quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

BEN DAY 2 DE JANEIRO DE 1985 9h13


   Ben estava a derrapar no gelo, as rodas da bicicleta a vibrarem. O caminho era para
motocross, e para o verão, e tinha gelado, por isso era uma estupidez andar ali de
bicicleta. E mais estúpido ainda o que ele estava a fazer: a pedalar o mais depressa
possível em terreno acidentado, com hastes partidas de milho de ambos os lados e ele a
tentar arrancar a porcaria do autocolante que uma das irmãs tinha colado por cima do
velocímetro. Estava lá há semanas, a aparecer e a desaparecer da sua vista, a irritá-lo,
mas não o suficiente para ele ter tratado do assunto. Apostava que tinha sido Debby quem
o lá pusera, de olhos mansos e inconsciente: Isto fica tão bonito! Ben tinha aquela coisa
brilhante já meio arrancada quando chegou a um troço de terra, a roda da frente a guinar
toda para a esquerda, a traseira a patinar. Não voou completamente. Deu um salto na
bicicleta, uma das pernas ficou presa e ele aterrou de lado no chão, com o braço direito a
raspar nos restos de milho, a perna direita dobrada debaixo do corpo. Bateu com a cabeça
com força na terra e os dentes tiniram como um sino.
Quando conseguiu respirar novamente — dez segundos a pestanejar com as lágrimas
nos olhos —, sentiu um fio quente de sangue escorrer-lhe pelo olho abaixo. Ótimo.
Espalhou-o com as pontas dos dedos na face e sentiu um novo fio de sangue a escorrer
imediatamente do golpe na testa. Gostava de ter batido com mais força. Nunca tinha
partido um osso, um facto que só confessava sob pressão. A sério, meu? Como é que
uma pessoa consegue passar pela vida sem partir nada? A tua mãe embrulhou-te em
plástico protetor? Na primavera passada, arrombara o portão da piscina municipal com uns
tipos e postara-se na prancha de saltos por cima do grande buraco seco, a olhar para o
fundo de cimento, a convencer-se a saltar, a partir-se todo, a ser o puto marado. Dera
balanço na prancha umas quantas vezes, bebera mais um gole de uísque, dera uns pulinhos
para cima e para baixo e voltara para junto dos outros, que ele mal conhecia e que tinham
estado a observá-lo pelo canto do olho.
Um osso partido teria sido melhor, mas um pouco de sangue não era mau. Escorria
agora abundantemente, pela bochecha abaixo, pelo queixo, e pingava para o gelo. Poças
redondas de um vermelho puro.
Aniquilação.
A palavra surgiu do nada; expressões e letras de músicas estavam constantemente a
colar-se-lhe ao cérebro pegajoso. Aniquilação. Viu imagens soltas de bárbaros nórdicos a
empunharem machados. Perguntou-se por um segundo, um segundo apenas, se teria
reencarnado e se aquilo seria uma espécie de recordação dessa vida anterior esvoaçando
para o chão como cinzas. Depois, pegou na bicicleta e baniu esse pensamento. Já não tinha
dez anos.
Começou a pedalar, com uma luxação na anca direita e o braço a arder dos arranhões
no milho. Talvez também ficasse com uma bela nódoa negra. Diondra gostaria disso,
passaria um dedo macio sobre a mancha, descreveria um círculo à volta dela, uma, duas
vezes, e espetaria um dedo na nódoa negra para depois gozar com ele quando o visse dar
um salto de dor. Diondra era uma miúda que gostava de reações em grande: gritava alto,
chorava ainda mais alto, ria a bandeiras despregadas. Arregalava os olhos e arqueava as
sobrancelhas quase até aos cabelos quando queria parecer surpreendida. Gostava de saltar
de detrás de uma porta e pregar-lhe sustos para ele correr atrás dela na brincadeira.
Diondra, a miúda dele, com um nome que lhe fazia lembrar princesas ou strippers, não
sabia bem qual das duas. Ela era um bocadinho de ambas: sumptuosa, mas ordinária.
Uma peça qualquer da bicicleta ficara solta e estava a fazer um barulho que parecia o
de um prego dentro de uma lata; o barulho vinha da zona dos pedais. Deteve-se um
instante para ver o que se passava, com as mãos vermelhas e engelhadas do frio como
um velho, e igualmente fraco, mas não viu nada de mal. Enquanto tentava detetar o
problema, o sangue entrou-lhe nos olhos. Merda, era um inútil. Era demasiado pequeno
quando o pai os abandonara. Nunca tivera a oportunidade de aprender coisas práticas. Via
tipos a consertar motos e tratores e automóveis, e as entranhas dos motores pareciamlhe
os intestinos de um animal qualquer que ele nunca tinha visto. Mas de animais ele
entendia, e de armas também. Era caçador como toda a gente na sua família, mas isso
não era grande coisa, uma vez que a mãe tinha mais pontaria do que ele.
