sábado, 15 de agosto de 2015

NICK DUNNE UM DIA SUMIDA


Flashes espocaram, e eu guardei o sorriso, mas não rápido o bastante. Senti uma onda de
calor subir pelo meu pescoço, e gotas de suor brotando em meu nariz. Idiota, Nick, idiota. E
então, bem quando eu estava me recompondo, a coletiva terminou e era tarde demais para passar
outra impressão.
Saí com os Elliott, minha cabeça baixa enquanto mais flashes espocavam. Estava quase na
saída quando Gilpin cruzou a sala na minha direção, acenando.
— Posso falar com você um minuto, Nick?
Ele me atualizou enquanto seguíamos para um escritório nos fundos.
— Verificamos aquela casa em sua vizinhança que foi invadida, parece que pessoas
acamparam lá, então levamos os peritos. E descobrimos que outra casa dentro do condomínio
tinha intrusos.
— Bom, isso é o que me preocupa — expliquei. — Há caras acampados por toda parte. Esta
cidade está tomada de gente desempregada e puta da vida.
Um ano atrás, Carthage era uma cidade controlada por uma única empresa, e essa empresa
era o amplo Riverway Mall, quase uma outra pequena cidade, que um dia empregou quatro mil
moradores locais — um quinto da população. Construído em 1985, era um shopping que deveria
atrair consumidores de todo o Meio-Oeste. Ainda me lembro do dia da inauguração: eu e Go,
mamãe e papai, observando a festa do fundo da multidão no enorme estacionamento asfaltado,
porque nosso pai sempre queria ser capaz de sair rapidamente de qualquer lugar. Mesmo em
jogos de beisebol, nós estacionávamos junto à saída e íamos embora no oitavo inning, eu e Go
em um previsível choramingar, sujos de mostarda, queimados de sol e resmungando: nós nunca
podemos assistir ao final. Mas dessa vez nosso ponto de vista distante era desejável, porque nos
permitia captar todo o Acontecimento: a multidão impaciente trocando o peso de um pé para o
outro; o prefeito no alto de um palanque vermelho, branco e azul; as palavras grandiosas —
orgulho, crescimento, prosperidade, sucesso — ribombando acima de nós, soldados no campo
de batalha do consumismo, armados com talões de cheques em carteiras de vinil e bolsas
tricotadas. E as portas se abrindo. E o avanço rápido para o ar-condicionado, a música ambiente,
os vendedores sorridentes, que eram nossos vizinhos. Meu pai até nos deixou entrar naquele dia,
até esperou na fila e comprou algo para a gente: copos descartáveis suados com suco de laranja
até a borda.
Durante um quarto de século, o Riverway Mall foi dado como certo. Então chegou a recessão
e levou o Riverway loja após loja, até que todo o shopping finalmente faliu. Hoje são cento e
oitenta e cinco mil metros quadrados de eco. Nenhuma empresa se interessou pelo espaço,
nenhum empresário prometeu uma ressurreição, ninguém sabia o que fazer com ele ou o que seria
de todas as pessoas que tinham trabalhado lá, incluindo minha mãe, que perdeu seu emprego na
Shoe-Be-Doo-Be — duas décadas ajoelhando e fazendo laços, separando caixas e catando meias
suadas, descartadas sem cerimônia.
A decadência do shopping basicamente levou Carthage à falência. As pessoas perderam os
empregos, perderam as casas. Ninguém conseguia ver nada de bom no futuro. Nós nunca
podemos assistir ao final. Só que dessa vez parecia que Go e eu assistiríamos. Todos
assistiríamos.
A falência combinou perfeitamente com minha psique. Durante anos eu estivera entediado.
Não um tédio reclamão e inquieto de criança (embora não estivesse acima disso), mas um malestar
denso, paralisante. A mim parecia que nunca mais haveria algo de novo a ser descoberto.
