as taças de prata, arrumadas numa bandeja e já prontas para a ceia,
e, acima de tudo, admirando a impecável limpeza do chão, meu cuidado
especial. Lembrei-me, então, de como o velho Earnshaw costumava entrar na
cozinha, quando tudo já estava em ordem, elogiando o meu trabalho e
pondo-me na mão um xelim, à guisa de presente de Natal; isso me fez
recordar o seu carinho por Heathcliff e o seu temor de que ele não fosse bem
tratado após a sua morte; o que, por sua vez, me fez pensar na atual situação
do pobre rapaz, tirando-me a vontade de cantar e dando-me a de chorar. Mas,
em vez de derramar lágrimas por ele, era melhor procurar remediar a sua
situação: levantei-me e saí à procura dele. Não precisei ir longe: encontrei-o
escovando o lustroso pêlo do novo pônei na cavalariça, e dando de comer aos
outros animais, como era seu costume.
— Apresse-se, Heathcliff! — falei. — Está tão agradável lá na cozinha,
e Joseph está no quarto dele! Vamos, deixe-me pô-lo bonito, antes que Cathy
desça. Vocês podem sentar-se diante da lareira e conversar até a hora de dormir.
Ele continuou com a sua ocupação, sem sequer virar a cabeça para mim.
— Então. . . você não vem? — insisti. — Fiz um bolinho para cada um
de vocês; e você vai precisar de meia hora para se arrumar.
Esperei cinco minutos, mas, não recebendo resposta, resolvi ir embora.
Catherine ceou com o irmão e a cunhada. Eu e Joseph fizemos uma refeição
bem pouco sociável, temperada de censuras, por um lado, e de impertinência,
pelo outro. O bolo e o requeijão de Heathcliff ficaram toda a noite na mesa,
para os duendes. Ele deu um jeito de continuar a trabalhar até as nove e
depois subiu direto para o quarto. Cathy ficou de pé até tarde, pois tinha um
mundo de coisas a dispor, com relação à visita dos seus novos amigos. Foi à
cozinha falar com o seu velho amigo, mas não o encontrou e, depois de
perguntar o que lhe tinha acontecido, foi-se embora. Na manhã seguinte,
Heathcliff levantou-se cedo e levou o seu mau humor para a charneca, só
voltando quando a família já tinha saído para a igreja. O jejum e a reflexão
pareciam ter-lhe feito bem. Andou algum tempo à minha volta e, tendo
adquirido coragem suficiente, exclamou, de repente:
— Nelly, dê-me roupa limpa. Quero parecer bem.
— Ótimo, Heathcliff, já não é sem tempo — respondi. — Você feriu a
pobre Catherine, e talvez ela se arrependa de ter voltado para casa! Até parece
que você a inveja por ela ser mais festejada do que você.
A idéia de invejar Catherine era incompreensível para ele, mas não a
idéia de havê-la ferido.
— Ela disse que estava ferida? — perguntou, com ar muito sério.
— Chorou, quando eu lhe disse que você se tinha ido, esta manhã.
— Ora, eu também chorei ontem à noite — replicou ele —, e tinha muito mais razão para chorar do que ela.
— Sim, a sua razão foi ir para a cama com o coração cheio de orgulho e
o estômago vazio — disse eu. — As pessoas orgulhosas trazem sofrimento
para si mesmas. Mas, se você está envergonhado, deve pedir-lhe perdão,
quando ela voltar da igreja. Deve chegar junto dela e beijá-la e dizer-lhe. . .
bem, você sabe melhor do que eu o que lhe dizer; mas faça-o sinceramente e
não como se a julgasse transformada numa estranha, só por andar bem
vestida. Agora, embora tenha de fazer o almoço, vou arranjar tempo para
arrumá-lo, de modo que Edgar Linton pareça insignificante ao seu lado, o que
de fato ele parece. Você é mais novo, mas bem mais alto e de ombros bem
mais largos: podia derrubá-lo num abrir e fechar de olhos, não acha?
O rosto de Heathcliff desanuviou-se um instante, mas logo voltou a
encobrir-se, e ele suspirou.
— Nelly, mesmo que eu o derrubasse vinte vezes, isso não o tornaria
menos bonito nem a mim menos feio. Como eu queria ter cabelo louro e pele
clara, vestir-me e comportar-me bem e ter uma chance de vir a ser tão rico
quanto ele!
— E chorar a toda hora pela mamãe — acrescentei —, e tremer se um
garoto do campo levantasse o punho contra você, e ficar metido em casa
sempre que chovesse. Oh, Heathcliff, você está se mostrando bem bobo!
Chegue-se para o espelho, que eu lhe mostrarei o que você deveria desejar.