Queria ser um homem útil, mas não sabia como conseguir tal coisa, e a ideia
assustava-o. O pai tinha voltado a viver com eles na quinta durante uns meses, no verão,
e Ben enchera-se de esperanças, achando que o homem lhe ensinaria alguma coisa depois
de tanto tempo, que se daria ao trabalho de ser pai. Em vez disso, Runner limitou-se a
fazer ele próprio todo o trabalho mecânico e nem sequer convidou Ben para assistir. Aliás,
deixou bem claro que Ben devia manter-se longe dele. Percebeu que Runner achava que ele
era um mariquinhas: sempre que a mãe dizia que era preciso consertar alguma coisa,
Runner respondia: «Isso é trabalho de homem» e lançava um sorriso a Ben, desafiando-o
a concordar. Não podia pedir a Runner para lhe ensinar fosse o que fosse.
Além disso, não tinha dinheiro. Mentira: tinha quatro dólares e trinta cêntimos no bolso,
mas era só isso para a semana toda. A família não tinha dinheiro posto de parte. A conta
bancária estava sempre praticamente sem nada; vira um extrato bancário, uma vez, que
dizia literalmente um dólar e dez cêntimos, portanto, a dada altura, a família chegou a ter
menos no banco do que ele levava no casaco naquele preciso momento. A mãe não era
capaz de gerir a quinta como devia; ele não sabia como, mas ela estava a estragar tudo.
Levava uma carga de trigo para o silo num camião emprestado e não recebia nada em
troca — menos do que gastava a cultivar o trigo — e o pouco de dinheiro que conseguia
era para pagar dívidas. Os lobos estão à nossa porta, costumava ela dizer, e quando ele
era mais pequeno, imaginava-a inclinada para fora da porta dos fundos, a lançar notas
verdinhas de dinheiro a uma matilha de lobos e eles a comerem-nas como se fossem
carne. Queriam sempre mais.
Será que alguém lhes ia tirar a quinta, um dia? Não deveria alguém fazê-lo? A melhor
coisa talvez fosse livrarem-se da quinta, começarem do zero, em vez de estarem
agarrados àquela coisa viva enorme, morta. Mas era a casa dos pais da mãe e ela era
sentimental. Era um gesto muito egoísta, pensando bem. Ben trabalhava a semana toda na
quinta e depois voltava para a escola aos fins de semana para o seu emprego de merda
como empregado de limpeza. (Escola e quinta, quinta e escola, era a isso que se resumia
a sua vida antes de Diondra. Agora, tinha um belo triângulo de lugares para onde ir: a
escola, a quinta e o casarão de Diondra na orla da cidade. Dava de comer ao gado e
acartava estrume em casa e fazia basicamente o mesmo na escola, a lavar balneários e a
esfregar o chão da cantina, ou seja, a limpar a merda dos outros putos. E, ainda assim, a
mãe continuava a exigir que lhe desse metade do ordenado. As famílias partilham. Ah,
sim? Pois os pais devem tomar conta dos filhos, que tal essa? Que tal não ter parido
mais três miúdos quando mal tinha dinheiro para sustentar o primeiro?
A bicicleta estrepitava pelo caminho fora e Ben estava à espera que ela se desfizesse
toda aos bocados, como num sketch ou num cartoon em que ele acabaria a pedalar só
com o selim e o guiador. Odiava ter de ir de bicicleta para todo o lado. Odiava não poder
conduzir. É a coisa mais triste do mundo um rapaz que ainda não fez dezasseis anos, dizia
Trey, abanando a cabeça e soprando fumo para cima dele. Dizia isto sempre que Ben
aparecia em casa de Diondra montado na bicicleta. Trey era fixe, mas era o tipo de gajo
que tinha sempre de espetar o ferrão nos outros gajos. Trey tinha dezanove anos, cabelo
comprido, preto e baço como alcatrão deixado ao ar durante uma semana, e era meio
primo de Diondra ou uma coisa qualquer esquisita dessas, tio-avô ou amigo da família ou
enteado de um amigo da família. Ou ele já tinha mudado de história várias vezes ou então
Ben não tinha prestado atenção suficiente. O que era perfeitamente possível, uma vez que,
sempre que Trey estava por perto, Ben ficava imediatamente tenso e demasiado
consciente do seu corpo. Porque é que estava parado com as pernas naquela posição? O
que é que havia de fazer às mãos? Pô-las na cintura ou enfiá-las nos bolsos?
Qualquer das duas maneiras parecia esquisita. E qualquer uma delas suscitaria piadas.
Trey era o tipo de gajo capaz de detetar qualquer coisa discreta mas profundamente
errada numa pessoa, em que o próprio nem sequer tinha reparado, e de a denunciar a uma
sala cheia de gente. Belas calças para atravessar as cheias foi a primeira coisa que Trey
lhe disse na vida. Ben levava uns jeans que talvez fossem, eventualmente, um centímetro
demasiado curtos. Talvez dois centímetros. Belas calças para atravessar as cheias.
Diondra rebolara-se de riso. Ben esperara que ela parasse de rir e que Trey recomeçasse a
falar. Esperara dez minutos, sem dizer nada, a fazer um esforço enorme para se sentar de
maneira que as meias não ficassem demasiado à mostra. Depois, enfiara-se na casa de
banho, desapertara ligeiramente o cinto e puxara os jeans para o fundo das ancas. Quando
voltou para a sala — a sala de estar do andar de baixo da casa, com uma alcatifa azul e
pufes espalhados por todos os cantos como cogumelos —, a segunda coisa que Trey lhe
disse na vida foi: «Agora trazes o cinto pela pila, meu. Não enganas ninguém.»
