sexta-feira, 14 de agosto de 2015

CAPÍTULO XXXIV


Durante alguns dias, depois dessa noite, o Sr. Heathcliff evitou encontrar-se conosco, às refeições; contudo, não consentia em excluir
formalmente Hareton e Cathy. Repugnava-lhe ceder tão completamente aos
seus sentimentos e preferia ausentar-se; comer apenas uma vez, em vinte e
quatro horas, parecia o suficiente, para ele.
Uma noite, depois que todo o mundo já estava deitado, ouvi-o descer a
escada e sair pela porta da frente. Não o ouvi voltar e, de manhã, vi que ele
ainda não regressara. Estávamos em abril: o tempo era quente e bom, a grama
verde das chuvas e do sol primaveril e as duas macieiras anãs perto do muro
estavam em flor. Depois do desjejum, Catherine insistiu para que eu trouxesse
uma cadeira e me sentasse a costurar debaixo dos abetos, na extremidade da
casa; e convenceu Hareton, que já se recuperara do acidente, a cavar e plantar
o seu jardinzinho, trasladado para aquela ponta devido às queixas de Joseph.
Eu estava confortavelmente gozando do cheirinho da primavera e do belo
céu azul, quando a minha patroazinha, que correra até perto da cancela, à
procura de raízes de primaveras para plantar, voltou, com o cesto apenas
meio cheio, e nos informou que o Sr. Heathcliff estava chegando. — E falou
comigo — acrescentou, o rosto perplexo.
— Que foi que ele disse? — perguntou Hareton.
— Disse-me que sumisse o mais depressa possível — respondeu ela. —
Mas estava tão diferente, que parei para olhar para ele.
— Como diferente? — inquiri.
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— Bem, quase alegre. Não, quase, não. . . muito excitado e alegre! —
afirmou ela.
— Passear à noite faz-lhe bem, então — observei, afetando uma atitude
despreocupada, quando na verdade estava tão surpresa quanto ela e ansiosa
por confirmar o que ela dissera, pois ver o patrão alegre não era espetáculo
corriqueiro. Inventei uma desculpa para entrar. Heathcliff estava de pé, junto
à porta aberta. Seu rosto estava pálido e todo ele tremia; contudo, tinha um
brilho estranho, alegre, nos olhos, o que alterava todo o seu aspecto.
— Quer comer algo? — perguntei. — Deve estar com fome, depois de
errar durante toda a noite! — Queria descobrir onde ele estivera, mas não me
atrevi a perguntar-lhe diretamente.
— Não, não estou com fome — respondeu ele, virando a cabeça e
falando num tom de desdém, como se percebesse que eu estava tentando
adivinhar a razão do seu bom humor.
Fiquei perplexa. Não sabia se não seria aquela uma boa oportunidade
de lhe dar uns conselhos.
— Não me parece próprio andar fora de casa — comentei — quando é
hora de repousar; pelo menos, não é aconselhável com esta umidade. Está me
parecendo que o senhor vai pegar uma febre. Está diferente do costume!
Sente alguma coisa?
— Nada que eu não possa suportar — retrucou ele —, e com o maior
prazer, desde que você me deixe em paz; entre logo e não me aborreça.
Obedeci. Ao passar por ele, reparei que ofegava como um gato.
"É isso mesmo", pensei. "Vem aí uma doença. Não posso imaginar o
que ele andou fazendo."
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Ao almoço, ele se sentou à mesa conosco e recebeu uma pratada das
minhas mãos, como se quisesse compensar o jejum matinal.
— Não estou resfriado nem tenho nenhuma febre, Nelly — observou,
aludindo ao meu sermão daquela manhã. — Estou pronto a fazer justiça a
tudo o que você me puser no prato.
Pegou na faca e no garfo e ia começar a comer, quando o apetite
pareceu passar-lhe por completo. Pousou os talheres na mesa, olhou
ansiosamente na direção da janela, levantou-se e saiu. Vimo-lo andar de um
lado para outro, no jardim, enquanto acabávamos de almoçar, e Earnshaw
resolveu ir perguntar-lhe por que não voltava para a mesa, pensando que o
tivéssemos irritado.
— Então, ele vem? — perguntou Catherine, quando o primo voltou.