Está vendo essas duas rugas entre os olhos? E essas sobrancelhas espessas
que, em vez de serem arqueadas, parecem afundar no meio? E esses dois
demônios negros, de tal maneira enterrados, que nunca abrem francamente as
suas janelas, mas brilham por trás delas, qual espiões do Diabo? Você deve
aprender a desfazer essas rugas, a erguer abertamente essas pálpebras e a transformar os demônios em anjos confiantes e inocentes, não suspeitando
nem duvidando de nada e vendo sempre amigos onde não se tem a certeza de
haver inimigos. Não assuma a expressão de um cão danado, que só espera do
mundo pontapés, embora odeie o mundo e os pontapés pelo que eles lhe
fazem sofrer.
— Por outras palavras, devo desejar os grandes olhos azuis de Edgar
Linton e a sua testa lisa — retrucou ele. — Desejo. . . mas isso não me serve
de nada.
— Um bom coração ajuda a ter um belo rosto, meu rapaz — continuei
—, mesmo que a pessoa seja monstruosa. Saiba que um coração empedernido
é capaz de tornar a pessoa mais bonita num verdadeiro monstro. Agora que
você terminou de se lavar, de se pentear e de fazer cara feia, diga-me se não se
acha bem bonito. . . Eu acho. Você parece um príncipe disfarçado. Quem
sabe se seu pai não foi imperador da China, ou sua mãe uma rainha indiana,
cada qual capaz de comprar, com a renda de apenas uma semana, o Morro
dos Ventos Uivantes e a Granja Thrushcross? Quem sabe se você não foi
raptado por marinheiros perversos e trazido para a Inglaterra? Se eu fosse
você, alimentaria a idéia de um nascimento nobre, e esse pensamento me
daria coragem e dignidade para suportar a opressão de um pequeno fazendeiro!
À medida que eu falava, Heathcliff ia aos poucos perdendo o ar
ofendido e ficando bem agradável de se ver. De repente, porém, a nossa
conversa foi interrompida por um barulho de rodas entrando no pátio. Ele
correu à janela e eu para a porta, a tempo de ver os dois jovens Linton descer
da carruagem familiar, abafados em capotes e peles, enquanto os Earnshaw desmontavam dos seus cavalos, pois no inverno costumavam cavalgar até a
igreja. Catherine pegou em cada um dos garotos pela mão, levou-os para casa
e fê-los sentar-se diante do fogo, o que fez voltar a cor aos seus rostos
brancos.
Disse a Heathcliff que se apressasse a mostrar-se simpático, ao que ele
obedeceu prontamente; mas quis a má sorte que, ao mesmo tempo em que
ele abriu a porta da cozinha para a sala, Hindley abrisse a outra. Irritado por
vê-lo limpo e sorridente ou talvez desejoso de manter a promessa que fizera à
Sra. Linton, o fato é que Hindley o empurrou de volta para a cozinha,
ordenando a Joseph que não o deixasse entrar na sala e o mandasse para o
sótão até acabarem de almoçar, pois ele meteria os dedos nos doces e
roubaria as frutas, se o deixassem na cozinha um único minuto.
— Não, meu senhor — ousei responder —, ele não toca em nada;
embora eu ache que deva provar de tudo, como todos nós.
— Ele vai provar é a força da minha mão, se o pego aqui embaixo antes
de cair a noite — gritou Hindley. — Fora daqui, seu vagabundo! O quê, você
está tentando bancar o elegante, hein? Espere só que eu lhe puxe o cabelo. . .
e veja se ele não fica mais comprido!
— Já está comprido demais — comentou o jovem Linton, espiando da
porta. — Não sei como não lhe faz doer a cabeça. Parece uma crina de
cavalo, caindo-lhe sobre os olhos!
Fez esse comentário sem qualquer intenção de insultar; mas o
temperamento violento de Heathcliff não estava preparado para suportar
qualquer impertinência daquele a quem ele parecia, já então, odiar como a um
rival. Pegou numa terrina cheia de molho de maçã quente (a primeira coisa que encontrou) e despejou-a no rosto e no pescoço de Edgar, que
imediatamente se pôs a gritar, fazendo com que Isabella e Catherine
acorressem. O Sr. Earnshaw agarrou no culpado e levou-o para o seu quarto,
onde sem dúvida lhe aplicou um drástico remédio para lhe acalmar os nervos,
pois voltou vermelho e ofegante. Peguei no pano dos pratos e esfreguei o
nariz e a boca de Edgar, dizendo-lhe que era bem-feito, por se ter metido
onde não era chamado. A irmã começou a chorar que queria ir para casa e
Cathy ficou atônita, o rosto afogueado.