Nossa sociedade era total e tragicamente derivativa (embora a palavra derivativa como crítica
seja em si derivativa). Éramos os primeiros seres humanos que nunca veriam algo pela primeira
vez. Nós olhávamos para as maravilhas do mundo de olhos embotados, desanimados. A Mona
Lisa, as pirâmides, o Empire State Building. Animais da selva atacando, antigos icebergs
derretendo, vulcões entrando em erupção. Não consigo me lembrar de uma só coisa que eu tenha
visto em primeira mão que não ligasse imediatamente a um filme ou programa de TV. Um maldito
comercial. Você conhece o medonho trinado do blasé: Jááá vi. Eu literalmente já vi tudo, e o
pior, o que faz com que eu queira explodir meus miolos, é: a experiência de segunda mão é
sempre melhor. A imagem é mais nítida, a visão é mais intensa, o ângulo da câmera e a trilha
sonora manipulam minhas emoções de uma forma que a realidade já não consegue fazer. Não sei
se a essa altura somos realmente humanos, aqueles de nós que são como a maioria de nós, que
cresceram com TV, filmes e agora internet. Quando somos traídos, sabemos quais palavras dizer;
quando um ente querido morre, sabemos quais palavras dizer. Quando queremos bancar o fodão,
o espertinho ou o idiota, sabemos quais palavras dizer. Todos trabalhamos a partir do mesmo
roteiro gasto.
É uma época muito difícil para ser uma pessoa, apenas uma pessoa real, de verdade, em vez
de uma coleção de traços de personalidade escolhidos de uma interminável máquina automática
de personagens.
E se todos nós estamos atuando, não pode existir algo como uma alma gêmea, porque não
temos almas genuínas.
Chegara ao ponto em que parecia que nada importava, pois não sou uma pessoa de verdade, e
ninguém mais é.
Eu teria feito qualquer coisa para me sentir real novamente.
* * *
Gilpin abriu a porta da mesma sala onde eles haviam me interrogado na noite anterior. No
centro da mesa estava a caixa de presente prateada de Amy.
Eu fiquei olhando para a caixa no meio da mesa, tão agourenta naquele novo ambiente. Uma
sensação de terror tomou conta de mim. Por que eu não a havia encontrado antes? Eu deveria tê-
la encontrado.
— Vá em frente — incentivou Gilpin. — Queríamos que você desse uma olhada nisso.
Eu abri com muito cuidado, como se pudesse haver uma cabeça ali dentro. Encontrei apenas
um envelope azul-cremoso onde estava escrito PRIMEIRA PISTA.
Gilpin sorriu.
— Imagine nossa confusão: um caso de pessoa desaparecida, e aqui temos um envelope
escrito PRIMEIRA PISTA.
— É para uma caça ao tesouro que minha esposa...
— Eu sei. Para o aniversário de casamento de vocês. Seu sogro mencionou.
Eu abri o envelope, tirei um pedaço comprido de papel azul-celeste — o papel que era marca
registrada de Amy — dobrado ao meio. Subiu bile pela minha garganta. Aquelas caças ao
tesouro sempre se resumiam a uma única questão: quem é Amy? (O que minha esposa está
pensando? O que foi importante para ela no último ano? Quais momentos a deixaram mais feliz?
Amy, Amy, Amy, vamos pensar sobre Amy.)
Li a primeira pista com dentes trincados. Considerando nosso clima matrimonial no ano
passado, aquilo me faria parecer horrível. Eu não precisava de mais nada que me fizesse parecer
horrível.
Eu me imagino como uma estudante,
Com um professor tão belo e brilhante
Minha mente se abre (para não falar em minhas coxas!)
Se eu fosse sua pupila, não haveria necessidade de flores
Talvez apenas um encontro safado nos corredores
Então corra, ande logo, por favor
E desta vez eu ensinarei uma coisinha ou outra ao meu professor.
Era um roteiro para uma vida alternativa. Se as coisas tivessem acontecido de acordo com a
visão da minha esposa, ontem ela teria pairado perto de mim enquanto eu lia esse poema,
observando-me com ansiedade, a esperança emanando dela como uma febre: Por favor, entenda
isso. Por favor, me entenda.
E ela finalmente diria: Então?
E eu diria:
— Ah, esta eu até entendi! Ela deve estar se referindo ao meu escritório. Na faculdade. Eu
sou professor adjunto lá. Ahn. Quer dizer, deve ser isso, certo? — Eu semicerrei os olhos e reli.
— Ela pegou leve comigo este ano.
— Quer que eu o leve até lá? — perguntou Gilpin.
— Não, estou com o carro de Go.
— Então sigo você.
— Você acha que é importante?