— Não — respondeu ele —, mas não está zangado; pelo contrário,
parecia estranhamente satisfeito. Só que eu o impacientei, falando-lhe por
duas vezes. Mandou-me vir para junto de você; disse que não sabia como é
que eu podia desejar outra companhia.
Coloquei o prato dele no fogão, para não esfriar, e depois de uma hora
ou duas ele voltou, quando a sala já estava vazia, igualmente excitado: o
mesmo ar não natural de alegria sob as sobrancelhas negras, a mesma cor
pálida, os dentes de vez em quando visíveis numa espécie de sorriso, todo ele
tremendo, não como se treme de frio ou de fraqueza, mas como uma corda
bem tensa vibra — sim, era algo como uma vibração.
"Vou perguntar-lhe o que houve", pensei; só eu poderia perguntar. Foi
o que fiz.
— Recebeu alguma boa notícia, Sr. Heathcliff? Parece muito animado!
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— De onde me poderiam vir boas notícias? — retrucou ele. — A
animação é de fome, mas parece que não devo comer.
— O seu almoço está guardado — volvi. — Por que não come?
— Não quero, agora — murmurou ele, apressadamente. — Vou
esperar até o jantar. E, Nelly, de uma vez por todas, peço-lhe que avise
Hareton e a outra para não se aproximarem de mim. Não quero ser
incomodado por ninguém; quero ter a casa só para mim.
— Há alguma razão para isso? — perguntei. — Diga-me por que está
tão esquisito, Sr. Heathcliff. Onde esteve ontem à noite? Não estou
perguntando por mera curiosidade, e sim porque. . .
— Está perguntando, sim, por mera curiosidade — atalhou ele, com
uma risada. — Mas vou responder. Ontem à noite estive às portas do inferno.
Hoje tenho o meu céu à vista; nem um metro me separa dele! E agora é
melhor você ir embora! Não verá nem ouvirá nada que a assuste, se evitar
bisbilhotar.
Após ter varrido o chão e passado um pano na mesa, saí da sala, mais
perplexa do que nunca.
Ele não saiu durante toda a tarde e ninguém interferiu na sua solidão;
até que, às oito horas, achei que devia — embora não tivesse sido chamada —
levar-lhe uma vela e o jantar. Ele estava encostado ao peitoril de uma janela
aberta, mas não olhava para fora: seu rosto estava voltado para a escuridão
que reinava na sala. O fogo transformara-se em cinzas; a sala estava cheia do
ar úmido da noite e o silêncio era tal, que se distinguia o murmúrio do riacho
de Gimmerton, com o seu gorgolejar por sobre os seixos e através das
grandes pedras, que não conseguia cobrir. Soltei uma exclamação de
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descontentamento ao ver o fogo extinto e comecei a fechar as janelas, uma
após a outra, até chegar à dele.
— Quer que feche esta também? — perguntei, a fim de despertá-lo,
pois ele não se mexia.
A luz da vela bateu-lhe no rosto. Sr. Lockwood, não posso exprimir o
susto que levei! Aqueles olhos fundos e negros! O sorriso, a palidez mortal!
Não me parecia o Sr. Heathcliff, e sim um demônio; e, no meu terror, deixei a
vela inclinar-se para a parede e ficamos no escuro.
— Isso, feche a janela — respondeu ele, na sua voz habitual. — Ora,
que falta de jeito! Por que segurou a vela horizontalmente? Traga outra,
depressa.
Saí correndo, apavorada, e disse a Joseph:
— O patrão quer que você lhe leve uma vela e lhe acenda o fogo. —
Eu própria não ousava voltar a entrar na sala.
Joseph apanhou alguns carvões em brasa na pá e foi; mas logo voltou,
com a bandeja do jantar na outra mão, explicando que o Sr. Heathcliff ia se
deitar e não queria comer nada até de manhã. Ouvimo-lo subir a escada; ele
não se dirigiu para o seu quarto, entrou no da cama embutida. A janela, como
já lhe disse, é suficientemente larga para deixar passar uma pessoa, e fiquei
pensando que ele planejasse outra saída noturna, de que não quisesse que
suspeitássemos.