— Você não devia ter falado aquilo para ele! — disse ela a Edgar. —
Ele estava irritado e agora você estragou tudo. Ele vai levar uma surra e eu
não posso suportar isso! Não vou poder almoçar. Por que foi que você lhe
disse aquilo, Edgar?
— Eu não falei com ele — soluçou o garoto, escapando das minhas
mãos e acabando de se limpar com o seu lenço de cambraia. — Prometi à
mamãe que não falaria uma palavra com ele e não falei.
— Ora, não chore — disse Catherine, com desprezo. Você não vai
morrer. Não piore ainda mais a situação; meu irmão vem vindo, pare de
chorar! E você também, Isabella! Será que alguém a machucou?
— Vamos, crianças, para a mesa! — exclamou Hindley, entrando na
sala. — Aquele bruto esquentou-me o sangue. Da próxima vez, Edgar, faça
você mesmo justiça, a muque. Vai ver como lhe abre o apetite!
Os dois visitantes voltaram a sorrir à vista da esplêndida mesa. Estavam
famintos, após a viagem, e, como nada de mau lhes acontecera, não tardaram
a se reanimar. O Sr. Earnshaw serviu grandes pratadas e sua esposa iniciou
uma conversa animada. Eu estava atrás da cadeira dela e fiquei triste de ver Catherine, olhos secos e ar indiferente, começar a cortar uma asa de ganso.
"Que menina insensível", pensei. "Com que facilidade se esquece do sofrimento
do velho amigo! Nunca imaginei que fosse tão egoísta." Levou uma
garfada à boca, mas voltou a pousá-la no prato; suas faces ruborizaram-se e as
lágrimas escorreram por elas. Deixou cair o garfo no chão e abaixou-se para
apanhá-lo, escondendo-se atrás da toalha para ocultar a sua emoção. Não
mais a chamei insensível; percebi que ela sofria muito e ansiava por uma
oportunidade de sair da sala ou de ir visitar Heathcliff, que fora trancado
numa mansarda, pelo patrão, conforme descobri ao tentar levar-lhe um prato
de comida.
À noite houve um baile. Cathy suplicou que libertassem o amigo, pois
Isabella Linton não tinha par; mas as suas súplicas foram em vão e
encarregaram-me de suprir a deficiência. Toda a tristeza se dissipou e a alegria
aumentou com a chegada da banda de Gimmerton, composta de quinze
instrumentos: um trompete, um trombone, clarinetes, fagotes, trompa de
pistões e uma viola, além de cantores. Essas bandas costumam percorrer as
casas importantes e receber contribuições natalinas, e foi para nós um prazer
ouvi-la. Depois de entoadas as habituais canções de Natal, pedimos-lhes que
interpretassem canções populares. A Sra. Earnshaw gostava de música, e
tivemos uma bela noitada.
Catherine também gostava de música, mas alegou que soava melhor
ouvida do alto da escada e subiu mesmo sem luz. Fui atrás dela. Fecharam a
porta embaixo, sem dar pela nossa ausência, de tal maneira a sala estava cheia
de gente. Ela não parou no alto da escada; continuou a subir, até a mansarda
em que Heathcliff estava preso, e chamou-o. Por algum tempo, ele se recusou, teimosamente, a responder; mas ela insistiu e finalmente conseguiu
persuadi-lo a conversar através das tábuas. Deixei os pobrezinhos à vontade,
até me parecer que as canções estavam chegando ao fim e que os músicos iam
querer cear; subi, então, a escada para preveni-la. Em vez de encontrá-la do
lado de fora, ouvi a voz dela lá dentro. O diabinho passara, pelo telhado,
através da clarabóia de uma mansarda, para a clarabóia vizinha, e foi-me
muito difícil convencê-la a sair. Quando, finalmente, ela saiu, Heathcliff veio
com ela e Cathy teimou para que eu o levasse para a cozinha, já que Joseph
fora para a casa de um vizinho, a fim de não ouvir os nossos "salmos
demoníacos", conforme os chamava. Respondi que não pretendia, em
absoluto, desobedecer às ordens recebidas; mas como o prisioneiro nada
tivesse comido desde o almoço do dia anterior, fingiria ignorar essa proibição
do Sr. Hindley. Heathcliff desceu; coloquei-lhe um banco à beira do fogo e
ofereci-lhe um monte de coisas gostosas, mas ele estava sem vontade de
comer, e todos os meus esforços no sentido de distraí-lo foram por água
abaixo. Apoiou os cotovelos nos joelhos e o queixo nas mãos, e permaneceu
mergulhado em profunda meditação. Quando lhe perguntei em que pensava,
respondeu, gravemente:
— Estou tentando imaginar como me vingarei de Hindley. Não me
importo de esperar, desde que no fim consiga o que quero. Só espero que ele
não morra antes!