— Bem, isso revela os movimentos dela um ou dois dias antes de desaparecer. Então não é
desimportante — respondeu ele, olhando para o papel. — Isso é lindo, sabe? Como algo saído
de um filme: uma caça ao tesouro. Minha esposa e eu trocamos um cartão e às vezes saímos para
comer. Parece que vocês estavam fazendo do jeito certo. Preservando o romance.
Então Gilpin olhou para os próprios sapatos, ficou envergonhado e sacudiu as chaves para ir
embora.
* * *
A faculdade tinha me presenteado de forma grandiosa com um escritório que era mais um
caixão, com espaço para uma escrivaninha, duas cadeiras e algumas prateleiras. Gilpin e eu
abrimos caminho em meio a alunos de cursos de verão, uma combinação de garotos
insuportavelmente jovens (entediados mas ocupados, os dedos digitando mensagens de texto ou
sintonizando música) e pessoas mais velhas e muito sérias que eu supunha serem antigos
funcionários do shopping tentando se preparar para uma nova carreira.
— O que você leciona? — perguntou Gilpin.
— Jornalismo, jornalismo para revistas.
Uma garota escrevendo uma mensagem de texto enquanto andava se esqueceu das nuances
desta última atividade e quase esbarrou em mim. Ela deu um passo para o lado sem erguer os
olhos. Isso me deixou irritado, como um velho ranzinza do tipo que grita saia do meu gramado!
— Achei que você não trabalhasse mais com jornalismo.
— Quem não sabe fazer... — retruquei, sorrindo.
Destranquei meu escritório, entrei no ambiente fechado com cheiro de poeira. Eu havia tirado
férias no verão; fazia semanas que eu não entrava ali. Na minha mesa havia outro envelope, que
dizia SEGUNDA PISTA.
— Sua chave fica sempre no seu chaveiro? — perguntou Gilpin.
— Sim.
— Então Amy poderia ter pegado emprestada para entrar?
Eu rasguei a lateral do envelope.
— E temos uma cópia em casa.
Amy fazia duplicatas de tudo — eu tinha uma tendência a perder chaves, cartões de crédito,
celulares, mas não queria contar isso a Gilpin, dar outro sinal de ser o-bebê-da-família.
— Por quê?
— Ah, só queria ter certeza de que ela não teve de usar um zelador ou outra pessoa.
— Nenhum tipo Freddy Krueger aqui, que eu tenha notado.
— Nunca vi esses filmes — retrucou Gilpin.
Dentro do envelope havia duas folhas de papel dobradas. Uma tinha um coração, a outra tinha
escrito PISTA.
Dois bilhetes. Diferente. Meu estômago deu um nó. Só Deus sabia o que Amy iria dizer. Eu
abri o bilhete que tinha o coração. Queria não ter deixado Gilpin entrar, e então vi as primeiras
palavras.
Meu Querido Marido,
Achei que este era o lugar perfeito — estes sacrossantos salões do aprendizado! — para lhe dizer que acho você um
homem brilhante. Não lhe digo isso o bastante, mas me impressiono com sua mente: as estatísticas bizarras e as histórias, os
fatos estranhos, a perturbadora capacidade de citar qualquer filme, a perspicácia, o modo bonito como você diz as coisas.
Após anos juntos, acho que um casal pode esquecer quão maravilhosos acham um ao outro. Lembro-me de quando nos
conhecemos, como fiquei deslumbrada com você, então quis tirar um momento para dizer que ainda estou, e que esta é uma
das coisas que mais gosto em você: você é BRILHANTE.
Minha boca se encheu de saliva. Gilpin estava lendo por sobre meu ombro, e suspirou.
— Que gentil, ela — elogiou. Depois pigarreou. — Uhn, ahn, é sua?
Ele usou o lado da borracha de um lápis para levantar uma lingerie feminina (tecnicamente
era uma calcinha — fio dental, rendada, vermelha —, mas eu sei como as mulheres não gostam
da palavra, basta digitar odeio a palavra calcinha no Google). Estava pendurada em um botão do
ar-condicionado.
— Ai, meu Deus. Isso é constrangedor.
Gilpin ficou esperando uma explicação.
— Ah, uma vez Amy e eu, bem, você leu o bilhete. Nós... tipo, você sabe, às vezes a gente
precisa apimentar um pouco as coisas.
Gilpin sorriu.
— Ah, saquei: professor lascivo e estudante safada. Saquei. Vocês dois realmente estão
fazendo a coisa do jeito certo.