"Será ele um vampiro?", perguntei-me. Tinha lido a respeito de tão
horríveis demônios. Mas logo pensei em como o cuidara na infância e o vira
crescer e lhe acompanhara quase toda a vida — e como era absurdo entregarme
a tão horríveis cogitações. "Mas de onde viera ele, de onde viera aquele
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menino escuro, trazido por um bom homem para o seu lar?", murmurou a
Superstição, enquanto eu adormecia. E comecei, meio em sonho, a imaginar
quem seriam seus pais; e, ecoando os meus pensamentos acordada, passei
novamente em revista a sua existência, com soturnas variações, que
culminavam com a sua morte e o funeral, do qual tudo quanto recordo é de
não saber que inscrição ditar para sua lápide e consultar o coveiro a respeito;
e, como ele não tinha sobrenome e não pudéssemos saber a sua idade, sermos
obrigados a contentar-nos com uma única palavra, Heathcliff. Isso aconteceu
mesmo. Se o senhor entrar no cemitério, só lerá isso na sua lápide, mais a data
da morte.
O nascer do dia restituiu-me a sensatez. Levantei-me e, tão logo se fez
dia claro, desci ao jardim, a fim de ver se havia pegadas debaixo da janela dele.
Não havia. "Ficou em casa", pensei, "e vai estar normal, hoje." Preparei o
desjejum para toda a casa, conforme era meu costume, mas disse a Hareton e
Catherine que o tomassem antes que o patrão descesse, pois ele ainda devia
estar dormindo. Preferiram tomá-lo ao ar livre, sob as árvores, e preparei uma
mesinha especialmente para eles.
Ao voltar, encontrei o Sr. Heathcliff embaixo, falando com Joseph
sobre os negócios da fazenda; dava-lhe ordens precisas, minuciosas, mas
falava rapidamente e desviava constantemente a cabeça, com a mesma
expressão agitada, ainda mais exagerada, talvez. Assim que Joseph saiu da sala,
sentou-se no seu lugar habitual e coloquei-lhe à frente um bule de café. Ele o
aproximou, depois pousou os braços na mesa e olhou para a parede que lhe
estava fronteira, parecendo fixar-se só num trecho com olhos brilhantes,
inquietos, e com tal interesse, que deixou de respirar durante meio minuto.
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— Tome! — exclamei, aproximando-lhe o pão da mão. — Coma e
beba o café enquanto está quente. Há quase uma hora que está pronto.
Ele não reparou em mim, mas sorriu. Preferia tê-lo visto ranger os
dentes do que sorrir daquela maneira.
— Sr. Heathcliff! Patrão! — gritei. — Pelo amor de Deus, não olhe
dessa maneira, como se estivesse tendo uma visão do outro mundo.
— E você, pelo amor de Deus, não grite tão alto! — retrucou ele. —
Volte-se e diga-me, estamos sós?
— Naturalmente — respondi. — Claro que estamos. Mas,
involuntariamente, obedeci-lhe, como se não
estivesse bem segura. Com um gesto de mão, ele abriu um espaço livre
entre as vasilhas do desjejum e inclinou-se para a frente, a fim de poder olhar
mais à vontade.
Percebi, então, que ele não olhava para a parede; reparando bem nele,
parecia que contemplava algo a duas jardas de distância. E, fosse o que fosse,
proporcionava-lhe, aparentemente, tanto prazer como dor em extremo: pelo
menos era o que a expressão do seu rosto, ao mesmo tempo angustiada e
extasiada, sugeria. O que ele contemplava tampouco estava fixo: os olhos dele
perseguiam-no com incansável vigilância e, mesmo ao falar comigo, nunca se
arredavam do objeto em foco. Em vão lhe recordei que havia muito tempo
não comia: se se mexia para tocar em algo, conforme eu lhe dizia, se estendia
a mão para pegar numa fatia de pão, logo os seus dedos se fechavam e permaneciam
sobre a mesa, esquecidos do seu objetivo.
Armei-me de paciência e sentei-me, tentando desviar a sua atenção para
a comida, até que ele se irritou e, levantando-se, perguntou por que razão eu
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não o deixava comer quando ele quisesse, e disse que, da próxima vez, eu não
precisava esperar: punha a bandeja em cima da mesa e ia embora. Com essas
palavras, saiu da casa, desceu lentamente o jardim e desapareceu na estrada.