Ben chocalhou pelo carreiro abaixo, na sombra fresca do inverno, com flocos de neve a
flutuarem no ar como grãos de poeira. Mesmo depois de fazer dezasseis anos, continuaria
sem carro. A mãe tinha um Cavalier que comprara num leilão e que, em tempos, fora um
automóvel de aluguer. Ela já lhe explicara que não tinham dinheiro para um segundo carro.
Teriam de partilhar, o que fez imediatamente com que Ben não tivesse vontade de usar o
Cavalier. Já imaginara o que seria ir buscar Diondra num carro que cheirava a centenas de
outras pessoas, um carro que tinha um cheiro completamente a usado — a batatas fritas
rançosas e a nódoas de sexo — e, ainda por cima, um carro que agora estava atulhado de
livros de meninas e bonecas de pano e pulseiras de plástico. Não dava. Diondra disse que
ele podia conduzir o carro dela (ela tinha dezassete anos, mais um problema, porque... não
era embaraçoso andar dois anos atrás da namorada no liceu?). Mas era uma imagem bem
melhor: os dois num CRX vermelho, com a traseira levantada, os cigarros de mentol de
Diondra a encherem o carro com um fumo perfumado, Slayer em altos berros. Sim, muito
melhor.
Sairiam daquela terra de merda e iriam para Wichita, onde o tio dela era dono de uma
loja de desporto e talvez lhe desse emprego. Ben prestara provas para as equipas de
basquetebol e futebol e fora rejeitado de uma maneira curta e grossa, do género «escusa
de cá voltar», por isso passar os seus dias numa sala enorme cheia de bolas de basquete
e futebol parecia-lhe particularmente irónico. Mas, pensando bem, com tanto equipamento
desportivo à sua volta, talvez pudesse treinar e tornar-se suficientemente bom para entrar
para uma equipa qualquer masculina. Tinha de haver uma vantagem naquilo tudo.
Claro está que a maior vantagem era Diondra. Ele e Diondra no seu próprio
apartamento em Wichita, a comer McDonald’s e a ver televisão e a fazer sexo e a fumar
maços inteiros de cigarros numa noite. Ben não fumava muito quando Diondra não estava;
era ela a viciada, fumava tanto que cheirava a tabaco mesmo depois de tomar banho, ele
tinha a sensação de que, se ela se cortasse, a sua pele deitaria vapor de mentol em vez
de sangue. Acabara por gostar desse cheiro, que agora, para ele, era sinónimo de consolo e
refúgio, da mesma maneira que o pão quente representa o cheiro a casa para muita gente.
Portanto, seria assim: ele e Diondra, com os seus caracóis castanhos aos canudos, todos
estaladiços de gel (outro cheiro que era completamente representativo dela: aquele odor
pungente a uva dos cabelos), sentados no sofá a verem as telenovelas que ela gravava
todos os dias. Ele acabara por se deixar enredar nos dramas: mulheres de chumaços nos
ombros a beberem champanhe com diamantes a cintilar nos dedos, enquanto enganavam
os maridos ou os maridos as enganavam ou as pessoas ficavam com amnésia e
enganavam as outras. Ele voltaria do trabalho, com as mãos a cheirar a couro poeirento de
bolas de basquetebol, e ela teria comprado o jantar no McDonald’s ou no Taco Bell e
comeriam juntos e diriam piadas sobre as mulheres de lantejoulas na televisão, e Diondra
mostraria as que têm as unhas mais bonitas, ela adorava as unhas, e depois insistiria em
pintar as dele, ou em pôr-lhe batom, o que ela adorava fazer, adorava abonecá-lo.
Acabariam em cima da cama a fazer uma luta de cócegas, nus, com pacotes de ketchup
debaixo das costas, e Diondra riria tão alto que os vizinhos bateriam no teto para os
mandar calar.
      Esta imagem não estava completa. Ele deixara propositadamente de fora um pormenor
extremamente assustador, apagara simplesmente determinadas realidades. Isso não podia
ser um bom sinal. Significava que tudo não passava de uma fantasia. Era um puto idiota
que nem sequer conseguia ter uma coisa tão pequena como um apartamento de merda em
Wichita. Nem sequer uma coisa minúscula como essa ele poderia ter. Sentiu uma onda de
fúria que já lhe era bem familiar. A sua vida era uma longa sucessão de negações à sua espera.
    Aniquilação. Uma vez mais, viu machados, armas, corpos ensanguentados
esborrachados no chão. Os gritos davam lugar a gemidos e cantos de pássaros. Queria
sangrar mais.
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Então resolvi criar esse blog porque, muita gente não tem dinheiro(tipo eu) ,vou postar livro de qualquer estilo,porque eu qualquer estilos amo ler,quer um livro que eu poste basta pedir na embaixo no meu ask,ok meu nome João Paulo ,comente para eu interagir com vocês.

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