— Que horror, Heathcliff! — exclamei. — Cabe a Deus castigar os maus; nós devemos saber perdoá-los.
— Não, Deus não terá essa satisfação; ela será só minha — retrucou
ele. — Só queria saber qual a melhor maneira! Deixe-me a sós, que preciso
pensar; enquanto Penso, não sofro. . .
Mas, Sr. Lockwood, esqueço-me de que tudo isso não lhe pode
interessar. Que idéia a minha, de estar aqui falando sem parar, quando o
senhor está cabeceando e o seu mingau está frio! Podia ter contado da história
de Heathcliff tudo quanto o senhor precisa saber em meia dúzia de palavras.
Assim dizendo, a governanta levantou-se e começou a arrumar a sua
costura; mas eu não tinha coragem de me afastar da lareira e estava muito longe de cabecear.
— Fique mais um pouco, Sra. Dean — pedi —, mais meia hora! Fez
muito bem em contar a história com detalhes. Assim mesmo é que eu gosto;
peço-lhe que continue. Interessam-me todas as pessoas que a senhora
mencionou.
— Mas o relógio já vai bater onze horas.
— Não faz mal, não estou acostumado a me deitar cedo. À uma ou às
duas é o suficiente para quem só se levanta às dez da manhã.
— O senhor não deveria acordar tão tarde. O melhor da manhã já se
foi antes das dez horas. Quem até as dez ainda não fez nada corre o risco de
não ter tempo para fazer o que precisa.
— Não obstante, Sra. Dean, fique mais um pouco. Amanhã só devo
sair da cama lá pela tarde. Estou prognosticando uma gripe, pelo menos.
— Espero que não — retrucou a boa mulher. — Bem, vou pular uns
três anos. Durante esse espaço de tempo, a Sra. Earnshaw. . .
— Não vai pular nada! Sabe como é, quando a gente está sentado,
sozinho, vendo uma gata lamber o seu filhote, e presta tal atenção à operação
que, se a gata se esquecer de lamber uma orelha, é o bastante para se ficar
furioso? Como é que a senhora classificaria essa atitude?
— Diria que era uma atitude muito preguiçosa.
— Ao contrário, uma atitude extremamente ativa, em que a mente
segue algo com todo o interesse. Pois é a minha, neste momento. Por isso lhe
peço que continue como até aqui. Vejo que a gente destas regiões adquire,
sobre a gente das cidades, a mesma vantagem que a aranha de uma masmorra
tem sobre a aranha de uma cabana; e, contudo, a maior atração não se deve
inteiramente à situação do espectador. A gente aqui leva uma vida de maior
autenticidade, mais concentrada em si mesma e menos superficial, menos
frívola. Parece-me quase possível amar a vida aqui; e eu descria totalmente de
que algum amor pudesse resistir a um ano. Uma das situações faz lembrar o
colocar-se um homem faminto diante de um único prato, no qual ele pode
concentrar todo o seu apetite e fazer-lhe justiça; ao passo que a outra é como
apresentar-lhe uma mesa posta por mestres da culinária francesa: talvez ele
possa regalar-se, mas cada prato é um mero átomo para a sua vista e a sua memória.
— Oh, mas nós aqui somos iguais às pessoas dos outros lugares, o
senhor vai ver — observou a Sra. Dean, algo espantada com as minhas
palavras.
— Perdoe — respondi —, mas até a senhora é uma ótima prova contra
essa afirmação. Excetuando alguns provincianismos que quase não se notam,
a senhora não tem nem o modo de falar, nem as maneiras que em geral se consideram como peculiares à classe. Tenho a certeza de que pensa muito
mais do que a maioria dos criados comuns. E cultivou as suas faculdades de
reflexão justamente por não ter ocasião de desperdiçar a vida com ninharias.
Ela riu.
— Sem dúvida me considero uma pessoa estável e sensata — disse —,
mas não exatamente por viver entre montanhas e ver apenas um conjunto de
rostos e uma série de atos, de ano a ano. É que sempre vivi na mais estrita
disciplina e isso me ensinou a encarar as coisas com sensatez; além do quê,
tenho lido mais do que o senhor pode imaginar, Sr. Lockwood. Não há um
livro, nesta biblioteca, que eu não tenha lido e do qual não tenha tirado algo: a
não ser que seja em grego, latim ou francês. . . mas até esses eu sei distinguir.
É o máximo que se pode esperar da filha de um homem pobre. Mas, se quer
que eu continue contando a minha história com todos os detalhes, muito
bem; em vez de pular três anos, passarei apenas para o verão seguinte (o verão de 1778), ou seja, há cerca de vinte e três anos atrás.
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