As horas passaram-se, ansiosamente: outra noite chegou. Não me
recolhi senão muito tarde e, mesmo assim, não consegui dormir. Ele voltou
depois da meia-noite e, em vez de ir para a cama, fechou-se na sala. Fiquei de
ouvido alerta, remexendo-me na cama, até que, finalmente, vesti-me e desci.
Era impossível ficar deitada, dando voltas à cabeça com mil e um
pensamentos e preocupações.
Distingui os passos do Sr. Heathcliff, andando sem parar de um lado
para outro, e, de vez em quando, uma espécie de gemido, quebrar o silêncio.
Murmurava, também, palavras soltas; a única que consegui pegar foi o nome
de Catherine, junto com algum termo de carinho ou sofrimento, dito como se
ele falasse com uma pessoa presente: em voz baixa e sincera, saída do mais
fundo da alma. Não tive coragem de entrar na sala, mas, desejosa de arrancá-
lo daquele devaneio, comecei a remexer o fogo da cozinha e a varrer as
cinzas. O barulho atraiu-o mais depressa do que eu esperava. Ele abriu a
porta e perguntou:
— Nelly, venha cá. Já é de manhã? Traga a sua vela.
— São quase quatro horas — respondi. — Quer uma vela para levar
para cima? Podia ter acendido uma no fogo.
— Não, não quero ir para cima — replicou ele. — Venha até aqui,
acenda-me um bom fogo e faça tudo o que for preciso fazer.
— Primeiro, tenho de atiçar os carvões — falei, apanhando uma cadeira
e o fole.
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Enquanto isso, ele continuava a andar de um lado para outro, num
estado de excitação que se aproximava da loucura, os suspiros sucedendo-se
um ao outro de uma tal maneira, que mal lhe deixavam tempo para respirar
normalmente.
— Quando o dia raiar, vou mandar buscar Green — falou. — Quero
fazer-lhe umas consultas jurídicas, enquanto posso pensar nesses assuntos e
agir calmamente. Ainda não escrevi o meu testamento e não sei como legar os
meus bens. Oxalá os pudesse varrer da face da terra.
— Eu não falaria assim, Sr. Heathcliff — retruquei. — Não se
preocupe já com o testamento: terá muito tempo de se arrepender das suas
muitas injustiças. Nunca pensei que os seus nervos viessem a ficar tão
alterados e quase que inteiramente por sua culpa. A maneira pela qual o
senhor passou estes três últimos dias era capaz de arrasar um titã. Coma
alguma coisa e descanse um pouco. É só olhar-se num espelho para ver como
está. Suas faces estão cavadas e seus olhos raiados de sangue, iguais aos de
uma pessoa semimorta de fome e a ponto de ficar cega por não dormir.
— Não é minha culpa se não posso comer nem descansar — replicou
ele. — Asseguro-lhe que comeria e repousaria se pudesse. Mas seria a mesma
coisa que pedir a um homem prestes a se afogar que abandonasse todas as
tentativas e descansasse, a um metro da praia. Preciso alcançá-la primeiro,
depois descansarei. Bem, não chame o Sr. Green. Quanto a me arrepender
das minhas injustiças, não cometi nenhuma e não me arrependo de nada.
Sinto-me muito feliz, mas não suficientemente feliz. A ventura está me
matando, mas mesmo assim não está satisfeita.
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— Sente-se feliz, patrão? — exclamei. — Que estranha felicidade! Se
me prometer escutar-me sem se zangar, acho que lhe posso dar um conselho
para torná-lo mais feliz ainda.
— Qual é, Nelly? — perguntou ele. — Diga.
— O senhor bem sabe — comecei — que, desde os seus treze anos,
tem levado uma vida egoísta e pouco cristã; sem dúvida, durante todo esse
tempo não pegou sequer na Bíblia. Deve ter se esquecido dos ensinamentos
do Livro e pode não ter tempo de relê-lo agora. Será que o senhor não quer
mandar chamar alguém (um ministro de qualquer igreja, não importa qual)
que lhe explique e lhe mostre a que ponto se desviou dos seus preceitos e
como está longe de merecer o céu, a menos que uma mudança se opere no
senhor antes de morrer?