Estiquei a mão para pegar a lingerie, mas Gilpin já estava tirando do bolso um saquinho de
provas e colocando-a dentro dele.
— Apenas uma precaução — disse, inexplicavelmente.
— Ah, por favor, não. Amy iria morrer... — disse, e me interrompi.
— Não se preocupe, Nick, é o protocolo, meu amigo. Você não acreditaria nas coisas pelas
quais temos de passar. Só para o caso de, só para o caso de. Ridículo. O que a pista diz?
Deixei que lesse por sobre meu ombro novamente, seu chocante cheiro fresco me distraindo.
— E o que essa significa? — perguntou.
— Não faço ideia — menti.
* * *
Finalmente me livrei de Gilpin, depois segui sem rumo pela rodovia para poder fazer uma
ligação no meu celular descartável. Ninguém atendeu. Não deixei mensagem. Acelerei um pouco
mais, como se pudesse chegar a algum lugar, depois retornei e dirigi os quarenta e cinco minutos
de volta à cidade para me encontrar com os Elliott no Days Inn. Entrei em um saguão lotado de
membros da Associação de Contadores do Meio-Oeste — malas de rodinha estacionadas por
toda parte, seus donos tomando drinques de boas-vindas em copos descartáveis e fazendo
contatos, risos guturais forçados e cartões de visita saindo de bolsos. Subi no elevador com
quatro homens, todos ficando calvos, com calças cáqui e camisas polo, cordões de crachás
sacudindo sobre barrigas redondas e casadas.
Marybeth abriu a porta enquanto falava ao celular; apontou para a TV e sussurrou para mim:
— Temos uma bandeja de frios caso queira, querido.
Depois foi para o banheiro e fechou a porta, os murmúrios continuando.
Ela saiu cinco minutos depois, bem a tempo do noticiário local de St. Louis das cinco horas,
que abriu com o desaparecimento de Amy.
— Foto perfeita — murmurou ela para a tela, de onde Amy olhava de volta para nós. — As
pessoas verão e saberão realmente como Amy é.
Eu achava o retrato — uma foto só do rosto de Amy, durante seu breve flerte com a
interpretação — bonito, mas perturbador. Os retratos de Amy davam a sensação de que ela
estava olhando para você, como um antigo retrato de casa assombrada, os olhos se movendo da
esquerda para a direita.
— Também deveríamos dar a eles algumas fotos mais naturais — sugeri. — Algumas do dia
a dia.
Os Elliott confirmaram juntos com um aceno de cabeça, mas não disseram nada enquanto
assistiam. Quando a matéria terminou, Rand rompeu o silêncio.
— Estou enjoado.
— Eu sei — disse Marybeth.
— Como você está aguentando, Nick? — perguntou Rand, curvado, as mãos nos joelhos,
como se estivesse se preparando para levantar do sofá, mas não conseguindo.
— Estou um caco, para dizer a verdade. Estou me sentindo muito inútil.
— Vem cá, tenho de perguntar, e quanto aos seus empregados, Nick? — perguntou Rand,
finalmente se levantando. Ele foi ao frigobar, serviu-se de um ginger ale, depois se virou para
mim e Marybeth. — Alguém? Algo? Nada?
Eu balancei a cabeça; Marybeth pediu um club soda.
— Quer um pouco de gim com isso, querida? — perguntou Rand, a voz grave ficando aguda
na última palavra.
— Claro. Sim. Quero.
Marybeth fechou os olhos, dobrou o corpo e colocou o rosto entre os joelhos; depois respirou
fundo e se sentou de novo exatamente na posição anterior, como se o movimento todo não
passasse de um exercício de ioga.
— Eu dei a eles listas com todos os nomes — informei. — Mas é um negócio bastante
pequeno, Rand. Não acho que seja o lugar certo para procurar.
Rand colocou a mão sobre a boca e esfregou para cima, a carne de suas bochechas se
acumulando ao redor dos olhos.
— Claro, estamos fazendo o mesmo com o nosso negócio, Nick.
Rand e Marybeth sempre se referiam à série Amy Exemplar como um negócio, o que
superficialmente nunca deixei de achar bobo. São livros infantis, sobre uma garotinha perfeita
que é retratada na capa de todo livro, uma versão desenhada da minha própria Amy. Mas claro
que eles são (eram) um negócio, grande negócio. Foram obrigatórios no ensino fundamental por
quase duas décadas, em grande parte graças aos questionários no final de cada capítulo.