— Não fico zangado, Nelly, e sim grato — respondeu ele —, pois você
me lembrou da maneira pela qual desejo ser enterrado. Quero ser
transportado para o cemitério de noite. Você e Hareton, se quiserem, podem
me acompanhar: mas cuide, particularmente, de que o coveiro obedeça às
minhas instruções a respeito dos dois ataúdes! Não é preciso chamar nenhum
ministro, nem dizer qualquer oração; já lhe disse que estou quase alcançando
o meu céu e que o dos outros não tem nenhum valor para mim.
— E se acaso o senhor perseverasse no seu obstinado jejum e morresse
em conseqüência dele e se recusassem a enterrá-lo no campo-santo? —
perguntei, chocada pela sua indiferença religiosa. — O senhor gostaria?
— Não farão isso — replicou ele. — Se fizerem, você deve tratar de
trasladar-me em segredo para o cemitério; se não o fizer, hei de lhe provar
que os mortos não se aniquilam!
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Tão logo ouviu os outros membros da família descerem, retirou-se para
os seus aposentos e eu respirei mais aliviada. Mas, de tarde, enquanto Joseph
e Hareton estavam nas suas tarefas, entrou novamente na cozinha e, com um
olhar desatinado, pediu-me que fosse para a sala e lhe fizesse companhia:
queria alguém com ele. Recusei-me a isso, dizendo-lhe, francamente, que a
sua estranha atitude e maneira de falar me assustavam e que não tinha nem
vontade, nem coragem de ficar a sós com ele.
— Acho que você me julga um demônio — disse ele, com o seu riso
sombrio —, algo por demais horrível para viver numa casa decente. —
Depois, voltando-se para Catherine, que se escondera atrás de mim ao vê-lo
aproximar-se, perguntou, sarcástico: — E você, vem comigo? Não lhe vou
fazer mal. Não! Aos seus olhos eu me transformei em algo pior do que o
Diabo. Bem, há uma pessoa que não foge da minha companhia! Por Deus, ela
é inexorável! É demais! Ninguém de carne e osso pode suportar. . . Nem eu!
Não pediu a companhia de ninguém mais. Ao anoitecer foi para o seu
quarto. Durante toda a noite e na manhã seguinte ouvimo-lo gemer e
murmurar consigo mesmo. Hareton estava ansioso por entrar, mas eu lhe
pedi que fosse buscar o Dr. Kenneth, para que o visse. Quando o médico
chegou e pedi licença para entrar e tentei abrir a porta, vi que estava trancada.
E Heathcliff mandou-nos para o inferno, dizendo que estava melhor e queria
que o deixassem em paz. Em vista disso, o médico foi-se embora.
A noite seguinte foi de chuva: na verdade, choveu até de manhãzinha.
Ao dar o meu costumeiro passeio matinal em volta da casa, observei que a
janela do patrão estava escancarada e que a chuva entrava por ela às rajadas.
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"Ele não pode estar na cama", pensei: a chuva tê-lo-ia encharcado. "Deve
estar levantado ou ter saído. Mas basta de conjeturas, vou ver."
Após ter conseguido entrar com outra chave, corri a abrir os painéis,
pois o quarto estava vazio. Empurrei-os depressa para o lado e olhei. O Sr.
Heathcliff estava lá — caído de costas. Seus olhos encaravam-me com tal
fixidez, que estremeci; depois, ele pareceu sorrir. Não podia crer que estivesse
morto: mas o seu rosto e pescoço estavam encharcados; as roupas de cama
pingavam água e ele estava perfeitamente imóvel. A gelosia, batendo com o
vento, arranhara-lhe uma das mãos, pousada no peitoril; mas não saía sangue
da ferida e, quando a toquei com os dedos, não duvidei mais: ele estava
mesmo morto!
Tranquei a janela; penteei-lhe os longos cabelos pretos, caídos para a
testa, e tentei fechar-lhe os olhos: extinguir, se possível, aquele olhar terrível e
ainda vivo de exultação, antes que outra pessoa o pudesse ver. Mas eles não se
fechavam: pareciam troçar dos meus esforços — e os seus lábios abertos,
deixando à mostra os dentes brancos e aguçados, também pareciam troçar!
Tomada de novo acesso de covardia, gritei por Joseph. Ele apareceu logo,
mas recusou-se a mexer nele.
— O Demo carregou a alma dele! — falou. — Pode levar também a
carcaça! Credo! Até da morte ele caçoa! — e o velho pecador fez uma cara de
troça. De repente, porém, recobrando a compostura, ajoelhou-se, ergueu as
mãos ao céu e deu graças por ficar Hareton, o legítimo dono, novamente na
posse dos seus direitos.
Quanto a mim, estava perplexa — e a minha memória pôs-se a recordar tempos passados, com uma espécie de opressiva tristeza. Mas foi o pobre

Hareton, precisamente o mais injustiçado, o único a sofrer realmente muito.
Velou o corpo durante toda a noite, chorando sem parar. Apertava-lhe a mão,
beijava-lhe o rosto sarcástico e terrível, que todos os demais evitavam
contemplar, e carpia-o como só sabem fazer os corações generosos, embora
endurecidos como aço temperado.
O Dr. Kenneth não conseguiu diagnosticar a causa da morte. Ocultei o
fato de ele nada ter comido durante quatro dias, temendo que originasse
complicações e também porque estava convencida de que ele não jejuara propositadamente,
e sim em conseqüência da estranha doença que o acometera.
Foi sepultado, para escândalo de toda a região, segundo o seu desejo.
Eu e Earnshaw, o coveiro e seis gatos-pingados — eis o acompanhamento.
Os seis gatos-pingados foram embora assim que puseram o caixão na
sepultura; nós ficamos para vê-lo ser coberto. Com o rosto lavado em
lágrimas, Hareton arrancou tufos de grama verde e colocou-os sobre a terra:
atualmente, a sepultura está tão verdejante quanto a da companheira — e
espero que o seu ocupante tenha um sono igualmente sossegado. Mas a gente
do campo, quando se lhes pergunta, jura pela Bíblia que o vê caminhar: há
quem diga que o enxergou perto da igreja, na charneca e até mesmo nesta
casa. Histórias, dirá o senhor, e eu também. Contudo, aquele velho sentado
diante do fogo afirma que vê os dois, olhando pela janela do quarto dele,
todas as noites de chuva, desde que o patrão morreu — e uma coisa estranha
aconteceu-me, há cerca de um mês. Eu estava indo para a granja, uma noite
— uma noite escura, ameaçando trovoada —, e, bem na encruzilhada que
leva ao Morro, encontrei um rapazinho com um carneiro e duas ovelhas;
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chorava horrivelmente e eu supus que as ovelhas estivessem assustadiças e se
recusassem a obedecer-lhe.
— Que foi, meu homenzinho? — perguntei.
— Heathcliff e uma mulher estão ali, perto do morro — gaguejou ele
—, e estou com medo de passar.
Nada vi; mas tanto as ovelhas quanto ele se negavam a passar, de modo
que lhe disse para ir pela estrada de baixo. Provavelmente ele imaginara os
fantasmas de tanto pensar, ao atravessar sozinho a charneca, nas bobagens
que ouvira os pais e os colegas repetirem. Mas a verdade é que já não gosto de
sair no escuro e nem de ficar sozinha neste casarão. Que alívio vai ser, quando
mudarem daqui para a granja!
— Vão para a granja? — perguntei.
— Vão — respondeu a Sra. Dean —, tão logo se casarem, no dia de
Ano Novo.
— E quem ficará morando aqui?
— Joseph ficará tomando conta da casa e talvez um rapaz lhe fará
companhia. Vão viver na cozinha e o resto da casa será fechado.
— Para uso dos fantasmas — comentei.
— Não, Sr. Lockwood — falou Nelly, abanando a cabeça. — Creio que
os mortos descansam em paz, mas não é direito falar deles com tal
leviandade.
Nesse momento, a cancela do jardim rangeu: os namorados estavam de
volta.
— Esses não têm medo de nada — resmunguei, vendo-os entrar. — Juntos, seriam capazes de desafiar Satã e todas as suas legiões de demônios.