Na terceira série, por exemplo, Amy Exemplar flagrou seu amigo Brian dando comida demais
para a tartaruga da turma. Ela tentou argumentar com ele, mas, quando Brian insistiu em dar
porções extras, Amy não teve opção senão delatá-lo à professora: “Sra. Tibbles, não quero ser
uma fofoqueira, mas não sei bem o que fazer. Tentei eu mesma falar com Brian, mas agora...
Acho que preciso da ajuda de um adulto...” A consequência:
1) Brian disse a Amy que ela não era uma amiga confiável e parou de falar com ela.
2) Sua amiga tímida, Susan, disse que Amy não deveria ter contado; deveria ter recolhido a comida em segredo sem
que Brian soubesse.
3) A arquirrival de Amy, Joanna, disse que Amy era invejosa e só queria alimentar a tartaruga ela mesma.
4) Amy se recusou a voltar atrás — sentia que havia feito a coisa certa.
Quem está certo?!
Bem, isso é fácil, pois Amy sempre está certa, em todas as histórias. (Não pense que não
mencionei isso em minhas discussões com minha Amy real, porque mencionei, mais de uma vez.)
Os questionários — escritos por dois psicólogos, que também são pais como você! —
tinham a intenção de revelar os traços de personalidade das crianças: o seu pequenino é um
ressentido que não aceita ser censurado, como Brian? Um facilitador covarde como Suzy? Um
provocador como Joanna? Ou perfeito, como Amy? Os livros foram muito populares na classe
yuppie emergente: foram a “pedra de estimação” da paternidade, o cubo mágico de como criar
uma criança. Os Elliott ficaram ricos. Em dado momento estimou-se que toda biblioteca de
escola nos Estados Unidos tinha um livro da série Amy Exemplar.
— Vocês temem que isso possa estar ligado ao negócio da Amy Exemplar? — perguntei.
— Há algumas pessoas que achamos que merecem ser investigadas — começou Rand.
Eu tossi uma risada.
— Vocês acham que Judith Viorst sequestrou Amy para Alexander para que ele não tenha
mais Dias Terríveis, Horríveis, Nada Bons, Muito Ruins?
Rand e Marybeth voltaram seus rostos com a mesma expressão surpresa-desapontada para
mim. Era uma coisa grosseira e sem graça de se dizer — meu cérebro arrotava pensamentos
inadequados desse tipo em momentos inoportunos. Gases mentais que eu não conseguia controlar.
Tipo: eu havia começado a cantar na minha cabeça a letra de “Bony Moronie” sempre que via
minha amiga policial. “She’s as skinny as a stick of macaroni ”, cantarolava meu cérebro
enquanto a detetive Rhonda Boney me contava sobre dragar o rio em busca de minha esposa
desaparecida. Mecanismo de defesa, eu dizia a mim mesmo, apenas um estranho mecanismo de
defesa. Eu gostaria que isso parasse.
Mudei minha perna de posição delicadamente, falei delicadamente, como se minhas palavras
fossem uma pilha desajeitada de porcelana.
— Desculpem-me, não sei por que disse isso.
— Estamos todos cansados — sugeriu Rand.
— Vamos mandar os policiais atrás de Viorst — tentou Marybeth. — E também daquela
piranha da Beverly Cleary.
Era menos uma piada do que um perdão.
— Acho que eu deveria dizer a vocês — comecei. — Os policiais, é normal nesse tipo de
caso...
— Investigar primeiro o marido, eu sei — interrompeu Rand. — Eu disse que eles estavam
perdendo tempo. As perguntas que nos fizeram...
— Foram ofensivas — concluiu Marybeth.
— Então falaram com vocês? Sobre mim?
Fui para o frigobar e me servi de um gim descontraidamente. Virei três goles seguidos e logo
me senti pior. Meu estômago estava subindo para o meu esôfago.
— Que tipo de coisa eles perguntaram?
— Se você já machucou Amy, se Amy alguma vez mencionou você ameaçando-a —
enumerou Marybeth. — Se você é um mulherengo, se Amy alguma vez mencionou que você a
tinha traído. Porque isso é a cara de Amy, não? Disse a eles que não criamos um capacho.
Rand colocou uma mão no meu ombro.