Vendo-os parar um instante diante da porta, para olharem uma última
vez para a lua — ou, melhor, um para o outro, banhados pelo luar —, sentime
novamente impelido a ir embora; e, enfiando uma lembrança na mão da
Sra. Dean, não obstante os seus protestos, saí pela cozinha no exato
momento em que eles abriam a porta de entrada — e teria confirmado a
opinião de Joseph quanto às indiscrições da velha colega, se ele não tivesse
considerado como prova da minha respeitabilidade o soberano de ouro que
lhe atirei aos pés.
Meu caminho de volta foi alongado por um desvio na direção da igreja.
Uma vez dentro dela, percebi quanto envelhecera em apenas sete meses:
muitas janelas mostravam buracos negros, destituídos de vidraças; e, aqui e ali,
telhas saíam fora da linha do telhado, candidatando-se a serem arrancadas
pelas próximas tempestades de outono.
Procurei, e logo descobri, as três lápides na encosta próxima à charneca:
a do meio, cinzenta e meio enterrada na urze; a de Edgar Linton, com a
grama e o musgo trepando-lhe pela base — e a de Heathcliff, ainda nua.
Demorei-me a contemplá-las, sob aquele céu clemente, a ver as
borboletas esvoaçando por entre a urze e as campânulas, a ouvir a brisa suave
soprando através da relva e a pensar como poderia alguém imaginar, sequer, sonos agitados sob aquela terra.
FIM

O AUTOR E SUA OBRA 
 mais talentosa das irmãs Brontë — mulheres que se celebrizaram na literatura
inglesa do século XIX —, Emily só teve o seu mérito reconhecido muitos anos após a sua
morte. Quando "O Morro dos Ventos Uivantes" foi publicado, em 1847, os críticos o
classificaram como uma obra sádica, pervertida e patológica. E tacharam de imaturos os
sentimentos da autora. Uma mulher, segundo um crítico inglês, precisaria de um poderoso
demônio para se sobressair na Inglaterra vitoriana. Mas Emily o conseguiu. "O Morro dos
Ventos Uivantes" é uma obra que não pode ser catalogada em nenhuma escola. Ela é
única em seu tempo. Não pertence à tradição nem ao estilo literário dos escritores da época.
Uma coisa à parte, apaixonante e terrivelmente melancólica.
Emily Brontë nasceu em Yorkshire, em agosto de 1818. Seus pais eram luteranos
pobres, porém cultos. Tendo perdido a mãe aos dois anos, foi criada por uma tia,
juntamente com um irmão e mais quatro irmãs, duas das quais precocemente falecidas.
Residentes num distrito isolado, onde a educação não tinha avançado, os Brontë não
mantinham relações sociais, e viviam uns para os outros. Estudavam e liam muito. As
crianças chegaram a criar o reino imaginário de Angria, enchendo vários cadernos com a
história de suas guerras, suas leis, seus reis e seus feudos.
A única vez em que Emily saiu de casa foi para estudar francês em Bruxelas. Aí,
teve uma vida infeliz, que seria mais tarde retratada por sua irmã Charlotte em "Jane
Eyre". Yorkshire era o único lugar em que ela se sentia à vontade em sua solidão.
Seus poemas foram descobertos pela primeira vez por Charlotte. Emily ficou muito
sentida com a descoberta, mas acabou por concordar em que ambas publicassem juntas um livro de poemas. O livro saiu em 1846 e foi um fracasso. 

Pouco depois da publicação de "O Morro dos Ventos Uivantes", Emily ficou muito
doente. Recusou qualquer tipo de tratamento, e foi piorando, até que veio a falecer em 19 de
dezembro de 1848. Tinha apenas trinta anos de idade.
Sobre sua irmã, diria Charlotte: "Mais forte do que um homem, mais simples do
que uma criança, a natureza de Emily erguia-se solitária. Sob uma cultura em nada
sofisticada, e gostos em nada artificiais, havia nela um fogo secreto que deve ter lhe
inflamado o cérebro e as veias". Charlotte foi uma das poucas pessoas que puderam
descrever a personalidade de Emily, uma vez que ela não deixou nenhuma correspondência e
a sua obra não nos dá nenhuma chave que a possa decifrar. 
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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