— Nick, o que deveríamos ter dito, antes de tudo, é: sabemos que você nunca, jamais,
machucaria Amy. Eu até contei à polícia, contei sobre aquela vez em que você salvou o
camundongo na casa de praia, salvou-o da armadilha de cola — disse ele, olhando para
Marybeth como se ela não conhecesse a história, e Marybeth agradeceu com toda a sua atenção.
— Passou uma hora tentando encurralar a maldita coisa, e então literalmente expulsou o pequeno
desgraçado da cidade. Isso parece um cara que machucaria sua esposa?
Senti uma onda de intensa culpa, aversão por mim mesmo. Por um segundo, pensei que
poderia chorar, finalmente.
— Amamos você, Nick — disse Rand, dando um último aperto.
— Amamos mesmo, Nick — ecoou Marybeth. — Você é nosso filho. Lamentamos muitíssimo
que além de Amy estar desaparecida você tenha de lidar com essa... nuvem de suspeita.
Não gostei da expressão nuvem de suspeita. Preferia investigação de rotina ou uma mera
formalidade.
— Eles perguntaram sobre sua reserva no restaurante naquela noite — comentou Marybeth,
um olhar exageradamente descontraído.
— Minha reserva?
— Falaram que você disse a eles que tinha uma reserva no Houston’s, mas verificaram, e não
havia reserva. Pareceram bastante interessados nisso.
Eu não tinha reserva, e não tinha presente. Porque se eu planejara matar Amy naquele dia, não
precisaria de reservas para a noite nem de um presente que nunca daria a ela. Marcas de um
assassino extremamente pragmático.
Sou excessivamente pragmático — meus amigos com certeza poderiam dizer isso à polícia.
— Ah, não. Não, nunca fiz reserva nenhuma. Eles devem ter me entendido mal. Vou
esclarecer com eles.
Eu me joguei no sofá em frente a Marybeth. Não queria que Rand me tocasse novamente.
— Ah, certo. Bom — disse Marybeth. — Ela, ahn, você teve uma caça ao tesouro este ano?
Antes... — perguntou, os olhos ficando vermelhos novamente.
— Sim, eles me deram a primeira pista hoje. Gilpin e eu encontramos a segunda em meu
escritório na faculdade. Ainda estou tentando entendê-la.
— Podemos dar uma olhada? — pediu minha sogra.
— Não estou com ela — menti.
— Você vai... Você vai tentar descobrir, Nick? — perguntou Marybeth.
— Vou, Marybeth. Eu vou descobrir.
— É que eu detesto a ideia de coisas em que ela tocou deixadas por aí, sozinhas...
Meu telefone tocou, o descartável, e eu dei uma olhada na tela, depois desliguei. Precisava
me livrar da coisa, mas ainda não podia.
— Você deveria atender todos os telefonemas, Nick — sugeriu Marybeth.
— Eu reconheci este... apenas o fundo de formatura da faculdade querendo dinheiro.
Rand sentou-se ao meu lado no sofá. As almofadas velhas e muito gastas afundaram
incrivelmente sob nosso peso, então acabamos empurrados um contra o outro, nossos braços se
tocando, o que não era problema para Rand. Ele era um daqueles caras que dizem eu gosto de
abraçar enquanto vão na sua direção, deixando de perguntar se o sentimento é mútuo.
Marybeth voltou aos negócios.
— Achamos que é possível que um obcecado por Amy a tenha levado — explicou, virando-se
para mim como se apresentando um caso. — Tivemos alguns ao longo dos anos.
Amy gostava de relembrar histórias de homens obcecados por ela. Descrevia os
perseguidores em voz baixa enquanto bebia vinho em vários momentos de nosso casamento —
homens que ainda estavam à solta, sempre pensando nela e a desejando. Eu suspeitava que essas
histórias fossem exageradas: os homens sempre eram perigosos em um grau muito preciso — o
suficiente para que eu me preocupasse, mas não o bastante para que precisássemos envolver a
polícia. Resumindo, um mundo de fantasia em que eu podia ser o herói de peito estufado de Amy,
defendendo sua honra. Amy era independente demais, moderna demais para conseguir admitir a
verdade: ela queria brincar de donzela.
— Ultimamente?
— Não, ultimamente não — respondeu Marybeth, mordendo o lábio. — Mas houve uma
garota muito perturbada no ensino médio.
— Perturbada como?
— Ela era obcecada por Amy. Bem, pela Amy Exemplar. Seu nome era Hilary Handy; ela se
inspirou na melhor amiga de Amy nos livros, Suzy. No começo era meigo, até. E depois foi como
se isso já não bastasse; ela queria ser a Amy Exemplar, não Suzy, a amiga. Então começou a
imitar a nossa Amy. Ela se vestia como Amy, pintou o cabelo de louro, ficava parada na frente
de nossa casa em Nova York. Uma vez eu estava caminhando pela rua e ela foi correndo até mim,
essa garota estranha, passou o braço por baixo do meu e disse: “Eu vou ser sua filha agora. Vou
matar Amy e ser sua nova Amy. Porque na verdade não faz diferença para você, não é? Desde
que você tenha uma Amy.” Como se nossa filha fosse uma obra de ficção que ela pudesse
reescrever.
— Finalmente conseguimos uma ordem de restrição contra ela, porque ela derrubou Amy em
uma escadaria na escola — explicou Rand. — Uma garota muito perturbada. Esse tipo de
mentalidade não muda.
— E depois tem Desi — disse Marybeth.
— E tem Desi — disse Rand.
Até eu sabia sobre Desi. Amy estudara em um colégio interno em Massachusetts chamado
Wickshire Academy — eu vira as fotos, Amy de saia de lacrosse e faixa na cabeça, sempre com
cores outonais ao fundo, como se a escola não fosse em uma cidade, mas em um mês. Outubro.
Desi Collings estudava no correspondente masculino do Wickshire. Nas histórias de Amy ele era
uma figura pálida e romântica, e seu cortejo fora do tipo internato: jogos de futebol americano
gelados e bailes acalorados, buquês de lilases e passeios em um Jaguar antigo. Tudo meio século
passado.
Eles namoraram firme por um ano. Mas Amy começou a achá-lo preocupante: ele falava
como se estivessem noivos, sabia quantos filhos teriam e de qual sexo. Seriam quatro filhos,
todos meninos, o que lembrava estranhamente a família do próprio Desi. E quando ele levou a
mãe para conhecê-la, Amy ficou com vontade de vomitar diante da impressionante semelhança
entre ela mesma e a Sra. Collings. A mulher mais velha beijara sua face friamente e murmurara
com calma em seu ouvido: “Boa sorte.” Amy não sabia se era um aviso ou uma ameaça.
Depois que Amy terminou com Desi, ele ainda continuou frequentando o campus de
Wickshire, uma figura fantasmagórica de paletós escuros, encostado em carvalhos invernais sem
folhas. Amy voltou de um baile certa noite de fevereiro e o encontrou deitado em sua cama, nu
sobre as cobertas, grogue de uma pequena overdose de comprimidos. Desi saiu da escola pouco
depois.
Mas ainda telefonava para ela, mesmo agora, e várias vezes por ano enviava grossos
envelopes recheados que Amy jogava fora sem abrir após mostrá-los para mim. Tinham o
carimbo de St. Louis, a quarenta minutos de distância. “É uma horrível e infeliz coincidência”,
dissera ela. Desi tinha laços familiares com St. Louis pelo lado materno. Isso ela sabia, mas não
se preocupou em saber mais. Eu revirara o lixo para recuperar um dos envelopes e lera a carta,
grudenta de molho alfredo, e absolutamente banal: papo sobre tênis, viagem e outras coisas
chiques. Spaniels. Tentei imaginar aquele dândi esguio, um sujeito de gravata-borboleta e óculos
de armação de tartaruga invadindo nossa casa e agarrando Amy com macios dedos saídos da
manicure. Jogando-a na mala de seu roadster antigo e levando-a... para comprar antiguidades em
Vermont. Desi. Alguém poderia acreditar que tinha sido Desi?
— Na verdade Desi não mora longe. Em St. Louis — comentei.
— Está vendo? — reagiu Rand. — Por que os policiais não estão indo atrás disso?
— Alguém precisa ir — concluí. — Eu vou. Depois da busca por aqui, amanhã.
— A polícia definitivamente parece pensar que a história está... perto de casa — disse
Marybeth.
Ela manteve os olhos sobre mim um átimo a mais, depois estremeceu, como se afastando um
pensamento.
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Bem Vindos ao Livro teen


Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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